sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Embarque da corte para o Brasil

Fonte: BND
Pormenor de gravura da época alusiva ao embarque do príncipe


Poucos episódios da historiografia portuguesa deram azo a tão duras críticas... O incisivo Oliveira Martins, no segundo tomo da sua História de Portugal, escreveu algumas das palavras mais citadas sobre o embarque da família real e da corte para o Brasil, mais de 70 anos depois do mesmo ter ocorrido: 

"Três séculos antes, Portugal embarcara, cheio de esperanças e cobiça, para a Índia: em 1807 (novembro, 29) embarcava um préstito fúnebre para o Brasil.  A onda da invasão varria diante de si o enxame dos parasitas imundos, desembargadores e repentistas, peraltas e sécias, frades e freiras, monsenhores e castrados.  Tudo isso, a monte, embarcava, ao romper do dia no cais de Belém.  Parecia o levantar de uma feira, e a mobília de uma barraca suja de saltimbancos falidos: porque o príncipe regente, para abarrotar o bolso com louras peças de ouro, seu enlevo, ficara a dever a todos os credores, deixando a tropa, os empregos, os criados por pagar.
Desabava tudo a pedaços; e só agora, finalmente, o terramoto começado pela natureza, continuado pelo marquês de Pombal, se tornava um facto consumado. Os cortesãos corriam pela meia-noite as ruas, ofegantes, batendo às lojas, para comprarem o necessário; as mulheres entrouxavam a roupa e os pós, as banhas, o gesso com que caiavam a cara, o carmim com que pintavam os beiços, as perucas e rabichos, os sapatos e fivelas, toda a frandulagem do vestuário. Era um afã, como quando há fogo; e não havia choro nem imprecações: havia apenas uma desordem surda. Embarcavam promiscuamente, no cais, os criados e os monsenhores, as freiras e os desembargadores, alfaias preciosas e móveis toscos sem valor, nem utilidade. Era escuro, nada se via, ninguém se conhecia. Os botes formigavam sobre a onda sombria, carregando, levando, vazando bocados da nação despedaçada, farrapos, estilhas, aparas, que o vento seco do fim dispersara nessa noite calada e negra.
Muita gente, por indolência, recusava ir; outros preferiam o invasor ao Bragança, que fugia miserável e cobardemente: ao herdeiro de reis, que jamais tinham sabido morrer, nem viver. Mais de um regimento desobedeceu aos chefes que o mandavam embarcar; e muitos, vendo a debandada, se dissolveram, deixando as armas, dispersando. Outros embarcavam: chegavam ao portaló dos navios já repletos e voltavam para terra, aborrecidos e enjoados de tanta desordem, de tão grande vergonha.
O príncipe-regente e o infante de Espanha chegaram ao cais na carruagem, sós: ninguém dava por eles; cada qual cuidava de si, e tratava de escapar. Dois soldados da polícia levaram-nos ao colo para o escaler. Depois veio noutro coche a princesa Carlota Joaquina com os filhos. E por fim a rainha, de Queluz, a galope. Parecia que o juízo lhe voltava com a crise. "Mais devagar! gritava ao cocheiro; diriam que fugimos!" A sua loucura proferia com juízo brados de desespero, altos gritos de raiva, estorcendo-se, debatendo-se às punhadas, com os olhos vermelhos de sangue, a boca cheia de espuma. O protesto da louca era o único vislumbre de vida. O brio, a força, a dignidade portuguesa acabavam assim nos lábios de uma rainha doida!
Tudo o mais era vergonha calada, passiva inépcia, confessada fraqueza. O príncipe decidira que o embarque se fizesse de noite, por ter a consciência da vergonha da sua fuga; mas a notícia transpirou, e o cais de Belém encheu-se de povo, que apupava os ministros, os desembargadores, toda essa ralé de ineptos figurões de lodo. E - tanto podem as ideias! - chorava ainda pelo príncipe, que nada lho merecia. D. João também soluçava, e tremiam-lhe muito as pernas que o povo de rastos abraçava.
A esquadra recebera 15 000 pessoas, e valores consideráveis, em dinheiro e alfaias. Levantou ferro na manhã de 29 [Domingo], pairando em frente da barra até o dia seguinte, às 7 horas, que foi quando Junot entrou em Lisboa. Os navios largaram o pano, na volta do mar, e fizeram proa a sudoeste, a caminho do Brasil. Enquanto a esquadra esteve à vista, pairando, os altos da cidade, donde se descobre o mar, apareciam coroados de povo mudo e aflito. As salvas dos navios ingleses que bloqueavam o Tejo troavam lugubremente ao longe. O sol baixava, a esquadra perdia-se no mar, ia-se toda a esperança, ficava um desespero, uma solidão... Soltou-se logo a anarquia da miséria, e na véspera da chegada do Anti-Cristo [Junot], Lisboa correu risco de um saque.

