Por já várias vezes se ter abordado o problema com que Junot se deparou face aos reduzidos recursos económicos de Portugal (frutos de anteriores dívidas), tentaremos agora incidir melhor sobre esta questão. Para este efeito, pensamos ser necessário recuar alguns anos, pois segundo Miguel Eduardo Lobo de Bulhões (membro da Junta de Crédito Público e da Academia de Ciências de Lisboa e sócio fundador da Sociedade de Geografia de Lisboa), "a dívida fundada, na acepção genuína da expressão, teve princípio no fim do século XVIII" [M. E. Lobo de Bulhões, A Divida Portugueza, Lisboa, Typographia Portugueza, 1867, p. 5].
Deixa-se já indicado, em virtude deste autor não o referir, que o primeiro dos empréstimos que abaixo se mencionam foi motivado não só pelos custos da Campanha do Rossilhão mas sobretudo pela paz que Portugal quis comprar à França depois daquela guerra [ver a este respeito David Rabello, Os Diamantes do Brasil na regência de D. João, São Paulo, Editora Arte & Ciência, 1997, p. 123 e ss.]. Também devem ser assinalados os custos dos preparativos da Guerra das Laranjas, em 1801, que culminou com a derrota portuguesa e com uma pesada indemnização: como já tivemos ocasião de indicar, uma vez estabelecida a paz entre Portugal e Espanha, com a assinatura do Tratado de Badajoz, Napoleão não ratificou os seus termos, tendo imposto sobre Portugal medidas bastante mais severas, através daquele que ficou conhecido como o Tratado de Madrid, assinado a 29 de Setembro de 1801. Entre outras destas imposições, um artigo adicional obrigava Portugal a pagar à França a elevada quantia de 20 milhões de libras tornesas (o equivalente a 3.200 contos de réis), sob o pretexto de indemnização para as despesas da guerra. Acresce a tudo isto ainda o facto de que o monarca de Argel queria a este tempo extorquir de Portugal cerca de 5 milhões de cruzados, mais ou menos o equivalente a 2 mil contos de réis [David Rabello, Os Diamantes do Brasil na regência de D. João, São Paulo, Editora Arte & Ciência, 1997, p. 127].
Referidos estes aspectos, citaremos agora Miguel Lobo de Bulhões, esperando esclarecer com este longo trecho a génese, em Portugal, da relação entre papel-moeda, empréstimos e dívida pública:
"Havia-se complicado a situação financeira do Erário português nos fins do século XVIII. Não apreciarei aqui as causas que determinavam os embaraços do tesouro de Portugal. Tinham já sido agravados alguns impostos; os bens chamados da coroa e [das] ordens concorriam com maior contribuição para o tesouro, mas as dificuldades continuavam e a 29 de Outubro de 1796 decretou-se um empréstimo de 4.000 contos de réis. Este empréstimo foi denominado o primeiro empréstimo, quando outros posteriores vieram ocupar lugar na escala.
Como é pouco conhecido o decreto pelo qual o príncipe D. João (D. João VI), regente do Reino em nome da rainha D. Maria I, autorizou o primeiro empréstimo, julgo de interesse para o leitor transcrever na íntegra o aludido diploma. É o seguinte:
Havendo-me sido presente pelo meio o mais demonstrativo e evidente, por uma parte, que as indispensáveis despesas do Estado têm nestes últimos precedentes tempos excedido as importâncias das suas consignações, e dado o justo motivo da demora nos pagamentos do meu Real Erário, à qual se faz necessário ocorrer com pronta e oportuna providência; e pela outra parte, que as contribuições eclesiásticas que louvavelmente me foram oferecidas; a décima dos rendimentos das comendas das Ordens Militares em geral; e o quinto dos bens da Coroa, que possuem os donatários dela, não podem produzir um efeito tão pronto, que vença o detrimento daquela demora, e haja de suprir ao mesmo tempo as muito maiores despesas, que as circunstâncias actuais do Estado fazem ser muito mais indispensáveis. E querendo aos ditos respeitos dar a mais eficaz e efectiva providência, sou servido autorizar, como autorizo, com todos os poderes plenos e necessários, o Marquês meu Mordomo-Mor e presidente do meu Real Erário [Inácio António Ribeiro], para que nele mande aceitar todo o dinheiro que se oferecer por via de empréstimo até à quantia de dez milhões de cruzados, a juro de cinco por cento em cada um ano, contado desde o dia em que no mesmo Real Erário entrarem os respectivos cabedais; Dando-se aos proprietários deles apólices de cem mil réis cada uma, e desta quantia para cima, as quais, sendo extraídas do Livro da Receita do Tesoureiro Mor e autorizadas com rubrica do mesmo Marquês presidente, constituam dívida da minha Real Fazenda, com hipoteca especial nas sobreditas consignações e direitos, debaixo das condições seguintes, a saber:
1.ª Que as referidas referidas apólices poderão correr como letras de câmbio com os seus competentes endossos, para os seus capitais serem pagos pelos rendimentos hipotecados, quando houver lugar; assim, e do mesmo modo que por eles hão de ser satisfeitos os respectivos juros, infalivelmente a semestres nos meses de Março e de Setembro sucessivos ao vencimento deles, à pessoa ou pessoas, às quais pelas mesmas apólices e endossos delas haja de competir; dispensando para todos os sobreditos fins, e por esta vez somente, em todas as formalidades dos regimentos e ordenações da Fazenda em tudo o que respeita ao modo de se titularem semelhantes dívidas e se processarem os pagamentos delas;
2.ª Que querendo os credores do meu Real Erário, por dívidas contraídas nestes últimos tempos ou semelhantemente os proprietários de folhas de géneros fornecidos para os provimentos dos Reais Arsenais da Marinha e Exército, receber o pagamento das suas acções em apólices, se lhes pagará por elas com vencimento de juros, como se efectivamente houvessem recebido por uma parte as suas respectivas quantias, e por outra parte houvessem feito real entrega delas;
3.ª Que além do juro que fica declarado, se dará ao primeiro proprietário de cada apólice que entregar dinheiro efectivo, um por cento mais, e isto por tempo de quinze anos; o qual um por cento poderá guardar ou vender separadamente da sua apólice, como bem quiser; bem entendido, que o dito um por cento será indefectivelmente pago no mesmo tempo em que os juros se hão satisfazer;
4.ª Que as pessoas que concorrerem com quarenta contos de réis em dinheiro e daí para cima, e não quiserem aceitar aquela anuidade, serão por mim atendidos com gratificações de honra, quais eu costumo fazer a quem procede com zelo e amor ao meu real serviço.
