sexta-feira, 29 de abril de 2011

Carta de Junot a Napoleão (29 de Abril de 1808)

Aviso da Secretaria de Estado da Guerra e da Marinha (29 de Abril de 1808)




[Fonte: Primeiro Suplemento à Gazeta de Lisboa, n.º 17, 29 de Abril de 1808].

Notícias publicadas na Gazeta de Lisboa (29 de Abril de 1808)



Lisboa, 29 de Abril. 


Mr. Seniavin, Almirante russiano [sic], deu os dias passados, a bordo da sua nau, um grande jantar ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Duque de Abrantes, ao seu Estado-Maior e aos principais membros do Governo. Reinou nessa ocasião, bem como sempre, a mais ingénua cordialidade entre os indivíduos de ambas as nações, e fizeram-se brindes à saúde e à união dos dois grandes Monarcas, em que estão agora fitos os olhos de todo o universo, e em cujas mãos se acham os destinos de tantos povos. Sua Excelência o General em Chefe foi recebido a bordo da esquadra russiana com as honras devidas ainda menos àsua graduação que ao seu alto nome, aos seus títulos e à sua glória pessoal. 

A merecerem crédito algumas cartas de Madrid, Sua Majestade o Imperador e Rei concedeu uma audiência ao novo Rei de Espanha nas margens do Guipúzcoa, ao pé de Bayonne. Com impaciência se esperam saber os resultados daquele encontro, que tanto deve influir nos destinos da Espanha. 

Por decreto do Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor General em Chefe de 27 deste mês, foi mr. Devilliers nomeado por Secretário Geral da Intendência Geral da Polícia do Reino. 

Por outro decreto da mesma data, foi mr. Perron nomeado por Delegado de Polícia no Porto, debaixo das ordens do Senhor Conselheiro do Governo, Intendente Geral da Polícia do Reino [Lagarde]. 

Por cartas de Paris consta que o Senhor General Loison, Governador das Tulherias, Comandante duma das Divisões do Exército de Portugal, foi promovido por Sua Majestade à dignidade de Conde do Império, com as rendas de um feudo considerável. Alguns outros oficiais Generais do mesmo Exército receberam também a sua nomeação em qualidade de Barões. 

[Fonte: Primeiro Suplemento à Gazeta de Lisboa, n.º 17, 29 de Abril de 1808].


Ordem de Lagarde motivada por uns incidentes em Lisboa (29 de Abril de 1808)



O Conselheiro do Governo, Intendente Geral da Polícia do Reino de Portugal, participou a Sua Excelência o Duque de Abrantes, General em Chefe do Exército, os excessos recentemente cometidos no dia Sábado, 23 deste mês, nas Ruas Suja, da Amendoeira, da Mouraria, e Arco do Socorro. Sua Excelência, que tanto deseja fazer justiça ao bom espírito de que é animada a cidade de Lisboa, ouviu com o mais vivo desprazer que um ajuntamento tumultuoso que houve nestas quatro ruas tomara parte numa rixa particular entre alguns militares  (actualmente entregues a um Conselho de Guerra), donde resultaram violências culpáveis contra cinco soldados franceses, alheios daquela rixa, que pacificamente por ali transitavam; me encarregou de declarar que, no caso de se repetirem semelhantes delitos, serão deles responsáveis os bairros da cidade em que acontecerem, e que punirá grave e exemplarmente o menor atentado contra os soldados do seu Exército. E querendo Sua Excelência prevenir desde já o perigo de tumultos desta natureza, me ordenou que publicasse e fizesse executar as providências seguintes:

Art. I. Dos habitantes ou moradores nas Ruas Suja, da Amendoeira, da Mouraria, e Arco do Socorro, serão logo presos doze dos de pior fama e mais suspeitos pela sua anterior conduta, e conservados em prisão por três meses, caso não se declarem os verdadeiros instigadores e autores das desordens cometidas nas mesmas ruas no dia 23 deste mês.

Art. II. Todas as meretrizes que moram nestas quatro ruas serão obrigadas a evacuá-las inteiramente dentro de quatro dias, o mais tardar, depois da afixação da presente ordem, sob pena de serem logo presas, rapadas e desterradas de Lisboa e seu termo, no caso de se encontrarem depois daquele prazo.

Art. III. Todas as baiucas, tabernas ou casas de povo das quatro ruas acima referidas serão fechadas dentro de 48 horas, sem poderem tornar a abrir-se antes de passarem 6 meses, salvo se o dono denunciar alguns dos que tiverem tido parte nos excessos cometidos. Esta denúncia deverá fazer-se na Intendência Geral da Polícia do Reino (no Rossio) ou perante o Corregedor ou  Juiz do Crime do bairro.

Art. IV. Em caso de rixas, desordens ou qualquer tumulto nas praças públicas e ruas desta capital, é proibido a todo o habitante sair de casa ou loja com qualquer arma ofensiva ou defensiva, ou entrar em algum ajuntamento; a guarnição, a Guarda Militar da Polícia e outros oficiais de justiça ou agentes da polícia são os únicos encarregados de manter a ordem e tranquilidade em semelhantes ocasiões.

