Torres Vedras, como cabeça de Comarca, e pouco distante da vila de Mafra e do Real Palácio onde residia o nosso Soberano com a Rainha Sua Augusta Mãe e mais Pessoas Reais, no tempo em que a primeira invasão dos franceses fez determinar o seu ânimo a transferir-se para os vastos domínios da América, foi a primeira em participar da consternação e saudade justamente excitadas pela ausência do nosso adorado Príncipe. Quando os habitantes começavam a lamentar-se de tamanha perda, nos primeiros dias de Dezembro de 1807, logo no dia 6 do mesmo mês de improviso foram constrangidos a franquear quartéis e munições de boca para a tropa de mais de duas brigadas, ou de quase toda a segunda divisão, cujo comando ainda então estava (como o fora pela marcha) provisoriamente no Brigadeiro Charlot, que o largou logo nos dias seguintes ao General Loison, posteriormente chegado de França. No dia 8 do mesmo mês adiantou-se para a praça de Peniche o General de Brigada Thomiers com dois batalhões, e passados alguns dias retrocederam dois para Mafra, onde Loison estabeleceu ordinariamente o seu Quartel-General, e permaneceram aqui fixos os dois Batalhões dos Regimentos 12 e 15 de infantaria ligeira, que avultavam a perto de três mil homens, debaixo das imediatas ordens do Brigadeiro Charlot.
Nos primeiros dias padeceu esta vila não só os gravíssimos incómodos do alojamento, mas quase todo o peso das requisições para a inteira subsistência da tropa; ainda mesmo depois que o seu fornecimento esteve à conta dos contratadores, continuou a haver diversas requisições para o tratamento dos Generais, entre os quais se distinguiu pela sua parcimónia e desinteresse o mencionado General Charlot, merecendo por isso, e pelas disposições pacíficas que constantemente mostrou, ser com justiça reputado o mais humano dos empregados franceses que vieram a Portugal.
A sua moderação contribuiu em grande parte para a glória de que com ufania pode jactar-se esta vila de haver negado o menor obséquio público ao intruso Governo francês, de que não podem desvanecer-se outras maiores povoações, que aliás não gemiam debaixo da força militar. Igualmente contribuiu ela para nunca se interromperem as funções do culto, nem mesmo a do Natal, e para se fazerem com boa ordem, e até com esplendor. Quando chegou o tempo mais quente, fez o General aliviar a vila dalgum peso de tropa, mandando destacar duas Companhias para a da Lourinhã, e duas para o lugar do Turcifal. Enfim, nos últimos dias de Maio levantou-se o quartel do General Charlot, quando partiu com o Batalhão do Regimento 12, e com os outros que estavam em Mafra, para a frustrada expedição do Douro e Porto comandada por Loison. Pelo mesmo tempo se transferiu o Batalhão do Regimento 15 para Mafra, e veio para aqui um dos alojados na praça de Peniche, de que era Comandante o Major Bertrand, o qual apenas se demorou um dia. Desde então ficou esta vila aliviada de tropa efectiva; mas não deixou de ser frequentada e incomodada por alguns destacamentos, pelo trânsito dos Oficiais do Estado-Maior, e também de vários corpos do Exército*.
Foi nesta ocasião que principiaram a chegar pouco a pouco as noticias de que a expedição do General Loison se tinha malogrado, e que as províncias do norte se davam as mãos para destruir o intruso governo e proclamar o nosso legitimo Soberano; soube-se depois que este heróico entusiasmo já chegava à cidade de Leiria, e que bem depressa as outras povoações da Estremadura, ainda oprimidas pelo inimigo, poderiam patentear os seus verdadeiros sentimentos. Esperava-se com impaciência a aproximação do Exército nacional, auxiliado com o socorro que se dizia chegado de Inglaterra, mas a demora e a incerteza das notícias concorriam para a geral ansiedade. Enfim, quando já mal se acreditavam estes boatos, de repente, na tarde de 17 de Agosto de 1808, constou da batalha da Roliça, ou mais propriamente da Zambujeira (em cuja eminente e vantajosa posição se achava o inimigo) pelos que se retiravam feridos do Exército, e por alguns prisioneiros que aqui vieram pernoitar, escoltados por uma patrulha comandada pelo Capitão Pitton do Corpo da Polícia [de Lisboa]. Nessa acção era comandado o corpo da tropa francesa pelo General Delaborde, o qual, vendo-se obrigado a retirar-se depois de sustentar o resto do dia com evoluções, se aproveitou da noite para largar de todo o campo, e tomou a estrada que diante da quinta da Bugalheira se dirige a Runa, onde descansou poucas horas, prosseguindo a marcha pelo