E para que venha à notícia de todos esta minha real resolução, se publicará logo por editais impressos em todas as cidades e vilas do Reino. O mesmo Marquês Mordomo Mor e presidente do meu Real Erário o tenha assim entendido e faça executar.
Palácio de Queluz, em vinte e nove de Outubro de mil setecentos e noventa e seis.
Com a rubrica do Príncipe Nosso Senhor [...]
Alguns meses depois foram modificadas as disposições deste decreto, e a 13 de Março de 1797 pediam-se mais dois milhões de cruzados para as urgências do Estado, além de se ter criado três dias antes (alvará de 10 de Março de 1797) a contribuição do selo.
O alvará de 13 de Março dizia:Eu, a Rainha, faço saber aos que este alvará com força de lei virem: Que tendo preferido a outros meios que podiam ocorrer nas presentes circunstâncias para prover as precisões do Estado de maneira que combinassem com o bem e com o interesse dos meus vassalos, acordei dar as providências mais próprias e suaves, substanciadas no decreto de 29 de Outubro do ano [...] passado de 1796, que felizmente principiaram desde logo a ter execução com notório crédito e benefício, assim do Erário Régio como dos meus fiéis vassalos, que com tanta honra e louvável zelo promoveram em mútuo e público benefício a mesma execução; e querendo [por] ora promover e animar a providência do mesmo decreto, deliberei ampliá-la, solidá-la e individuá-la com algumas explicações e deliberações que determinassem e interpretassem mais especialmente as providências decretadas, firmassem e roborassem o crédito público e auxiliassem e animassem a fortuna e a felicidade da causa pública e da particular dos meus vassalos; pelo que, tendo em vista e muito presente o sobredito decreto, sou servida ampliar, animar e adiantar o empréstimo dos dez milhões de cruzados estabelecido para que se estenda a doze milhões, compreendendo-se nesta soma a que efectivamente estiver já verificada, de maneira que os dez milhões e a ampliação consistam na soma de doze milhões.
Neste alvará dispunha-se que a anuidade fosse suprimida e o juro do empréstimo passasse a ser de 6% sem limitação de tempo e com isenção de décima; que as apólices fossem reduzidas ao valor que os mutuantes quisessem, não sendo inferior a 50$000; que as apólices ficassem isentas de embargos, sequestros e penhoras; que os estrangeiros pudessem entrar no empréstimo; que os corpos de mão-morta pudessem comprar apólices até sub-rogando para esse fim os bens imóveis que possuíssem; que as apólices pudessem ser vinculadas em morgados; que pudessem ser compradas à fazenda com títulos de dívida contraída naqueles últimos tempos, e que também fossem recebidas como dinheiro efectivo em pagamento de direitos na mesa do consulado da casa da Índia, na casa das Herdades e nas Chancelarias, e noutros pagamentos, passando logo com os competentes endossos e como dinheiro efectivo para o tesoureiro mor do Erário.
Nos artigos XI a XIII, dizia o príncipe regente:
XI. Quanto ao empréstimo, sendo todo o meu fim corroborar e segurar, por uma parte, a mais firme estabilidade dos fundos destinados para o seu pagamento, e declarados no referido meu Real Decreto de 29 de Outubro, e prover, por outra parte, a mais breve expedição dos negócios da administração dos mesmos fundos e satisfação dos juros, que nenhumas outras ocupações possam retardá-las: Sou servido ordenar, que enquanto não estabeleço um banco público ou caixa de desconto, a quem hei de encarregar a administração das rendas e pagamento deste empréstimo, na tesouraria geral dos juros se estabeleça uma administração com cofre de quatro chaves, distribuídas pelo tesoureiro geral dos juros e seu escrivão, e por dois homens de negócio de conhecida probidade e abonação, para com a concorrência de todos se fazer a arrecadação dos referidos fundos e pagamento dos ditos juros, sem a menor demora, debaixo da inspecção do Marquês presidente do meu Real Erário e por meio de uma Contadoria, a mais simples que consentir o objecto cujos oficiais terão as graduações dos do mesmo Erário.
XII. O pagamento dos juros será ali feito na forma acima ordenada, por folhas processadas no meu Real Erário, autorizadas com despacho do presidente dele, ficando os administradores responsáveis por qualquer considerável demora. E demais da soma necessária para este fim, mando que os referidos administradores separem dos ditos fundos em cada um ano quarenta e oito contos de réis, pela qual se distratarão também em cada um ano apólices de concorrente quantia, preferindo infalivelmente neste distrate as que tiverem sido recebidas em pagamento pelo meu Real Erário.
XIII. No cofre sempre existirá a soma dos juros de um semestre; e havendo sobras, se entregarão anualmente ao meu Real Erário; e quanto haja falta, hei por muito recomendado ao Marquês presidente do mesmo Erário a faça logo efectivamente remediar por todo e qualquer dinheiro, antepondo a este suprimento todo e qualquer outro pagamento, excepto o de letras e da tropa.
Nesta última disposição se vê já a confiança que mereciam naquela época os cofres especiais e as dotações especiais.
Na disposição consignada no artigo LI, teve origem a junta do crédito público, a qual, havendo passado por diferentes modificações como teremos ocasião de ver, chegou, de 12 de milhões de cruzados que administrou há 70 anos, a administrar hoje [1867], por si e por meio das suas delegações em Londres e em Paris, mais de duzentos mil contos.
Fonte: Museu do Papel Moeda Apólice do Real Erário (papel-moeda) com o valor de 10 réis. |
O 1.º empréstimo não foi remédio radical para os males do Erário. A 13 de Julho de 1797 mandava o príncipe regente que, para benefício do giro do comércio, se lavrasse uma porção de apólices de quantias inferiores a 50$000 réis, até à quantia de três milhões de cruzados (1.200 contos) que se deviam incluir no empréstimo decretado em 29 de Outubro de 1796 e ampliado em 13 de Março de 1797, para que por meio das apólices de pequenos valores se fizessem os pagamentos miúdos. Estas apólices eram ao portador, venciam juro de 6% e podiam ser trocadas pelas outras; foram consideradas como moeda de lei e por essa razão incorriam penalidades os que as rejeitassem como moeda, ou as falsificassem.