Art. V. Fica expressamente proibido na cidade de Lisboa e seus arrebaldes conservar em casa, trazer, fabricar ou vender espécie alguma de armas proibidas, entre as quais se contaram desde este momento os paus com ferrões, vulgarmente conhecidos pelo nome de chuços e cajados. Os que ainda os conservarem serão obrigados a entregá-los dentro de 48 horas na Intendência Geral da Polícia ou ao Corregedor ou Juiz do Crime do seu respectivo bairro; os quais os receberão, fazendo uma lista que me será remetida, o mais tardar, dentro de 8 dias, para eu determinar o lugar onde definitivamente devem depositar-se.

Art. VI. Aqueles em cuja casa, 4 dias depois da afixação do presente [edital], se acharem em Lisboa e seus arrebaldes chuços e cajados, serão condenados, por cada um deles, além de um mês de prisão, em 16.000 réis de multa para o denunciante.

Art. VII. Fica igualmente proibido conservar em casa, por qualquer motivo que seja, trazer, fabricar ou vender espécie alguma de punhal, estoque, ou espingarda de vento, ou outras armas proibidas pelas leis anteriores, sob pena de serem entregues à Comissão Especial [sic] estabelecida pelo decreto de 8 deste mês, para serem julgados conforme as Leis do Reino, e além disso condenados a uma multa de 48.000 réis para quem denunciar a existência de tais armas, onde quer que estiverem, depois do prazo de 6 dias fixado para o depósito, seja na Intendência Geral, seja perante o Corregedor ou Juiz do Crime do distrito do possuidor.

Art. VIII. Todos os que, não sendo funcionários militares ou civis, actualmente empregados, se acharem pelas ruas de Lisboa ou seus arrebaldes com armas ocultas, menos que não sejam munidos de uma licença formal e posterior à entrada do Exército francês, serão presos e levados à Intendência Geral para serem conduzidos perante a Comissão Especial, e julgados segundo o rigor das Leis contra os que usam de armas proibidas.

Art. IX. O artigo VII da presente ordem sobre punhais, estoques, espingardas de vento e outras armas proibidas é igualmente aplicável às províncias, e aí receberá a sua execução perante os Corregedores mores, Corregedores ordinários, Juízes de Fora e Juízes ordinários, doze dias, quanto muito, depois da sua publicação na capital de cada província.

ART. X. Todas as autoridades ligadas à polícia, especialmente a Guarda Militar de Lisboa, ficam encarregadas de concorrer, cada uma pela parte que lhe toca, para a mais severa execução da presente ordem, que será impressa, publicada e afixada em toda a parte onde preciso for. 

Lisboa, 29 de Abril de 1808. 

P. Lagarde. 



[Fonte: Suplemento Extraordinário à Gazeta de Lisboa, n.º XVIII, 3 de Maio de 1808].


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Nota:

Na última folha da versão desta ordem publicada em edital, acima inserida [e extraída da compilação Discurso do Imortal Guilherme Pitt...], pode ser lida a seguinte anotação manuscrita: “Estes grandes excessos foram que na Rua Suja correram [?] a facadas quantos soldados franceses ali apareceram – morrendo alguns deles”.

Acúrsio das Neves conta outra versão: “Aconteceu nesta mesma ocasião [da tentativa de captura do brigue Gaivota] uma desordem nas ruas Suja, da Amendoeira e vizinhas, que não teve outro princípio que o de uma pendência particular entre alguns soldados das três nações [portuguesa, espanhola e francesa], de que resultou ficarem mortos um português e um francês, sem outra consequência que a de concorrer ao motim uma grande parte do povo daquelas ruas, como era de esperar. Lagarde, de acordo com Junot, figurou disto uma sublevação, mandou prender doze homens dos mais suspeitos pela sua anterior conduta (como se a sua anterior conduta os fizesse responsáveis por crimes em que não tiveram parte), dentre os habitantes das mesmas ruas, para serem conservados por três meses na prisão, caso não declarassem os verdadeiros autores ou instigadores daquela desordem. Mandou fechar todas as tabernas, baiucas e casas de pasto daqueles sítios, por tempo de seis meses, salvo se o dono denunciasse algum que tivesse tido parte no motim. Isto é conhecer as verdadeiras regras da jurisprudência criminal, e uma bela teoria em matéria de delações! Tomou daqui pretexto para fulminar novas proibições sobre o fabrico, uso e conservação de todo o género de armas ofensivas e defensivas em Lisboa e seus arrebaldes, compreendendo até os cajados. Ainda falta o mais galante: mandou despejar das mesmas ruas todas as meretrizes, dentro de quatro dias, [sob] pena de serem presas, rapadas e desterradas. Podem ver-se estes chefes de obra [=obras-prima] da polícia francesa no edital de 29 de Abril[Fonte: José Accursio das Neves, Historia Geral da Invasão dos Francezes em Portugal - Tomo II, Lisboa, 1810, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, pp. 229-230].