caminho [do Outeiro] da Cabeça, Enquanto o corpo principal seguia esta derrota, não deixavam de passar pela vila em toda a noite soldados dispersos, que eram outras tantas testemunhas evidentes da vitória dos nossos aliados; pediu ela sem dúvida públicos aplausos, porém houve a necessária prudência em sufocá-los, o que serviu para livrar a vila dalgum severo castigo; pois assim mesmo o General Junot se mostrou ressentido, e pediu satisfação por serem maltratados os seus soldados, talvez somente ofendidos pelas mostras de júbilo que viam em todas as fisionomias pela sua derrota. Quando se pensava que no seguinte dia 18 de Agosto entraria o Exército aliado, esperado com tanto alvoroço, aconteceu ao contrário espalhar-se o susto e perturbação, pela notícia de que vinha próximo todo o Exército francês, e na frente dele o mesmo General em Chefe, e que com rigorosas ordens se mandavam aprontar quartéis, víveres e forragens. Foi o primeiro mensageiro desta notícia o Meirinho, que então era do Provedor da comarca, o qual, recolhendo-se na inteligência de achar a capital da comarca restaurada, veio encontrar-se com o Exército francês, e teve de executar as ordens de Junot. Este General entrou com o seu Estado-Maior pelas três horas da tarde do indicado dia 18, rodeado dos Generais quase todos e de uma forte escolta de cavalaria, a qual se dividiu e ocupou logo todas as entradas da vila, não se permitindo a saída de alguém sem guia ou passaporte do Comandante da praça, que então foi o Chefe dos Gens d'armes [sic]. Somente os Oficiais do Estado-Maior tiveram alojamentos, porque os dos corpos ficaram com os mesmos sobre os campos vizinhos. Concorreram aqui muitos indivíduos não militares, uns por empregados e unidos ao Exército nas suas diversas repartições, e outros meramente por buscarem o seu abrigo, receosos de serem sacrificados ao seu furor nas pequenas povoações. Ainda que nos armazéns existissem alguns sobressalentes do antigo fornecimento, nada eram para suprir às urgências de um Exército que se computava em 20.000 homens sem contar os seus agregados: por isso foram indispensáveis as requisições violentas para a entrega dos géneros necessários; as quais, para mais pronto efeito, se faziam por pregões, ameaçando-se os habitantes que se subtraíssem com as penas de morte e do incêndio das suas casas, que seriam examinadas. No dia 19 de tarde saiu pela estrada da Lourinhã Junot com os outros Generais (entrando nesse número Delaborde, que já se lhe havia reunido) e com os seus respectivos ajudantes a observar a situação do Exército aliado. Não dava indícios de entrar em combate com tanta brevidade como depois determinou, talvez movido pelas notícias de que se via o mar coberto de transportes na altura correspondente ao Vimeiro, que era a posição tomada pelo Exército inglês: o certo é que na tarde do dia 20 convocou os Generais a conselho, e o resultado foi levantar-se rapidamente a tropa, e começar a marchar depois das cinco horas pela mesma estrada da Lourinhã. Na manhã deste dia alguns soldados extraviados haviam roubado o Convento dos Religiosos Arrábidos do Barro, penetrando até ao sacrário, e espalhando as sagradas partículas sobre o pavimento da capela mor**. Enquanto se cometia este horroroso desacato, tinha o General Junot mandado matar dois mendigos desconhecidos, um deles espanhol idoso, o outro asiático coxo, que foram presos como suspeitos de espiões; outro miserável da mesma fortuna, residente nesta vila e quase cego, que estava juntamente preso, escapou de experimentar igual sorte pela liberdade e veemência com que falou em sua defesa o Desembargador Vigário da Vara chamado por ordem positiva de Junot para interrogar os presos, e depor da sua conduta, e para ser espectador da injusta e bárbara morte que tiveram, sem que fossem convencidos do crime imputado nem admitidos a algum preparo cristão, e nem de modo algum tratados como homens, mas antes como feras pela indiferença e avidez de matá-los; bem fácil é de ver que esta crueldade foi cometida para exemplo que indicasse como seria castigada qualquer comunicação com o Exército aliado; mas ao mesmo tempo que se empregavam tais meios próprios da cobardia, doutra parte se anunciava com arrogância que os ingleses, menos felizes no campo que no mar, seriam depressa derrotados e reduzidos à extremidade de embaraçar-se, cedendo a vitória, que se contava por certa, e como tal era aplaudida na noite antecedente com luminárias obrigadas por ordem do mesmo Junot.