Entrava-se no regímen do papel-moeda do qual pouco tempo depois se começaram a sentir os necessários efeitos.
Ainda no mesmo ano, a 27 de Setembro, foi decretado um empréstimo especial de 60 contos para se edificar o hospital da marinha. Foi confiada a administração deste empréstimo a uma comissão composta de seis negociantes.
O ano de 1799 trouxe à lembrança de quem geria a fazenda uma curiosa lotaria.
O alvará de 18 de Junho de 1799 mandava que para fazer entrar dinheiro nos cofres públicos se procurassem meios que não fossem onerosos, antes mais interessantes, para os fiéis vassalos. O meio interessante escolhido foi uma lotaria de dois milhões de cruzados dividida em 20.000 bilhetes 40$000 réis cada um. Os prémios eram oito em prédios rústicos e urbanos (três dos quais, a herdade de Valdez, a de Coqueiro e uma courela de terra nos Varelhos, foram doados ou vendidos antes da extracção da lotaria), 6670 em pensões vitalícias e diferentes somas, sendo a maior de 700$000 réis por ano e a menor de 2$800 réis e 13.330 bilhetes brancos que, em todo o caso, proporcionavam ao comprador uma pensão vitalícia de 1$200 réis.
Por causa desta lotaria foram suspensas todas as outras que era costume fazer-se no reino. Portugal começava a lançar mão de meios já condenados noutros países para realizar dinheiro. A França já estava farta das tontinas que desde o meado do século XVII estavam em uso.
As tontinas eram lotarias de género diferente; os bons prémios iam cair em quem vivia mais tempo. Diversas pessoas associavam-se para comprarem ao Estado um determinado rendimento que duraria até à morte do último associado. Por este modo vieram algumas pessoas protegidas da fortuna a desfrutar durante largos anos avultadíssimos rendimentos. A invenção foi devida a um italiano, Lorenzo Tonti, do qual tomou o nome.
Não tardou muito tempo para se sentir o benefício do giro do comércio preconizado no alvará de 13 de Julho de 1797 que criou a moeda papel. A poucos passos, o papel que devia ser recebido como moeda de lei sofria um desconto não inferior a 6 por cento. E digo isto porque pelo alvará de 24 de Janeiro de 1800 foi criada uma caixa de desconto para receber e descontar as apólices pequenas com o desconto que actualmente devem ter de 6 por cento, que se poderá diminuir segundo for merecendo o estado das mesmas apólices ao pardo dinheiro metálico.
Esta caixa foi dotada com metade das mesadas do contrato do tabaco e metade do rendimento diário em metal das alfândegas, com o rendimento da casa da moeda e da administração dos diamantes. Estabelecia-se no mesmo alvará que fossem recebidos dos particulares todos os capitais que eles quisessem entregar, pelo tempo em que concordassem e com o desconto correspondente ao do papel. Nas instruções que acompanhavam o alvará determinava-se que o desconto fosse feito de preferência à classe indigente do povo e por isso deveria ser atendido primeiro o portador de um só bilhete, e assim do menos para o mais.
Estas providências foram insuficientes. No primeiro de Maio de 1800, o benefício do giro comercial achava-se transformado em embaraço para a circulação, carestia dos géneros e muitos outros inconvenientes que o príncipe regente queria ver terminados e por isso mandava proceder à amortização do papel moeda impondo um subsídio nos vinhos.
Por causa desta lotaria foram suspensas todas as outras que era costume fazer-se no reino. Portugal começava a lançar mão de meios já condenados noutros países para realizar dinheiro. A França já estava farta das tontinas que desde o meado do século XVII estavam em uso.
As tontinas eram lotarias de género diferente; os bons prémios iam cair em quem vivia mais tempo. Diversas pessoas associavam-se para comprarem ao Estado um determinado rendimento que duraria até à morte do último associado. Por este modo vieram algumas pessoas protegidas da fortuna a desfrutar durante largos anos avultadíssimos rendimentos. A invenção foi devida a um italiano, Lorenzo Tonti, do qual tomou o nome.
Não tardou muito tempo para se sentir o benefício do giro do comércio preconizado no alvará de 13 de Julho de 1797 que criou a moeda papel. A poucos passos, o papel que devia ser recebido como moeda de lei sofria um desconto não inferior a 6 por cento. E digo isto porque pelo alvará de 24 de Janeiro de 1800 foi criada uma caixa de desconto para receber e descontar as apólices pequenas com o desconto que actualmente devem ter de 6 por cento, que se poderá diminuir segundo for merecendo o estado das mesmas apólices ao pardo dinheiro metálico.
Esta caixa foi dotada com metade das mesadas do contrato do tabaco e metade do rendimento diário em metal das alfândegas, com o rendimento da casa da moeda e da administração dos diamantes. Estabelecia-se no mesmo alvará que fossem recebidos dos particulares todos os capitais que eles quisessem entregar, pelo tempo em que concordassem e com o desconto correspondente ao do papel. Nas instruções que acompanhavam o alvará determinava-se que o desconto fosse feito de preferência à classe indigente do povo e por isso deveria ser atendido primeiro o portador de um só bilhete, e assim do menos para o mais.
Estas providências foram insuficientes. No primeiro de Maio de 1800, o benefício do giro comercial achava-se transformado em embaraço para a circulação, carestia dos géneros e muitos outros inconvenientes que o príncipe regente queria ver terminados e por isso mandava proceder à amortização do papel moeda impondo um subsídio nos vinhos.
A junta da administração das consignações para o juro do novo empréstimo (criada pelo alvará de 13 de Março de 1797, e actualmente a junta do crédito público) foi encarregada da amortização do papel moeda, sendo aumentada a sua dotação, que consistia na décima eclesiástica, décima das comendas e o quinto dos bens da Coroa, com o subsídio nos vinhos, as dívidas à fazenda e com o produto de todas as lotarias que se fizessem no espaço de dez anos, prazo julgado suficiente para fazer desaparecer o papel moeda que havia sido criado para bem da causa pública e felicidade dos fiéis vassalos. Estas receitas novas haviam de dar entrada numa segunda caixa.