Napoleão estava burlado. O príncipe D. João, a bordo com as mãos nos bolsos, sentia-se bem remexendo as peças de ouro: ia contente com a sua esperteza saloia, única espécie de sabedoria aninhada no seu gordo cérebro. Bocejava ainda: mas porque o enjoo começava com os balanços do mar. É o que sucede à história, com os miseráveis balanços do tempo: vem o enjoo incómodo e a necessidade absoluta de vomitar" (Oliveira MARTINS, História de Portugal - Tomo II, 4.ª ed., Lisboa, Livraria Bertrand, 1887, pp. 237-240)..


Nos primeiros momentos, porém, se alguém pensava assim não o ousaria escrever. De facto, os primeiros documentos que se referem a este episódio falam em "transferência", "transladação", "retirada" ou "mudança" da corte. Nenhum deles fala clara e explicitamente em fuga. Acúrsio das Neves foi um dos primeiros a contornar este problema. Ao descrever este acontecimento no primeiro tomo da sua História Geral da Invasão dos Franceses em Portugal (publicado em 1809), começa por colocar em epígrafe dois versos em latim de uma Écloga (1,3) de Virgílio:     

Nós deixamos o solo da nossa pátria, e abandonamos os doces campos:
Nós fugimos da nossa pátria.                                                                                                                                                         


Nota: O segundo excerto em latim citado neste excerto é um fragmento do poema Tristia de Ovídio, obra composta no e sobre o exílio: Este era o aspecto de Tróia quando capturada.

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Edital do Intendente Geral da Polícia, Lucas de Seabra da Silva (27 de Novembro de 1807)

Regência instituída a 26 de Novembro de 1807



De acordo com o Decreto de 26 de Novembro de 1807, eram estes os membros do Governo da Regência:


1. Marquês de Abrantes, Presidente;
2. Francisco da Cunha de Meneses, Tenente-General do Exército;
3. Principal Castro, Conselheiro e Regedor das Justiças;
4. Pedro de Mello Breyner, Conselheiro e Presidente do Real Erário;
5. D. Francisco de Noronha, Tenente General e Presidente da Mesa da Consciência e Ordens; 
6. Conde Monteiro Mor, Presidente do Senado da Câmara de Lisboa (em caso de faltar algum dos anteriores);
7. Conde de Sampaio, primeiro Secretário;
8. João António Salter de Mendonça, Desembargador do Paço e Procurador da Coroa;
9. Miguel Pereira Forjaz, Secretário substituto (em caso de impedimento do primeiro Secretário).

Este Governo exerceu as suas funções (maioritariamente ao serviço dos exércitos invasores) até ao dia 1 de Fevereiro de 1808, data em que foi formalmente eliminado por Junot.


Como se tornou pública a decisão da "transferência" da corte



No dia 26 de Novembro, o príncipe regente compôs o seguinte decreto, bem como as suas instruções. Contudo, estes documentos somente serão afixados em edital dois dias depois. Foi assim que os portugueses souberam que o monarca abandonava o país, não sem deixar de determinar para se receber e acolher o invasor nos melhores termos possíveis: 






