domingo, 2 de janeiro de 2011

Uma Carta Americana sobre a proclamação de Junot de 1 de Fevereiro de 1808



Venâncio a Plácido

 
Fevereiro de 1808


Des biens des nations ravisseurs alterés. 
Le bruit de nos tresors les a tous attirés.




Todos os sucessos, meu Venâncio, que até agora me pareceram extraordinários, são átomos comparados com a grandeza dos novos acontecimentos.
Portugal é uma justa aquisição dos franceses, e só por eles há de ser governado; o Príncipe do Brasil perdeu, porque se ausentou, o direito que tinha à soberania deste Reino; e os seus habitantes devem pagar uma contribuição de quarenta milhões de cruzados. Tal é a suma da Proclamação e das ordens que, enfeitadas de palavras de bom sonido, se publicaram no princípio do presente mês de Fevereiro*.
Os vossos interesses, diz a Proclamação, fixaram a atenção de S. M. O Imperador, Nosso Augusto Senhor. Toda a irresolução deve desaparecer: decidiu-se a sorte de Portugal e segurou-se a sua felicidade futura, pois que Napoleão o Grande o tomou debaixo da sua omnipotente protecção.
O vil adulador não reparou que esgotava todas as lisonjas na ímpia aplicação dum atributo da Divindade; que se privava para sempre do prazer de exaltar mais o seu herói; e que, fazendo depender a nossa felicidade da omnipotência de Napoleão, perdemos de todo as esperanças de deixarmos de ser desgraçados. Não tarda, meu amigo, uma nova apoteose; os franceses dos nossos tempos disputam vilezas com os escravos dos Tibérios.
O Príncipe do Brasil, abandonando Portugal, renunciou todos os seus direitos à soberania deste Reino. A Casa de Bragança acabou de reinar em Portugal.
Que fraudulenta conduta! Que indignos estratagemas! Obriga-se com a invasão injusta de um Exército a sair deste Reino a família real, e serve depois a mesma saída para prova justificativa da usurpação. O príncipe regente, retirando-se ao Brasil, tomou o único sensato expediente que lhe restava para salvar a sua própria pessoa, e poupar os vassalos aos horrores de uma guerra que seria então necessariamente desgraçada. A aliança pública da Espanha com a França e os ajustes particulares que se suspeitaram pela ligação dos dois Exércitos desanimaram com razão o nosso Ministério, que não só teve por baldada e funesta qualquer resistência, mas conheceu que a França se servia do pretexto de vir fechar os portos à Inglaterra para introduzir tropas e arrancar o ceptro ao nosso legítimo monarca. Vê-se claramente que se entenderam bem suas danadas tenções, quando se lê no Decreto de 26 de Novembro estas notáveis palavras: as tropas franceses dirigem-se muito particularmente contra a minha real pessoa.
Com efeito, meu amigo: respeitariam porventura o soberano os pérfidos que desde os primeiros momentos da sua entrada intimaram ordens aos Governadores do Reino, dispuseram dos bens da Coroa, e se apossaram do Tesouro Público, como se fora próprio? Respeitariam o soberano os que ousam dizer-nos com inaudita insolência, pisando os direitos do povo português, e insultando a nação, que já não compete à Casa de Bragança o direito de reinar neste país? Não, meu amigo; o príncipe soberano de Portugal era uma das vítimas que a insaciável ambição de Bonaparte designava para o sacrifício, de que depende a elevação da sua família; portanto, ficando no Reino, era inevitável a sua desgraça; e retirando-se, é muito incerto o perdimento da Coroa, apesar do que blasonam com insensata arrogância os intrusos dominadores.
Quem, se não o vira, acreditara que o chefe da nação, que há poucos anos declarou tão solenemente os direitos dos povos, se arrogava o poder de nos governar, ou talvez de nos dar um soberano, desentronizando o legítimo que nos regia, como descendente do primeiro, que os nossos maiores livremente aprovaram para reinar? Qual não foi a indignação da França contra as potências que no princípio da Revolução tentaram dar-lhe a sua antiga forma de Governo? Demonstraram os novos republicanos (e bem diferentes dos antigos) que a cada nação em particular pertencia a escolha da autoridade suprema; e o povo, justamente irritado pela afronta que lhe faziam os reis que contra eles se ligaram, vingou-se das injúrias dos seus inimigos por uma longa série de vitórias. A França, pois, reconhecendo modernamente a base primeira das convenções sociais e sustentando com as armas [a] sua independência, nos autoriza com lições e exemplos a não sofrermos o jugo que aleivosamente nos prepara.