Foi tão grande o abalo produzido pela circulação da moeda papel, de que o governo e os particulares também haviam abusado, que se sucederam sem interrupção os alvarás providenciando acerca do assunto. A 13 de Julho de 1800, o príncipe regente, aludindo à dívida tão prejudicial às reais finanças e tão incómoda para o giro do comércio, proibia a continuação de semelhante recurso e, para prevenir e evitar quanto possível qualquer outro do mesmo género, mandava à junta provisional do Erário que avaliasse definitivamente o deficit e que indicasse quais as providências a adoptar para equilibrar a receita com a despesa. No entanto, para ocorrer à despesa do ano de 1801, mandava o regente a 7 de Março, que sem perda de tempo se abrisse um novo empréstimo de doze milhões de cruzados na forma, isto é, metade em metal e metade nas apólices pequenas do primeiro empréstimo [esta forma de pagamento já vinha prevista no decreto de 13 de Março de 1797, tendo sido repetida posteriormente várias vezes, como por exemplo no alvará de 25 de Fevereiro de 1801, que determinava a subtracção de 30% das quantias a quem não aceitasse os pagamentos nesta conformidade].
Havia certa hesitação em dar às apólices pequenas o seu verdadeiro nome de papel moeda.
Com o novo empréstimo fazia-se nova lotaria de 40.000 bilhetes de 20$000 réis. A subscrição para este empréstimo era por 240$000 réis, podendo o subscritor receber uma apólice de 100$000 réis com juro permanente de 6 por cento, uma apólice vitalícia com juro de 8 1/2 por cento e dois bilhetes da lotaria. O subscritor podia optar por duas apólices de juro permanente ou por duas de juro vitalício à vontade.
Para o novo empréstimo criaram-se novos impostos sobre o açúcar, o algodão e muitos outros artigos. A receita destes impostos foi formar a terceira caixa da junta encarregada de administrar os empréstimos reais.
As obras do hospital da marinha reclamavam mais dinheiro do que o que se havia realizado pelo empréstimo decretado em 27 de Setembro de 1797. Por alvará de 2 de Setembro de 1801, foi pois ampliado o mesmo empréstimo passando a ser de 215 mil cruzados e ficando igualmente administrado por uma comissão especial composta de cinco negociantes.
Este empréstimo conservou-se fora da administração da junta dos juros dos reais empréstimos e é um daqueles que por vezes tem figurado nas queixas contra o nosso tesouro.
[Entre a legislação que se produziu posteriormente sobre esta matéria, saliente-se: A reforma da Casa da Moeda, através de decreto datado de 12 de Novembro de 1801; a 8 de Fevereiro de 1802, decretou-se um novo empréstimo à Coroa; a 6 de Maio do mesmo ano voltou-se a lançar outro decreto sobre o novo empréstimo; finalmente, a 24 de Janeiro de 1803, era publicado um alvará declarando fechado o empréstimo de 13 de Março de 1797].
As tricas financeiras não eram desconhecidas já no princípio do século. O alvará de 26 de Março de 1803 sanciona o princípio muito explorado depois em todos os nossos orçamentos, de fazer representar a receita pública, ou, por outra, de antecipar as receitas. Diz-se nesse alvará que, havendo grande utilidade em adoptar um novo meio de circulação com que no decurso de cada ano possam melhor regular-se as receitas e pagamentos efectivos do Real Erário, antecipando e igualando as épocas das entradas à das saídas, qual é o estabelecimento de bilhetes de crédito resgatáveis em certo e determinado período, de que usam e de que têm recebido tão saudáveis efeitos as nações mais iluminadas em administração de fazenda..., ficava suspensa a emissão dos escritos das alfândegas, criando-se ao mesmo tempo bilhetes de crédito e circulação do valor de 120$000 réis, que só durariam 18 meses e cuja quantidade havia de ser fixada todos os anos por decreto real.
Os novos bilhetes eram considerados como letras de câmbio vencendo juro de 5%, o que se regulava a 500 réis por mês para facilidade do cálculo e a 16 réis por dia, não chegando o prazo a mês. Neste alvará autorizava-se a junta dos juros a descontar estes bilhetes com o dinheiro que estivesse estagnado. Já o bom senso começava a protestar contra a dotação especial da divida pública e contra a represa das espécies.
Em consequência da criação dos bilhetes de crédito do Real Erário foi mandada sustar a emissão das apólices grandes do primeiro empréstimo. A junta dos juros era encarregada de realizar estas operações que se efectuavam metade em metal e metade em papel.
O papel moeda ia-se inutilizando à força de passar de mão em mão; faltavam bilhetes pequenos para os pagamentos miúdos e o preço das apólices grandes do primeiro empréstimo ressentia-se da concorrência que lhe faziam os bilhetes do papel moeda que tinham garantias iguais enquanto ao juro. A 2 de Abril de 1805, tratou-se de dar remédio a estes inconvenientes. Mandou-se descontar [a] décima [parte] do juro do papel moeda, mantendo a isenção deste imposto nas apólices grandes, e igualmente se mandaram reformar os bilhetes que se apresentassem mutilados e em estado de não poderem girar, e como a falsificação destes títulos e dos outros que já abundavam no mercado fosse tomando algumas proporções, foram aplicando aos falsificadores daqueles papéis as penas cominadas na ordenação do reino e nas leis extravagantes, a quem fazia moeda falsa.
Apesar de todos estes esforços do governo, o crédito público andava abalado, o equilíbrio da receita com a despesa não se estabelecia, o mal-estar público era sensível. Acrescia que no país reflectia já o efeito da guerra que assolava a Europa, até que também chegou ela a Portugal, levando o príncipe regente a abandonar o continente para se transportar ao Brasil". [In M. E. Lobo de Bulhões, A Divida Portugueza, Lisboa, Typographia Portugueza, 1867, pp. 19-29].
Como se vê, a superabundância do papel-moeda levou à sua desvalorização e a um consequente aumento da dívida pública. Se não bastasse todo este cenário, a família real e a corte embarcaram para o Brasil com cerca de 150 milhões de cruzados [Junot, Diário da I Invasão Francesa, p. 107]. Para se perceber o elevado valor da quantia apurada, deixamos indicado que, num período de onze anos (de 1796 a 1807), Portugal tinha lucrado cerca de 300 milhões de cruzados com a exportação de manufacturas nacionais [Oliveira Martins, História de Portugal - Tomo II, 4.ª ed., Lisboa, Livraria Bertrand, 1887, p. 249].