Decreto do Príncipe Regente D. João, 

pelo qual declara a sua intenção de mudar a Corte para o Brasil, 

erigindo uma Regência para governar em sua ausência



        Tendo procurado por todos os meios possíveis conservar a neutralidade de que até agora têm gozado os Meus Fiéis e Amados Vassalos, e apesar de ter exaurido o Meu Real Erário e de todos os mais sacrifícios a que me tenho sujeitado, chegando ao excesso de fechar os portos dos Meus Reinos aos Vassalos do Meu antigo e leal Aliado, o Rei da Grã-Bretanha, expondo o comércio dos Meus Vassalos à total ruína, e a sofrer por este motivo [um] grave prejuízo nos rendimentos da Minha Coroa. Vejo que pelo interior do Meu Reino marcham Tropas do Imperador dos Franceses e Rei de Itália, a quem eu me havia unido no Continente, na persuasão de não ser mais inquietado; e que as mesmas se dirigem a esta Capital. 
E querendo eu evitar as funestas consequências que se podem seguir de uma defesa que seria mais nociva que proveitosa, servindo só de derramar sangue em prejuízo da humanidade, e capaz de acender mais a dissensão de umas Tropas que têm transitado por este Reino com o anúncio e promessa de não cometerem a menor hostilidade; conhecendo igualmente que elas se dirigem muito particularmente contra a Minha Real Pessoa, [e] que os Meus leais Vassalos serão menos inquietados, ausentando-me Eu deste Reino: Tenho resolvido, em benefício dos mesmos Meus Vassalos, passar com a Rainha Minha Senhora e Mãe [e] com toda a Real Família para os Estados da América, [e] estabelecer-me na cidade do Rio de Janeiro até à Paz Geral.
E considerando mais quanto convém deixar o Governo destes Reinos naquela ordem que cumpre ao bem deles e de Meus Povos, como coisa a que tão essencialmente estou obrigado, tendo nisto todas as considerações, que em tal caso Me são presentes: Sou servido nomear para na Minha Ausência governarem e regerem estes Meus Reinos, o Marquês de Abrantes, meu muito amado e prezado primo; Francisco da Cunha de Meneses, Tenente General dos meus Exércitos; o Principal Castro, do Conselho e Regedor das Justiças; Pedro de Mello Breyner, do Meu Conselho, que servirá de Presidente do Meu Real Erário na falta e impedimento de Luís de Vasconcelos e Sousa, que se acha impossibilitado com as suas moléstias; Dom Francisco de Noronha, Tenente General dos meus Exércitos e Presidente do Mesa da Consciência e Ordens; e na falta de qualquer deles o Conde Monteiro Mor, que tenho nomeado Presidente do Senado da Câmara; com a assistência dos dois Secretários, o Conde de Sampaio e, em seu lugar, Dom Miguel Pereira Forjaz, e do Desembargador do Paço e meu Procurador da Coroa, João António Salter de Mendonça, pela grande confiança que de todos eles tenho, e larga experiência que eles têm tido das coisas do mesmo Governo. Tendo por certo que os meus Reinos e Povos serão governados e regidos por maneira que a minha consciência seja desencarregada; e eles, governadores, cumpram inteiramente a sua obrigação, enquanto Deus permitir que Eu esteja ausente desta capital, administrando a Justiça com imparcialidade, distribuindo os prémios e castigos conforme os merecimentos de cada um. Os mesmos Governadores o tenham assim entendido, e cumpram na forma sobredita e na conformidade das instruções que serão com este Decreto por Mim assinadas; e farão as participações necessárias às Repartições competentes.
Palácio de Nossa Senhora da Ajuda, em vinte e seis de Novembro de mil oitocentos e sete.
Com a Rubrica do Príncipe N.S.

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Instruções a que se refere o Real Decreto de 26 de Novembro de 1807


Os Governadores que houve por bem nomear pelo Meu Real Decreto da data destas, para na Minha Ausência governarem estes Reinos, deverão prestar o Juramento do estilo nas mãos do Cardeal Patriarca e cuidarão com todo o desvelo, vigilância e actividade na administração da Justiça, distribuindo-a imparcialmente; e conservando em rigorosa observância as leis deste Reino.
Guardarão aos Nacionais todos os Privilégios que por Mim e pelos Senhores Reis Meus Antecessores se acham concedidos.
Decidirão à pluralidade de votos as consultas que pelos respectivos Tribunais lhes forem apresentadas, regulando-se sempre pelas leis e costumes do Reino.
Proverão os Lugares de Letras e os Ofícios de Justiça e Fazenda, na forma até agora por Mim praticada.
Cuidarão em defender as pessoas e bens dos Meus leais Vassalos, escolhendo para os Empregos Militares as que deles se conhecer serem beneméritas.
Procurarão, quanto possível for, conservar em paz este Reino; e que as Tropas do Imperador dos Franceses e Rei de Itália sejam bem aquarteladas e assistidas de tudo que lhes for preciso, enquanto se detiverem neste Reino, evitando todo e qualquer insulto que se possa perpetrar, e castigando-o rigorosamente, quando aconteça; conservando sempre a boa harmonia que se deve praticar com os Exércitos das Nações, com as quais nos achamos unidos no Continente.
Quando suceda, por qualquer modo, faltar algum dos ditos Governadores, elegerão à pluralidade de votos quem lhe suceda. Confio muito da sua honra e virtude, que os Meus Povos não sofrerão incomodo na Minha ausência; e que, permitindo Deus que volte a estes Meus Reinos com brevidade, encontre todos contentes e satisfeitos, reinando sempre entre eles a boa ordem e tranquilidade que deve haver entre Vassalos, que tão dignos se têm feito do meu Paternal Cuidado.
Palácio de Nossa Senhora da Ajuda, em vinte e seis de Novembro de mil oitocentos e sete.