No dia 21 de Agosto pelas 9 horas da manhã começou a ouvir-se o estrondo de artilharia; no primeiro tempo do combate vieram notícias agradáveis aos franceses; mas não tardou muito que lhes chegassem outras, com que se mostraram descontentes, posto que ainda alentados, ao menos aparentemente; enfim correram os boatos duma derrota completa, que se viam verificados pelos estragos, e até depois pela própria confissão dos que se recolhiam do campo. A tropa entrou de noite, e buscou acampar-se como antes de ir para a batalha. No dia seguinte viam-se companhias comandadas por um cabo de esquadra (tal havia sido a carnagem na oficialidade); e todo o grande trem de artilharia reduzido a três carretas. Apesar de ser tão visível e avultado o destroço, ainda Junot se ocupava com a impostura de fazer iluminar a vila em aplauso da vitória, e seguindo igual rotina se ocupava o impudente Lagarde em remeter ao Juiz pela Ordenação, que então servia, um ofício enviando-lhe juntamente o Boletim do Exército, e recomendando-lhe que só acreditasse o que ele lhe dizia. No meio de imposturas tão ridículas, não se ocultava o temor, confusão e impaciência de Junot. Ele logo na manhã do dia 22 chamou ao seu quartel os Generais e lhes propôs pedir capitulação, o que foi adoptado, e por ter sido admitida pelos vencedores, salvou aqueles, e privou estes do triunfo mais completo e importante, o qual parecia livre de contingência à vista da grande perda do inimigo, e muito mais subindo consideravelmente a força do Exército inglês com os reforços recebidos no mesmo tempo da batalha pelo pasmoso desembarque que se efectuou no sítio do Porto Novo, ou na foz do rio do Vimeiro***. Apenas haveria três meses depois que o General Charlot tinha corrido a costa, e recolhendo-se de observá-la, dissera é de ferro e não há que temer desembarque.
Foi encarregado de negociar a capitulação o General Kellermann, e enquanto este partia para o Quartel-General inglês, saiu Junot para Lisboa, onde conseguiu entrar na atitude de vitorioso. Logo nessa tarde saíram as Divisões com os seus respectivos Generais à frente, tomando Loison a estrada de Mafra, onde parou, e Delaborde a da Cabeça de Montachique, ficando a vila quase evacuada e limpa de tropa inimiga.
Pouco tinha faltado para que as avançadas inglesas fossem surpreendidas antes da batalha do dia 21, e talvez não o fossem (segundo então se referiu) pelo aviso que um camponês honrado teve a advertência de fazer-lhes; mas este descuido trocou-se em vigilância e pressentimento excessivo (se pode haver excesso em objecto tão importante e arriscado) no dia seguinte, tomando-se o aparecimento do General Kellerman, que se encaminhava a negociar a capitulação, como indício da marcha ou do alinhamento do Exército inimigo para nova acção; desta conjectura resultou expedir-se ordem ao nosso General Bernardim Freire de Andrade para adiantar-se da Lourinhã e manobrar com o Exército aliado, o que começava a executar-se, e se teria efectuado com a maior satisfação da tropa portuguesa, impaciente de bater-se com o inimigo, se conhecendo-se o engano não houvesse contra ordem para se conservar tranquilo. Nos preliminares da capitulação foi o rio Sizandro constituído linha de separação do terreno em que deviam conter-se os dois Exércitos, e Torres Vedras ficou neutral; assim tanto que o Exército inglês se adiantou para as alturas daquém do Ameal (fixando os Generais os seus quartéis nesse lugar, e ainda mais no do Ramalhal) começou a ser inundada de gente anexa ao Exército, recebida com vivíssimo entusiasmo e prazer; e apesar da suposta neutralidade, houve sem demora sinceras e voluntárias demonstrações de contentamento pela vitória e comunicação dos aliados. As autoridades da vila foram logo cumprimentar os Generais ingleses, e de todas as vizinhanças concorriam numerosos ranchos de pessoas, até do sexo feminino, a observar o campo da batalha, o admirável espectáculo do comboio estacionado defronte do Porto Novo, e a brilhante linha e revista do Exército aliado.
No segundo dia em que se desfrutava tanto prazer, houve um incidente que o perturbou, e foi o rumor de que retrocedia o Exército inimigo, e já se viam as suas avançadas; por cujo motivo as famílias receosas das crueldades que decerto experimentariam, procuraram precipitadamente ao menos a segurança das vidas com a fuga para a retaguarda da linha inglesa. Isto aconteceu perto da noite, tempo ainda mais oportuno para sofrerem saque as casas abandonadas; porém, felizmente desvaneceu-se este rebate, e até se escapou do menor roubo, sem que se fizessem por isso muito sensíveis os incómodos de marchar a pé uma grande légua, e de pernoitar no campo numa tão bela estação.