Quando o General em Chefe Junot chega a Abrantes, no dia 24 de Novembro de 1807, é logo avisado que "o príncipe mandara embarcar à pressa a família real e grande quantidade de fidalgos com todos os seus tesouros, todos os cofres públicos e até os depósitos de pratas das igrejas [Junot, Diário da I Invasão Francesa, p. 100]. No dia 30 do mesmo mês, já em Lisboa, Junot escreve a Napoleão que "os bens da coroa e os das famílias a que podemos chamar emigradas, as suas mobílias, as suas casas, formarão uma massa imensa que poderá vir a ser uma sólida hipoteca para o papel-moeda, que, reduzido a uma quantidade moderada, poderá recuperar a confiança e servir ao Estado.[...] O papel-moeda e a falta de fundos nas caixas públicas, os vencimentos em atraso, tanto do exército português como do francês, e dos empregados das diversas administrações, bem como os salários dos inúmeros criados que a corte aqui deixou, causam-nos também grandes embaraços" [Junot, Diário da I Invasão Francesa, p. 103]. Em carta de 2 de Dezembro de 1807, Junot repete a mesma ideia: "infelizmente, temos poucos recursos em dinheiro de contado e em jóias, pois tudo foi levado" [Junot, Diário da I Invasão Francesa, p. 110].
Quando o General em Chefe Junot chega a Abrantes, no dia 24 de Novembro de 1807, é logo avisado que "o príncipe mandara embarcar à pressa a família real e grande quantidade de fidalgos com todos os seus tesouros, todos os cofres públicos e até os depósitos de pratas das igrejas [Junot, Diário da I Invasão Francesa, p. 100]. No dia 30 do mesmo mês, já em Lisboa, Junot escreve a Napoleão que "os bens da coroa e os das famílias a que podemos chamar emigradas, as suas mobílias, as suas casas, formarão uma massa imensa que poderá vir a ser uma sólida hipoteca para o papel-moeda, que, reduzido a uma quantidade moderada, poderá recuperar a confiança e servir ao Estado.[...] O papel-moeda e a falta de fundos nas caixas públicas, os vencimentos em atraso, tanto do exército português como do francês, e dos empregados das diversas administrações, bem como os salários dos inúmeros criados que a corte aqui deixou, causam-nos também grandes embaraços" [Junot, Diário da I Invasão Francesa, p. 103]. Em carta de 2 de Dezembro de 1807, Junot repete a mesma ideia: "infelizmente, temos poucos recursos em dinheiro de contado e em jóias, pois tudo foi levado" [Junot, Diário da I Invasão Francesa, p. 110].
As primeiras medidas tomadas para tentar contornar esta questão datam do próprio dia em que Junot chegou a Lisboa. Através do Intendente Geral da Polícia, Lucas de Seabra da Silva, foi publicado um edital onde se ordenava que não fossem negadas no comércio as moedas espanholas ou francesas que os exércitos invasores traziam consigo. Para se evitar qualquer tipo de dúvida, também se imprimiram todas as moedas daqueles dois países.
Pouco depois, a 3 de Dezembro do mesmo ano, um oficial francês, François-Antoine Hermann, era nomeado por Junot para os cargos de Comissário do Governo francês junto do Conselho da Regência e de Administrador Geral das Finanças do Reino, assumindo igualmente as funções de presidente do Real Erário e do Conselho da Fazenda. Ainda no mesmo dia, Junot impôs um empréstimo forçado de 2 milhões de cruzados (quantia equivalente a 800 mil réis), através do seguinte decreto:
O Governador de Paris, Primeiro Ajudante de Campo de Sua Majestade o Imperador e Rei, General em Chefe, em nome de Sua Majestade o Imperador dos franceses e Rei de Itália:
Tendo em consideração a necessidade de prover os soldos da tropa, tanto francesa como portuguesa, decreta:
Será imposta uma contribuição extraordinária de dois milhões de cruzados sobre todo o Reino de Portugal, que serão divididos segundo as fortunas de cada indivíduo. Ficará a cargo dos vinte mais ricos negociantes ou banqueiros da cidade de Lisboa responder por estes fundos, que serão recolhidos no cofre geral do Exército francês, que se acha a cargo do Administrador Geral das Finanças, e nos seguintes prazos, a saber:
500 mil cruzados em 8 de Dezembro corrente.
500 mil cruzados em 12 de Dezembro corrente.
500 mil cruzados em 18 de Dezembro corrente.
500 mil cruzados em 24 de Dezembro corrente.A quarta parte desta soma será recebida em papel-moeda.
O Administrador Geral das Finanças e o Conselho da Regência farão dar execução ao presente decreto.
Dado no Palácio do Quartel-General em Lisboa, aos 3 de Dezembro de 1807.
Junot
[Fonte: Domingos Alves Branco Muniz Barreto, Memoria dos Successos acontecidos na cidade Lisboa..., fls. 8v-9]
Segundo a última fonte citada, "em consequência deste decreto nomeou o Conselho da Regência uma Junta de Negociantes de que também foi nomeado presidente o Barão de Quintela, para se deliberar o rateio [=divisão], segundo as possibilidades dos negociantes, suas fortunas conhecidas ou presumidas, o que lhes foi participado pelo aviso seguinte", dirigido ao próprio Barão de Quintela:
Os Governadores deste Reino, atendendo à representação que fizeram os negociantes convocados para o empréstimo forçado, aprovam a nomeação que os mesmos fizeram da Junta para facilitar os meios de se fazerem os pagamentos, nos termos ordenados, e autorizam a mesma Junta para tudo o que for necessário para o dito efeito, sendo V.ª S.ª o Presidente; e deputados, Jacinto Fernandes da Costa Bandeira, Francisco António Ferreira, Jacome Ratton, Manuel de Sousa Freire, António Martins Pedra, Luís Monteiro, António Francisco Machado, e Joaquim Pereira de Almeida; o que participo a V.ª S.ª para sua inteligência e execução.
Deus Guarde a V.ª S.ª
Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, em 4 de Dezembro de 1807.