Príncipe

[Fonte: Joaquim José Pereira de Freitas, Biblioteca Histórica, Política e Diplomática da Nação Portuguesa - Tomo I, Londres, Casa de Sustenance e Strecht, 1830, pp. 33-37].



*

Para além destes dois documentos, o Príncipe Regente ainda mandou expedir, através do seu ministro António de Araújo e Azevedo, o seguinte aviso aos Juízes de Fora e Corregedores das cidades e vilas do país. Trata-se de um documento muito pouco conhecido (entre dezenas de obras consultadas, somente o vimos transcrito num fólio manuscrito compilado num volume com vários textos impressos e manuscritos desta época, existente na Biblioteca Nacional) que complementa os anteriores:


Aviso para se aprontarem víveres à tropa francesa



O Príncipe Regente Nosso Senhor é servido que Vossa Mercê apronte todos os víveres que forem necessários e lhe forem requeridos para as tropas francesas que comanda o General em Chefe Junot; Recomendando o mesmo Senhor que não haja demora nesta diligência, e que Vossa Mercê tenha todo o cuidado e faça as diligências para que os povos se conservem em toda a boa ordem e tranquilidade que devem ter com as referidas tropas.
Deus Guarde a Vossa Mercê.
Palácio de Nossa Senhora da Ajuda, em 26 de Novembro de 1807.
António de Araújo e Azevedo.

Providências para a retirada da corte

Assim que D. João foi avisado, no dia 24 de Novembro, pelo Coronel Lecor, de que os franceses estavam na zona de Abrantes, foi reunido um Conselho de Estado extraordinário em Mafra, onde se determinou a "transferência" da corte para o Brasil. Segundo José Acúrsio das Neves, "todas as providências foram dadas para um pronto embarque, para o qual foram avisados oficialmente os Ministros de Estado, os Conselheiros, e as personagens distintas, que o Príncipe Regente resolveu que o acompanhassem. Insinuações e ordens amplas foram igualmente dadas para se receberem a bordo da esquadra e dos navios de transporte que se achavam prontos, todos os portugueses que quisessem sair e pudessem acomodar-se neles, e com preferência os indivíduos do corpo militar e da marinha, aos quais foi dada a liberdade de irem ou ficarem, à excepção daqueles a que por ordens particulares se determinou o destino. Até se expediram ordens ao consulado para se facilitarem os embarques de facto, e mesmo de fazendas dos passageiros, sem pagarem direitos. Nada escapou à vigilância do Soberano para auxiliar a retirada de todos os seus vassalos que queriam fugir à escravidão; mas eram muitos os que pretendiam embarcar, e poucos os navios" (in José Accursio das NEVESHistória Geral da Invasão dos Franceses em Portugal, e da Restauração deste Reino – Tomo I, 1809, Lisboa, pp. 162-163).
A esse respeito, nesse mesmo dia 24, entre muitos outros expedientes e avisos que se fizeram, António de Araújo de Azevedo, em nome da Secretaria dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, dirigiu a seguinte ordem ao Monteiro Mor do Reino e Governador do Reino do Algarve, o Conde de Castro Marim, D. Francisco de Melo da Cunha Mendonça e Meneses, que se encontrava precisamente na província que governava:

O Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor o Príncipe Regente Nosso Senhor, tendo resolvido retirar-se para o Brasil em atenção às presentes circunstâncias, determina que Vossa Excelência haja de fazer aprontar todas as embarcações que se acharem nos portos desse Reino [do Algarve] a fim de conduzirem todas as pessoas que quiserem acompanhar a Sua Alteza Real, cujas despesas e transportes lhe serão exactamente satisfeitas, tirando Vossa Excelência de qualquer cofre o dinheiro necessário para fornecer de víveres as ditas embarcações.
Deus Guarde a Vossa Excelência.
Palácio de Mafra, 24 de Novembro de 1807.