Carta de Geoffroy Saint-Hilaire ao seu sogro, Isidore-Simon Brière de Mondétour (29 de Abril de 1808)

Talavera de la Reina, 29 de Abril [de 1808].


Meu caro pai*:

Aqui estamos a caminho de Lisboa, a duas jornadas de Madrid, numa bonita cidade chamada Talavera de la Reina. Na véspera da minha partida jantei na casa do Sr. Dennié [Intendente-Geral do Exército francês], que me disse que a sua mulher não tinha recebido nenhuma das suas cartas, ainda que ele tenha tido o cuidado de enviá-las pelo correio dos despachos [ou seja, o correio oficial]: ele supunha que este meio era o menos seguro, por causa de algumas medidas policiais que são usuais em certas épocas de operações militares. Eu tinha feito uso dos mesmos meios, e portanto fiquei preocupado em relação ao destino das cartas que escrevi à minha mulher**. Preocupa-me pensar que ela pode ter receado de tal modo a minha sorte que não sai da cama, o que acontecerá se não lhe chegar nenhuma das minhas cartas: é para evitar este inconveniente que arrisco [enviar] esta carta, ignorando se ela vos alcançará.
Estou numa estrada bem tranquila, cujos únicos inconvenientes são os maus albergues: seja como for, fiz-me acompanhar por dois militares que regressavam a Lisboa, os quais alimento com as minhas provisões. Estas precauções são inúteis; não as vou ostentar, para não ter de revelar demasiada pusilanimidade; contudo, participo-vos isto para vos tranquilizar acerca do meu caminho e para vos provar que sou exagerado em todos os meios que me devem permitir uma viagem feliz.
Também tomei precauções contra os maus albergues: trago comigo uma cama completa, madeiras de cama dobráveis, etc., por isso encontro-me bastante bem. Temos também bastantes provisões, nas quais não tocamos a não ser nos casos em que não encontramos absolutamente nada. Congratulamo-nos por estas precauções, dado que se pedimos alguma coisa, respondem-nos: Dai-nos o dinheiro, vamos comprar os ovos na casa deste, o vinho na daquele, etc., e a maior parte das vezes voltam dizendo que os comerciantes estão sem mercadorias. A Espanha está verdadeiramente na barbárie mais vergonhosa em relação a muitas coisas.
Não é que entre os espanhóis não haja muitos homens instruídos; os camponeses que sabem ler são proporcionalmente mais numerosos do que na França, e todos os estadistas um pouco relevantes são latinistas muito bons. Todos os notários do campo conversam admiravelmente em latim, o que se deve sem dúvida ao seu zelo pela religião; queremos conhecer a língua com a qual damos graças a Deus.
O General Leroy veio ver-me à cama, na véspera da minha partida, para me trazer uma carta para o seu cunhado, o General Kellermann, que exerce o comando a seis horas de Lisboa, em Setúbal. O General Loison está a quatro horas dessa capital e não no Porto, como me tinham inicialmente assegurado, e o General Margaron está na própria cidade de Lisboa.
Acabo de ser informado destes detalhes por um francês que regressava de Lisboa e que encontrei ao jantar.
Apressam-me para partir; termino esta carta pedindo-vos que apresenteis os meus respeitos à Sra. Martin, às senhoras da rua Monsieur-le-Prince*** , e, sobretudo, que não vos esqueçais de falar de mim a certos habitantes do Jardim das Plantas, sempre presentes no meu espírito.
Aceitai toda a minha devoção e os meus respeitos,

Geoffroy Saint-Hilaire

[Fonte: E.-T. Hamy, "La mission de Geoffroy Saint-Hilaire en Espagne et en Portugal (1808). Histoire et documents", in Nouvelles Archives du Muséum d'Histoire Naturelle, Quatrième série - Tome dixième, Paris, Masson et C. Éditeurs, 1908, pp. 1-66, pp. 38-39].

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Notas:

* Geoffroy Saint-Hilaire tinha casado em 1804 com Angélique Jeanne Louise Pauline Brière de Mondétour, filha de Isidore-Simon Brière de Mondétour, antigo recebedor-geral dos economatos no tempo de Luís XVI, que se tornara em 1801 presidente [maire] do 2º arrondissement de Paris, cargo que viria a conservar até 1808, quando Napoleão, a 16 Setembro desse mesmo ano, tornaria-o membro da comissão de finanças do Governo francês (curiosamente, 15 dias antes fora nomeado como cavaleiro do Império). 

*Segundo o editor da carta acima traduzida, a aludida correspondência de Geoffroy Saint-Hilaire à sua esposa, eventualmente de grande interesse, não foi encontrada após a morte desta última, em 1873.

*** As "senhoras da rua Monsieur-le-Prince" eram as Mesdemoiselles Petit, duas tias-avós da esposa de Geoffroy Saint-Hilaire. A 14 de Maio (já no Alentejo) e a 11 de Outubro de 1808 (depois de regressar à França), Geoffroy Saint-Hilaire escreveria-lhes pessoalmente.