sexta-feira, 29 de abril de 2011

Carta de Geoffroy Saint-Hilaire ao seu sogro, Isidore-Simon Brière de Mondétour (29 de Abril de 1808)

Talavera de la Reina, 29 de Abril [de 1808].


Meu caro pai*:

Aqui estamos a caminho de Lisboa, a duas jornadas de Madrid, numa bonita cidade chamada Talavera de la Reina. Na véspera da minha partida jantei na casa do Sr. Dennié [Intendente-Geral do Exército francês], que me disse que a sua mulher não tinha recebido nenhuma das suas cartas, ainda que ele tenha tido o cuidado de enviá-las pelo correio dos despachos [ou seja, o correio oficial]: ele supunha que este meio era o menos seguro, por causa de algumas medidas policiais que são usuais em certas épocas de operações militares. Eu tinha feito uso dos mesmos meios, e portanto fiquei preocupado em relação ao destino das cartas que escrevi à minha mulher**. Preocupa-me pensar que ela pode ter receado de tal modo a minha sorte que não sai da cama, o que acontecerá se não lhe chegar nenhuma das minhas cartas: é para evitar este inconveniente que arrisco [enviar] esta carta, ignorando se ela vos alcançará.
Estou numa estrada bem tranquila, cujos únicos inconvenientes são os maus albergues: seja como for, fiz-me acompanhar por dois militares que regressavam a Lisboa, os quais alimento com as minhas provisões. Estas precauções são inúteis; não as vou ostentar, para não ter de revelar demasiada pusilanimidade; contudo, participo-vos isto para vos tranquilizar acerca do meu caminho e para vos provar que sou exagerado em todos os meios que me devem permitir uma viagem feliz.
Também tomei precauções contra os maus albergues: trago comigo uma cama completa, madeiras de cama dobráveis, etc., por isso encontro-me bastante bem. Temos também bastantes provisões, nas quais não tocamos a não ser nos casos em que não encontramos absolutamente nada. Congratulamo-nos por estas precauções, dado que se pedimos alguma coisa, respondem-nos: Dai-nos o dinheiro, vamos comprar os ovos na casa deste, o vinho na daquele, etc., e a maior parte das vezes voltam dizendo que os comerciantes estão sem mercadorias. A Espanha está verdadeiramente na barbárie mais vergonhosa em relação a muitas coisas.
Não é que entre os espanhóis não haja muitos homens instruídos; os camponeses que sabem ler são proporcionalmente mais numerosos do que na França, e todos os estadistas um pouco relevantes são latinistas muito bons. Todos os notários do campo conversam admiravelmente em latim, o que se deve sem dúvida ao seu zelo pela religião; queremos conhecer a língua com a qual damos graças a Deus.
O General Leroy veio ver-me à cama, na véspera da minha partida, para me trazer uma carta para o seu cunhado, o General Kellermann, que exerce o comando a seis horas de Lisboa, em Setúbal. O General Loison está a quatro horas dessa capital e não no Porto, como me tinham inicialmente assegurado, e o General Margaron está na própria cidade de Lisboa.
Acabo de ser informado destes detalhes por um francês que regressava de Lisboa e que encontrei ao jantar.
Apressam-me para partir; termino esta carta pedindo-vos que apresenteis os meus respeitos à Sra. Martin, às senhoras da rua Monsieur-le-Prince*** , e, sobretudo, que não vos esqueçais de falar de mim a certos habitantes do Jardim das Plantas, sempre presentes no meu espírito.
Aceitai toda a minha devoção e os meus respeitos,

Geoffroy Saint-Hilaire

[Fonte: E.-T. Hamy, "La mission de Geoffroy Saint-Hilaire en Espagne et en Portugal (1808). Histoire et documents", in Nouvelles Archives du Muséum d'Histoire Naturelle, Quatrième série - Tome dixième, Paris, Masson et C. Éditeurs, 1908, pp. 1-66, pp. 38-39].

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Notas:

* Geoffroy Saint-Hilaire tinha casado em 1804 com Angélique Jeanne Louise Pauline Brière de Mondétour, filha de Isidore-Simon Brière de Mondétour, antigo recebedor-geral dos economatos no tempo de Luís XVI, que se tornara em 1801 presidente [maire] do 2º arrondissement de Paris, cargo que viria a conservar até 1808, quando Napoleão, a 16 Setembro desse mesmo ano, tornaria-o membro da comissão de finanças do Governo francês (curiosamente, 15 dias antes fora nomeado como cavaleiro do Império). 

*Segundo o editor da carta acima traduzida, a aludida correspondência de Geoffroy Saint-Hilaire à sua esposa, eventualmente de grande interesse, não foi encontrada após a morte desta última, em 1873.

*** As "senhoras da rua Monsieur-le-Prince" eram as Mesdemoiselles Petit, duas tias-avós da esposa de Geoffroy Saint-Hilaire. A 14 de Maio (já no Alentejo) e a 11 de Outubro de 1808 (depois de regressar à França), Geoffroy Saint-Hilaire escreveria-lhes pessoalmente.