António de Araújo de Azevedo.
Muito provavelmente esta ordem foi recebida dias depois da corte estar em mar alto... Foi por isso que o conde não partiu para o Brasil? Não. O motivo porque ninguém saiu do Algarve para se juntar à corte foi anotado pelo próprio conde, três meses mais tarde: "infelizmente sucede o não achar-se nos referidos portos embarcação alguma susceptível a uma semelhante viagem".
Estaria assim tão convencido o futuro Marquês de Olhão?


fonte: arqnet 
Conde de Castro Marim, 
futuro Marquês de Olhão

Como o príncipe regente soube da invasão



Desde Junho de 1806 que o príncipe regente D. João tinha estabelecido a sua residência no palácio contíguo ao convento de Mafra, sendo aí que se reunia com o seu Conselho de Estado, cujos membros estavam divididos, entre apoiantes dos franceses ou dos ingleses, como conta o 7.º Marquês da Fronteira:


"Joaquim António de Araújo, mais tarde Conde da Barca, que era Ministro de Estado e antigo diplomata, e outros cavalheiros, entre eles, meu tio, o Conde da Ega, que estava por Embaixador em Madrid, eram partidários da política francesa e receavam que, rejeitando o nosso Governo as suas pretensões, os exércitos de Napoleão, que tinham ocupado e mesmo conquistado uma parte da Europa, invadissem Portugal e expulsassem a dinastia de Bragança.
O Marquês de Belas, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, Conde de Linhares, e outros, esperavam tudo de nossos antigos aliados, os ingleses, e opunham-se às exigências do Governo francês.
Isto fazia com que o Príncipe Regente, naturalmente tímido e indeciso, a nada se decidisse, apesar das duas embaixadas sucessivas do Marechal Lanes e General Junot à corte de Lisboa, os quais nada conseguiram, ainda que foram muito bem acolhidos pelo Príncipe, que fez ao Marechal Lanes a honra de ser padrinho dum de seus filhos".
Em Outubro de 1807, ainda segundo o mesmo autor, "o Príncipe nada decidiu" quando ouviu as primeiras notícias de uma invasão possivelmente iminente, conhecidas na corte através do embaixador de Portugal na França, que sendo obrigado a sair daquele país, viu na sua passagem por Bayonne as tropas de Junot acantonadas. Por outro lado, "o nosso Embaixador em Madrid, meu tio o Conde da Ega, não soube da direcção do exército francês e se ele queria invadir Portugal pelo norte ou pelo sul, senão quando ele estava a vinte léguas da nossa fronteira da Beira Baixa, e partiu então para Lisboa, onde teve diferentes entrevistas com o Príncipe e com o Governo, mas sem nada decidirem.
Meu tio Alorna, que comandava a província do Alentejo, pedia instruções e respondia-se-lhe que recebesse Junot como um aliado. Em vista disto, tomou, sob sua responsabilidade, a deliberação de reunir todas as forças do Alentejo e escreveu directamente ao Príncipe [...], dizendo-lhe «que, visto o abandono em que os nossos aliados ingleses nos deixavam, anuísse às reclamações da França, fechando-lhes os portos, e que combatesse a invasão armada do exército francês, se, apesar de se anuir às reclamações do seu governo, ele continuasse a avançar. Que Portugal não tinha exército para invadir um país qualquer, mas para defender a sua nacionalidade e a dinastia tinha 40.000 homens armados e prontos a cumprirem o seu dever. Que havia poucos anos, tinha combatido no Rossilhão contra os franceses, na divisão auxiliar, e que vira os nossos soldados baterem-se com coragem, defendendo com entusiasmo as suas bandeiras».
Anos depois, soube que os cortesãos, em Mafra, tinham dito ao Príncipe, quando ele recebeu aquela carta: «O Marquês sempre foi doido, mas, depois que perdeu os dois filhos, está tonto. Ninguém pode resistir ao exército de Napoleão». Os únicos indivíduos que deram importância à opiniao do meu tio foram o Marquês de Belas e D. Rodrigo de Sousa Coutinho. A fugida vergonhosa da Casa de Bragança para o Brasil estava decretada e nao havia forças para o contrário.
 Fonte: BND
D. João Príncipe Regente de Portugal
Gravura de João Cardini (1807)