João António Salter de Mendonça
[Fonte: Domingos Alves Branco Muniz Barreto, Memoria dos Successos acontecidos na cidade de Lisboa..., fls. 9-9v]
A 4 de Dezembro, o Senado da Câmara de Lisboa proibiu o aumento dos preços dos géneros de primeira necessidade, enquanto os membros da Junta acima referida se reuniram para decidir a parte proporcional do empréstimo que caberia a cada um dos contribuintes. Junot pedia o empréstimo aos 20 negociantes mais ricos, mas contudo, a quantia era tão desmesuradamente alta que foram necessários mais de 230 contribuintes para se reunir o total exigido. A lista deste rateio seria enviada posteriormente à Regência, juntamente com a seguinte carta, onde a Junta dos Negociantes se queixava das dificuldades que todos os contribuintes haviam sentido para cumprirem este pagamento:
Il.mos e Ex.mos Senhores:
A Junta que V.as Ex.as autorizaram para facilitar os meios da pronta cobrança do empréstimo forçado tem preenchido as suas funções, e põe nas mãos de V.as Ex.as os documentos juntos que provam o modo por que tudo foi executado e concluído; convém a saber:
1.º O recibo do Recebedor Geral do Exército francês, que mostra haver sido entregue na sua caixa a soma de dois milhões de cruzados, na moeda e na forma exigida, e nos termos assinados pelo decreto de 3 de Dezembro do ano presente;
2.º A lista das pessoas que contribuíram para o avanço da contribuição geral do Reino, por meio do sobredito empréstimo forçado;
3.º Um exemplar das cautelas que se entregaram a cada um dos que fizeram este avanço, a qual lhe servirá só [?] de título provisório, enquanto V.as Ex.as não lhe fazem passar outro mais autêntico e mais autorizado.
[...] Aqui têm V.as Ex.as toda a ordem do trabalho da Junta, que pôs todos os seus esforços para realizar o efectivo avanço da contribuição geral do Reino, e que foram, na verdade, milagrosos, na consideração da impossibilidade em que todos se acham, não só de granjear novos fandos, mas até mesmo de realizar os que têm. Ninguém sabe melhor que V.as Ex.as que a escassez do numerário, juntando-se à impossibilidade em que a guerra marítima põe a todos de poderem girar os seus capitais circulantes, reduz a nada todas as fortunas dos negociantes desta praça. Parte deles tem todo o cabedal nas colónias; parte olha para a sua fortuna e a vê estragada nas fazendas amontoadas ou nas alfândegas ou nos seus armazéns; e outra parte olha com lástima para todos os seus capitais derramados por mil devedores insolúveis; e nenhum pode, enfim, realizar o que é seu, chegando todos ao ponto de se assustarem com a horrível perspectiva de lhe faltar até o alimento escasso para si e para as suas famílias.
Em consequência deste ainda muito limitado painel de miséria pública, fora impossível que só vinte negociantes desta praça fizessem o empréstimo forçado de dois milhões para avançar a quantia da contribuição. O documento n.º 2 [lista dos que contribuíram] faz ver as pessoas que foi necessário convocar para este fim, chegando ao ponto de se verem até viúvas entre o seu numerário, e só por não parecer que se exagera é que a Junta não faz a V.as Ex.as o detalhe particular dos trabalhos e fadigas que houve a fim de combinar a efectiva realização do empréstimo referido nos dias aprazados, com a miséria de cada um dos contribuintes.
Toda a riqueza da praça de Lisboa estava posta na facilidade que o local da oportuna situação do seu porto dava a todos os negociantes para poderem girar os seus cabedais; porém, quando a imperiosa necessidade das circunstâncias públicas lhes tira todos estes meios, nada é mais fácil ver [que] grandes fortunas reduzidas a nada. Todas estas verdades, que são patentes a quem tiver o menor conhecimento deste país, saberão V.as Ex.as fazerem ainda mais evidentes na presença do Ex.mo Sr General em Chefe, juntando-lhes o aperto das circunstâncias em que se acham todos os que adiantaram a contribuição geral do Reino, com a privação dos seus respectivos contingentes, é por consequência a necessidade absoluta de prover a repartição dela, guardadas as proporções com a fortuna dos contribuintes na forma que determina o decreto de 3 de Dezembro passado.
Por isso a mesma Junta, em nome dos contribuintes, suplicam a V.as Ex.as [para que] ponham na presença do Sr. General em Chefe a sua aflição no meio do total destroço da sua fortuna, para que S.ª Ex.ª, ocorrendo a ela com remédios prontos, os faça gozar o pouco que lhes resta, à sombra da protecção de Sua Majestade o Imperador e Rei, de cuja magnanimidade e grandeza todos confiam.
Lisboa, 7 de Janeiro de 1808.
Barão de Quintela
Francisco António Ferreira
Manuel de Sousa Freire
Luís Monteiro
Joaquim Pereira de Almeida
Jacinto Fernandes da Costa Bandeira
Jacome Ratton
António Martins Pedra
António Francisco Machado
[Fonte: Domingos Alves Branco Muniz Barreto, Memoria dos Successos acontecidos na cidade de Lisboa..., fls. 14-15]
É de se salientar que, apesar de ter sido paga no tempo estipulado, "não se aceitou contudo na tesouraria francesa a nossa moeda de prata de 12 e 100 réis, assim como era igualmente repudiada a moeda espanhola e francesa que já corria em virtude do edital de 30 de Novembro de 1807" [Domingos Alves Branco Muniz Barreto, Memoria dos Successos acontecidos na cidade de Lisboa..., fls. 9-9v].
Entretanto, a 6 de Dezembro escrevia Junot a Napoleão: "o senhor Hermann, Administrador-geral das Finanças e Comissário do Governo junto do Conselho, ordenou que se trabalhasse na elaboração das contas de todas as partes a fim de que possamos ver o que está em dívida e os recursos de que dispomos para atender a todas as necessidades da administração; os bens da Coroa e dos emigrados serão, sem dúvida, um grande auxílio, mas tardio. Durante algum tempo, as receitas provenientes do comércio serão nulas" [Junot, Diário da I Invasão Francesa, p. 112]. Não nos esqueçamos que Lisboa era uma cidade que vivia essencialmente do comércio marítimo, e agora encontrava-se duplamente bloqueada (quer pelos ingleses, na foz do Tejo, quer pelos franceses, controlando a costa e apreendendo as mercadorias inglesas que já tinham dado entrada nos portos da capital).