No intervalo em que se arranjavam definitivamente os artigos da capitulação, adiantou-se mais o Exército inglês a ocupar as alturas situadas ao norte da vila, desde o lugar de Sarge até adiante do do Paul, e os Generais tomaram quartéis nas casas mais proporcionadas. Ao mesmo tempo adiantou-se pelo flanco direito o Exército nacional vindo da Lourinhã para o lugar da Encarnação, donde ultimamente passou para Mafra na mesma ocasião em que o Exército inglês dividido marchou pelas estradas do Sobral, e Bucelas, e pela da Enxara dos Cavaleiros, prosseguindo até ocupar a capital. Em Mafra foi exemplar a modéstia e delicadeza com que o General Bernardim Freire se absteve de tomar quarto no andar nobre do Palácio onde habitavam os Soberanos, não obstante achar-se devassado pelo Quartel-General francês; e não foi menos para louvar a obediência com que o Exército do seu comando, muito a seu pesar, conteve o impulso de perseguir o inimigo e de reduzi-lo à extremidade de entregar-se à discrição.
Pelo que temos dito fica manifesto que sobre esta vila e seus contornos carregou por dias o peso de três Exércitos (contando-se o nacional por duas vezes, sendo a segunda quando se retirou para as províncias); e apesar dos estragos causados nos frutos que ainda se recolhiam e estavam pendentes, tal é a fertilidade do terreno e tal foi a particular abundância daquele ano, que se supriu ao fornecimento da tropa, e não padeceram falta os habitantes.
[Fonte: Manuel Agostinho Madeira Torres, "Descripção Historica e Economica da Villa e Termo de Torres-Vedras", in Memorias [dos Correspondentes] da Academia Real das Sciencias de Lisboa - Tomo VI. Parte I, Lisboa, na Typografia da mesma Academia, 1819, pp. 12-138, pp. 82-90. As notas foram retiradas da 2.ª edição: Coimbra, Imprensa da Universidade, 1861, pp. 164-176].
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Notas:
* Antes de passarmos mais adiante, devemos deixar aqui declarado que foi neste ano de 1808 que os franceses deram o saque geral das pratas às igrejas deste Reino, e que a parte que nele tocou às igrejas paroquiais, às dos conventos, e às ermidas desta comarca foi de 5.469 marcos e 5 onças de prata [= 1255,277 gramas]; e 1 onça, 5 oitavas e 36 grãos de ouro [= 0,0477 gramas], de cuja arrecadação foi encarregado o Corregedor da comarca José da Cunha Fialho, sendo aqui nomeado por Tesoureiro o negociante Arsénio Francisco de Carvalho, que tudo entregou em Lisboa na Casa da Moeda, e tudo consta do Livro privativo que se criou para tal arrecadação, existente no Arquivo da Câmara desta vila. É assaz curioso este Livro, porque dele se vê com toda a miudeza a quantidade e qualidade das alfaias de prata, roubadas a cada uma das ditas igrejas e ermidas, e a riqueza que possuíam, sobretudo as Irmandades do Santíssimo, até as das aldeias, em lâmpadas, canudos para as varas do pálio, lanternas, banquetas de castiçais, turíbulos, navetas, caldeirinhas, galhetas, vasos do lavatório, etc. A dita prata e ouro reduzida a dinheiro somava a enorme quantia de 35.000.600 réis. Poucas foram, mas algumas houve, as igrejas em que alguma prata ou toda escapou por esquecimento de a pedirem, ou ter sido ocultada. Na contribuição chamada de guerra exigida pelos mesmos à classe comercial, e cuja cobrança foi encarregada à Junta de Comércio, coube a este concelho a quantia de três contos de réis, e à comarca oito contos. Livro 24 dos Acórdãos, fl. 161. [Nota dos editores].
** Por este motivo em desagravo do Santíssimo Sacramento, se fazia neste Convento até ser extinto uma solene festividade no domingo imediato ao dia 15 de Agosto de cada ano; e ainda nos nossos dias ia desta vila um terço de penitência ao dito Convento em tal ocasião. [Nota dos editores].
*** Este nome do Porto Novo deve a sua origem, segundo a tradição daqueles sítios, ao ter-se aberto para dar saída ou servir de foz ao rio Alcobrichel, abandonando-se o álveo e foz antiga, que ia em volta; o Engenheiro que o abriu por empreitada, segundo a mesma tradição, chegando a achar um grande lajedo molar já ao nível do álveo do rio, diz-se ter fugido e abandonado a obra; e assim não se profundou mais esta nova foz, que se o tivesse sido como se desejava, faria uma das mais belas baías naquela costa, abrigada como é, de norte e sul, por dois cabos. [Nota dos editores].