O Marquês de Alorna não teve resposta à sua carta e mesmo a correspondência ordinária do Ministério da Guerra cessou. As notícias que recebia da capital eram as que lhe davam os numerosos parente e amigos que todos lhe pediam que salvasse a pátria e combatesse a invasão, o que ele desejava mas não podia fazer, porque tinha ordens e instruções em contrário e apenas tinha o comando duma província e de pequena parte do exército português, pois não podia dispor de mais de 6.000 homens.
Fez, contudo, um grande serviço ao Príncipe.
Vendo que na Corte nada se sabia da marcha do exército francês, do qual ele também ignorava os movimentos, e parecendo-lhe que ele devia ter entrado em Portugal, ou, pelo menos, estar na fronteira, ordenou aos seus três Ajudantes de Campo, os Coronéis Lecor e Boucachar e Major Gaibão, que marchassem em diferentes ocasiões ao encontro daquele exército e que verificassem onde ele estava, que estrada tomava e quantos dias de marcha lhe seriam precisos para ocupar a capital.
O Coronel Lecor, em desempenho daquelas ordens, encontrou a vanguarda do exército de Junot a pouca distância de Abrantes, junto ao Sardoal, tendo atravessado a Beira Baixa, e, calculando que em seis dias, podia o mesmo exército estar às portas de Lisboa, partiu logo para Mafra, onde chegou em trinta horas, apesar da grande distância e dos péssimos caminhos. Foi só então que o Príncipe soube que o exercito de Napoleão havia já trinta horas que estava a vinte e quatro léguas da capital!
O quartel general de Junot tinha saído de Paris em Agosto e estes acontecimentos davam-se em Novembro! É levar a ignorância ao seu extremo!” (in Memórias do Marquês de Fronteira e d’Alorna D. José Trazimundo Mascarenhas Barreto ditadas por ele próprio em 1861 – Parte Primeira e Segunda - 1802 a 1824, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1928, pp. 25-29).                                                                                         

O percurso de Salamanca a Abrantes visto pelo General Foy





















[Fonte: Général FOY, Histoire de la guerre de la péninsule sous Napoléon – Tome II, Paris, Baudouin Frères Editeur, 1827, pp. 351-367]




Ver num mapa maior



A azul, o percurso de Salamanca a Alcántara.
A amarelo, o percurso da vanguarda (composta por uma companhia de atiradores, o 70.º regimento de infantaria, duas companhias de sapadores catalães, o regimento de hussardos espanhóis de Maria Luísa, as 1.ª e 2.ª divisões de Infantaria, e a divisão de Carrafa).
A azul claro, a passagem da fronteira do restante corpo do exército. Talvez em Zebreira, este restante corpo foi dividido em duas colunas (assinalas a verde e a vermelho, respectivamente).  
Em Castelo Branco, o exército voltou a dividir-se: A vanguarda (a amarelo), agora já mais pequena, continuou o percurso de Castelo Branco até Abrantes por um caminho praticável por homens e cavalos. O Estado-Maior, a 1.ª Divisão e maior parte das colunas da retaguarda e algumas carruagens com artilharia seguiram de Castelo Branco a Abrantes pela estrada mais larga, mas que contava com bastantes dificuldades (a violeta)

Chegada dos invasores a Abrantes



Mapa de Abrantes e arredores (1801)