A escassez e o pouco valor do dinheiro português levaram Junot, como relatou em carta a Napoleão, a ordenar a Hermann para "que mandasse partir e queimar publicamente na Praça do Comércio as chapas utilizadas na fabricação do papel-moeda, depois de se ter mandado informar do que existe em circulação; pensei que este acto restituiria valor ao papel e que, se fosse necessário emitir mais, melhor seria fazer chapas novas que conservar as antigas, que já podem ter sido imitadas. Não será justo que os espanhóis recebam à sua conta papel-moeda na proporção do território que ficar nas suas mãos?". Outra das perguntas colocadas a este respeito era se o imperador desejava que fosse cunhada em Portugal moeda francesa: "O dinheiro do país presta-se a isso, pois está calculado segundo o sistema decimal, e o habitante aceitá-lo-á com facilidade" [Junot, Diário da I Invasão Francesa, p. 114].
No dia 15 de Dezembro, apesar das queixas que tinha feito à Regência, a Junta do Comércio dirige-se à presença de Junot: "foram todos cumprimentar o mesmo General, sendo o deputado Jacome Ratton o que repetiu uma eloquente fala, ao que o General respondeu com muita benignidade, porque já sabia que depois dela lhe havia [de] oferecer, como ofereceu o mesmo corpo da Junta do Comércio, uma cifra alegórica, com as letras G. J. [General Junot] de grandes brilhantes, que foram avaliados em cem mil cruzados [ou seja, cerca de 1/8 da quantia do empréstimo forçado], e cravados em pasta de cera, para o mesmo General fazer o uso que quisesse deles" [Domingos Alves Branco Muniz Barreto, Memoria dos Successos acontecidos na cidade de Lisboa..., fl. 35]
Não obstante aquela bajulação, no dia seguinte Junot volta a escrever a Napoleão, insistindo sobre os escassos recursos económicos de Portugal face às elevadas despesas: "há um grande número de empregados que vão ficar sem emprego e de pensionistas que pedem com que viver; o tesouro público não poderá arcar com tais encargos. As alfândegas, que nada renderão, forneciam cerca de metade do rendimento. Vossa Majestade dignar-se-á pensar nisto por um momento. [...] A administração civil também é para mim um grande embaraço. Tive de deixar existir tudo o que encontrei porque V.M. assim me ordenou, mas a nossa posição é crítica. A praça está sem dinheiro, o papel-moeda sem crédito, as autoridades sem vigor; reina uma desordem terrível em todos os ramos da administração e da justiça; o exército, há muito tempo sem paga, receia pela sua futura existência e, principalmente, teme ter de sair do país; e, para maior embaraço, os mantimentos começaram a faltar no interior e Lisboa não tem para um mês. Os espíritos estão muito agitados e, infelizmente para mim, não sou secundado pela parte administrativa. Tenho necessidade de que V.M. se digne poisar por um momento o seu olhar na minha posição; só o desejo de bem proceder não chega, pois estou pouco habituado à administração, e principalmente à direcção das finanças, e receio errar. O senhor Hermann tem boa vontade e é activo, mas pretende fazer muitas coisas ao mesmo tempo e não analisa o seu trabalho; é um homem em que se pode ter confiança, e damo-nos muito bem, mas não o creio suficientemente forte para pôr ordem na administração deste país em que tudo está em desordem. O ordenador-chefe [Coronel Trousset] não está em condições de administrar um exército num país onde os recursos são poucos; está embaraçado com tudo e vê-se travado a cada passo; não sei, realmente, como viveria o meu exército se me visse obrigado a fazer algum movimento". [Junot, Diário da I Invasão Francesa, pp. 117-118].
E os problemas continuavam... A 21 de Dezembro de 1807, em nova carta a Napoleão, diz Junot que "os decretos do Rei de Inglaterra, que declaram sujeitos a apresamento todos os navios neutrais destinados a portos da França ou dos seus aliados e que não tenham tocado num porto inglês, vão criar novas dificuldades para o abastecimento de Lisboa, que sem isso estava assegurado, e à exportação de produtos do solo de Portugal pelos navios neutrais. Eis dois assuntos que merecem que V. M. se digne pensar neles por um momento; não será possível abrir uma excepção em benefício dos navios carregados de cereais que de qualquer origem vierem para Portugal, nem para os que levarem os frutos ou outras produções do solo português, cuja exportação é o único recurso que temos para realizar numerário? Como V. M. persiste no seu sistema proibitivo de qualquer navio proveniente de Inglaterra ou que tenha tocado em algum dos seus portos, não terá a necessidade de qualquer acto derrogatório; os americanos e o comércio português confiam na minha palavra de honra e nem sequer me pedem garantias por escrito, mas eu nada quero fazer sem ordens de V. M., e o assunto é suficientemente importante para eu ter a certeza de que V. M. tomará a melhor decisão quer me conceda quer me recuse a autoridade necessária para garantir aos negociantes neutrais ou nacionais que os navios carregados com cereais e mantimentos poderão entrar livremente nos portos de Portugal, venham de onde vierem, e igualmente deles sair desde que apenas transportem os produtos do solo de Portugal. Pode V. M. estar certo de que não abusarei da autoridade que teve a bondade de me conceder; só o interesse do país, de cujo governo V. M. me incumbiu, me faz agir e falar nestas circunstâncias" [Junot, Diário da I Invasão Francesa, p. 120].
Quase um mês depois de invadir o país, Junot não alterava o seu discurso. A 27 de Dezembro, em nova carta a Napoleão, referia que a cidade de Lisboa via a miséria a aumentar, "o tesouro está sem dinheiro e o comércio corre mal. O Administrador geral das Finanças [Hermann] deve enviar dentro em pouco a V. M. o seu relatório. Por ele vereis o saldo negativo que haverá no próximo ano, e neste momento temos uma extrema necessidade de dinheiro. Estou certo de que haverá meios de enviar muito para Portugal, mas para isso seria preciso administrá-lo por inteiro, e as províncias do Alentejo e do Douro e Minho são as que devem apresentar os recursos territoriais. Todas as despesas são em Lisboa, mas os seus recursos já não existem pois deixou de haver alfândegas; portanto, é preciso encontrar nos rendimentos dos bens da coroa e dos emigrados a diferença entre a despesa da corte e a receita das alfândegas; na verdade, há muitas coisas a reduzir e bastante economia a introduzir em cada parte; as comendas vagas ou pertencentes a emigrados, os bens eclesiásticos, tudo isso, na verdade, oferece recursos, mas está, na sua maior parte, nas províncias ocupadas pelos espanhóis, e que, de resto, não nos podem ajudar de imediato: o que é preciso é dinheiro de contado, mas quando eu cheguei a Lisboa havia no tesouro público 6.000 ou 7.000 francos. Metade de Lisboa vivia de cargos ou pensões da corte, e é necessário pagar uma parte desses rendimentos para que essa gente não morra de fome, é preciso pagar ao exército, alimentá-lo e mantê-lo, e este assunto é muito considerável. V.M. terá muito em breve um relatório circunstanciado das despesas e das receitas. Admirar-vos-eis da diferença, e estou certo de que avaliareis a necessidade que tereis de vir momentaneamente em nosso auxílio" [Junot, Diário da I Invasão Francesa, pp. 121-122].
Finalmente, um mês depois da ocupação de Lisboa pelos franceses, François-Antoine Hermann escrevia a seguinte provisão sobre a reforma do Real Erário:
Em nome do Imperador dos franceses e Rei de Itália, e por nomeação e ordem de S.ª Ex.ª o Governador de Paris, Primeiro Ajudante de Campo do dito senhor e General em Chefe, etc:
Francisco António Herman [sic], Comissário do Governo francês junto ao Conselho da Regência e Administrador Geral das Finanças, etc., considerando que o actual estado da fazenda deste Reino exige providências análogas à diminuição dos seus rendimentos, e ao menor trabalho que há de haver na arrecadação e distribuição deles, e muito mais por se acharem presentemente interrompidos os negócios ultramarinos e haver cessado a expedição dos objectos de finanças que lhe eram relativos. E devendo começar-se pelos que instam mais para se evitarem despesas inúteis e supérfluas: ordeno que as duas Contadorias Gerais do Erário, denominadas da África Ocidental, Bahia e suas dependências, e da África Oriental e território da relação do Rio de Janeiro, fiquem abolidas no último do corrente mês, assim como os empregos das pessoas que servem nelas, com as modificações abaixo declaradas: que não só a comissão estabelecida para os ajustamentos das contas de José Caetano da Costa, mas também a Contadoria criada para os exames e escrituração das despesas e contas dos provimentos de boca para o Exército, fiquem igualmente abolidas com os seus respectivos oficiais; que as dependências constantes da relação junta com o n.º 1, que estavam a cargo das referidas repartições, passem para as três Contadorias Gerais da cidade e termo, Estremadura e províncias, pela forma que na mesma relação se individua; que o Contador Geral José Joaquim Pereira Marinho, e oficiais contemplados na relação n.º 2 passem das Contadorias extintas para as outras, com os ordenados nelas designados, a fim de que os negócios de que se acham instruídos continuem a expedir-se com a regularidade que pede o bem do serviço e interesse público; que os Contadores Gerais Paulo José Soares e Teotónio Rodrigues de Carvalho e os demais oficiais incluídos na relação n.º 3 fiquem aposentados com os vencimentos que nela se declaram, para os perceberem ela respectiva folha, enquanto não obtiverem outros empregos de igual ou maior rendimento; que os outros oficiais mencionados na relação n.º 4 sem vencimento algum por ficarem fora, se considerem habilitados para serem atendidos com preferência nas nomeações de quaisquer ofícios de fazenda que se houverem de prover para o futuro, pagando-se-lhes logo a título de gratificação um mês de seus ordenados, além do que tiverem vencido no fim do corrente ano; que os oficiais aposentados das duas Contadorias Gerais extintas sejam obrigados, debaixo da inspecção dos referidos Contadores Gerais, a inventariarem com a necessária separação todos os livros, contas e papéis, que hão de ser entregues nas outras Contadorias a que ficam pertencendo, e enquanto não se efectuar a referida entrega, continuarão a assistir regularmente nas suas mesmas repartições, sem outro algum vencimento mais que os das suas aposentadorias. E porquanto não é justo nem conforme às presentes circunstâncias que se paguem ordenados a quem não assiste nem cumpre como deve as suas obrigações, ordeno outrossim que as pessoas declaradas na relação n.º 5 sejam despedidos do serviço e excluídos da folha do Erário; determinando finalmente que esta provisão, com as relações que fazem parte dela, todas por mim assinadas, se registem na Tesouraria mor e Contadorias Gerais do mesmo Erário, para que tenham a sua devida execução e observância, enquanto não se mandar o contrário.
Lisboa, 30 de Dezembro de 1807.
Francisco António Herman [sic]
[Fonte: Domingos Alves Branco Muniz Barreto, Memoria dos Successos acontecidos na cidade de Lisboa..., fls. 18-19]
Contudo, de pouco serviram aquelas medidas para cortar gastos, pois logo no dia 9 de Janeiro de 1808 Junot fez cumprir as determinações de Napoleão referentes a gratificações que deveriam ser dadas ao exército francês. Eram novas despesas que se somavam às que já existiam. E ainda queria o Imperador que Portugal deveria sustentar o segundo Corpo de Observação da Gironda, mas isso Junot não podia cumprir, como anotou ele nesse mesmo dia, pelo menos enquanto não estivesse em poder dos rendimentos provenientes das províncias ocupadas pelos espanhóis, que somavam dois terços do total dos rendimentos do país...
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Finalmente, dispomos abaixo um recibo passado a Luís Gonçalves Teixeira de Barros, um dos negociantes que contribuiu para o empréstimo forçado decretado a 4 de Dezembro de 1807 com 4 contos de réis, três quartas partes dos quais pagas em metal e uma em papel-moeda.
Segundo a sua leitura, percebe-se que Junot determinara que esta contribuição fosse dívida do Estado, e assim sendo, este recibo serviria para o credor poder reaver o seu dinheiro. Contudo, foi necessário esperar-se por 1818 para, finalmente (a 30 de Junho), sair uma portaria ordenando a apresentação de recibos ou vales de géneros reclamados pelos franceses durante a sua ocupação. Foi então que o filho de Luís Gonçalves Teixeira de Barros (que entretanto falecera) apresentou este recibo (não podemos garantir, no entanto, que alguma vez lhe tenham pago - com ou sem juros - a quantia que seu pai entregara forçadamente aos franceses)...