No dia 24 de Outubro a vanguarda do exército de Junot entrava em Abrantes. Um dia depois, nessa mesma cidade, o General em Chefe francês escreve a Napoleão (Jean-Andoche JUNOT, Diário da I Invasão Francesa, pp. 98-100): 
"Depois de marchas excessivamente penosas em regiões sem quaisquer recursos e por caminhos horrorosos, atravessados a cada passo por torrentes, e sem ter recebido uma ração de pão desde que saíram de Alcántara, as minhas duas primeiras divisões chegaram, finalmente, a Abrantes, mas deixando para trás cerca de 1200 homens que serão recolhidos pelos diversos destacamentos que deixei para esse efeito; a tropa está tão estafada que não pode seguir adiante sem repouso, e estou decidido a dar-lhe aqui uma paragem. Esta cidade apresenta-me menos recursos que os que eu pensava, mas ainda assim poderei dar-lhes carne, legumes, vinho e algum pão com que eles recuperarão um pouco das suas forças. A 3.ª divisão e a minha cavalaria, que ficaram retidas por um dia em Espanha por causa de uma torrente, só poderão chegar aqui a 27 ou 28, pelo menos. Perderei alguns homens por causa da fadiga e mais alguns outros, retardatários e pilhantes, terão sido assassinados pelos habitantes, aos quais, segundo o seu louvável costume, tudo terão roubado e queimado na retaguarda das colunas a pretexto de ir procurar pão e não poder acompanhá-las. [...] Vossa Majestade sabe que só tenho comigo um Regimento espanhol; prouvera a Deus que não tivesse nenhum; é impossível ver algo mais mal comportado, mais indisciplinado e de maior atrevimento. O General [espanhol] Carrafa, que comanda a Divisão, é um valente homem, mas os oficiais não valem nada e não tratam das suas obrigações. Também não devo ocultar a Vossa Majestade que é ao Governo espanhol que devemos a miséria em que nos encontramos.

De Salamanca até Alcántara, nada estava preparado, e no trajecto, já de si tão penoso, a minha tropa mal recebeu meia ração por dia; embrenhámo-nos nas serras de Portugal sem saber como lá poderíamos viver. [...] Como não trazíamos nada connosco, tivemos falta de tudo, a não ser de vinho, o que causou muito mal, pois, sem ter nada para comer e bebendo vinho forte, os soldados foram vitimados por uma terrível embriaguez que matou vários deles. Mas enfim, Sire, abrem-se-nos agora as planícies de Portugal, e a 30 de Novembro flutuarão sobre o magnífico porto de Lisboa as bandeiras de Vossa Majestade. As privações e as fadigas do meu exército, tudo será esquecido, Sire, se tivermos conseguido executar as ordens de Vossa Majestade. 
Está em Lisboa uma esquadra russa que dizem ter vindo de Corfu; dizem também que Sidney-Smith cruza com a sua esquadra em frente do porto, mas não se fala de tropas de desembarque; também não ouço falar do exército português. [...] Em Lisboa, não esperavam ver-me tão depressa, e ainda há 4 dias me suponham nas bandas de Salamanca; também ainda não vi ninguém da parte do Governo. O Príncipe ainda estava em Lisboa no sábado passado, e não se falava lá da sua partida; ignoro o que ele decidiu depois disso. [...] A artilharia das 2.ª e 3.ª Divisões, todas as bagagens e todos os transportes militares estão na retaguarda e levarão muito tempo para chegar junto de nós; dei ordens para tudo isso, mas há grandes dificuldades para a passagem dos furgões pelos caminhos por onde nós viemos; dei ordens para a sua reparação, sem a qual isso seria impossível. [...] As duas Divisões espanholas, que segundo a convenção [assinada juntamente com o Tratado de Fontainebleau] deviam entrar em Portugal ao mesmo tempo que eu, uma pelo Alentejo e a outra pela Galiza, ainda não fizeram qualquer movimento, o que necessariamente me causará dificuldades para a ocupação dos portos da margem esquerda do Tejo e também para a do Porto; se de outro modo o não puder fazer, empregarei para isso os poucos espanhóis que tenho comigo e muito feliz me sentirei por assim me livrar deles".
Gravura da época, onde se vê o estado do exército que entrou em Portugal






Ainda no mesmo dia 24 de Novembro, Junot publica o seguinte decreto:




Decreto ordenando a requisição de sapatos para os miitares franceses


Ordena-se ao Corregedor de Tomar, ou a quem seu cargo servir de intimar a todos os Juízes de Fora das vilas e aldeias do seu distrito, de fazer entregar ao portador desta ordem, que é Manuel Álvares, todos os sapatos que houver nas terras aonde este se apresentar, para o que vai autorizado e munido das competentes ordens. 
Quartel-General de Abrantes, 24 de Novembro de 1807


Junot


PS: Os particulares são todos compreendidos nesta requisição.