Não penses contudo que assim equiparo o procedimento dos reis à vil conduta do flagelo da Europa; aqueles parentes e aliados do último monarca francês procuravam mantê-lo no trono que legitimamente ocupava; este exerce sobre nós os poderes de soberano sem consultar [a] nossa vontade; aqueles declararam guerra à França; este anuncia-se amigo, aliado, protector e apossa-se do Reino com enganos, para nos sujeitar atraiçoadamente ao seu domínio. Que vingança não pode este incrível atentado, e que não será o último, se a Europa não opuser diques poderosos à torrente devastadora? Como se alucinam as potências a ponto de não verem que a preponderância da França procede mais da indolência e medo dos contrários do que das suas próprias forças? Porque não se lembram do que Aníbal pensava dos romanos, e que exactamente se aplica aos actuai? “Os Romanos são invencíveis (dizia aquele excelente General) porque os seus inimigos são medrosos e néscios; enganados pelas ardilezas do Senado, sucumbem uns após outros, sem reflectirem que seria bem fácil alcançarem reunidos e persistentes, o que nunca conseguirão separados e inconstantes”. Nesta desgraçada idade, a Itália, Alemanha, Prússia e Rússia têm caído no mesmo erro, e cooperado involuntariamente para os triunfos da França. Voltemos à Proclamação.
O Imperador Napoleão quer que este belo país seja administrado e governado todo inteiro em seu nome, e pelo General em Chefe do seu Exército. A tarefa que me impõe este sinal de benignidade e confiança de meu amo é difícil de cumprir; mas eu espero preenchê-la dignamente, ajudado dos trabalhos dos homens mais instruídos do Reino, e da boa vontade de todos os seus habitantes.
De que modo cuidas tu que o General vai desempenhar a tarefa? Lê nas suas próprias palavras, e pasma.
Eu ordeno que se abram estradas e rompam canais para facultar as comunicações, e tornar florescente a agricultura e a indústria nacional, dois ramos tão necessários à prosperidade de um país, a qual será fácil de reestabelecer com um povo espirituoso, sofredor e intrépido.
Paro aqui para me deleitar com a imaginada perspectiva da nossa felicidade futura, e para admirar contigo o novo criador. Quanto é grande o poder francês! Para se executarem os projectos mais difíceis e dispendiosos basta dizer ordeno. Não vês tu nesta frase o fiat lux do Génesis? Duvido porém que chegues a ver o facta est1.
As rendas públicas bem administradas assegurarão a cada empregado o prémio do seu trabalho; a instrução pública, esta mãe da civilização dos povos, se derramará pelas províncias; e o Algarve e a Beira Alta terão também um dia o seu Camões. A Religião de vossos pais, a mesma que todos professamos, será protegida e socorrida pela mesma vontade que soube restaurá-la no vasto império francês, mas livre das superstições que a desonram; isto é, aliviadas as igrejas do peso de todos os seus ornamentos de oiro e prata; a justiça será administrada com igualdade e desembaraçada das delongas e arbítrios voluntários que a sopeavam; porque no governo militar olha-se mais para a brevidade do que para a rectidão das sentenças.
A tranquilidade pública não será mais perturbada por horríveis salteadores, resultado da ociosidade; e se acaso existirem malvados incorrigíveis, uma polícia activa livrará deles a sociedade; a disforme mendicidade não arrastará mais os seus fatos imundos na soberba capital, nem pelo interior do Reino; estabelecer-se-ão casas de trabalho para este fim; o pobre estropiado ali achará um asilo, e o preguiçoso será empregado em trabalhos necessários à sua própria conservação.
Observo que o General é particularmente afeiçoado ao Algarve e Beira Alta; aliás, que lhe custava dar igualmente a cada uma das outras províncias o seu Camões? Porque seria mesquinho em prometer fortunas que nunca por seus cuidados hão de ter realidade?
Dizem-nos que será protegida a religião de nossos pais; eu o creio; será protegida como nós. Os baixos embusteiros, conhecendo a poderosa influência da religião sobre os homens, prestam-lhe homenagem nas expressões e fingem respeitá-la, porque temem, desprezando-a, chamar sobre si a cólera dos povos, sempre mais prontos a vingar os ultrajes feitos a Deus do que os seus próprios. Sobre a providência de não arrastar mais a disforme mendicidade não arrastará mais os seus fatos imundos na soberba capital, só digo (por não falar da imprópria e ridícula inchanção das frases) que ficando Portugal reduzido à miséria extrema pela ocupação dos nossos protectores e pelo benefício da contribuição, será baldado o empenho de instituir casas públicas para recolher os pobres, se não tiverem capacidade para receber todos os habitantes do Reino.
Confesso-te que o meu amor próprio se ofende quando vejo que se aspira a iludir o corpo inteiro da nação, assoalhando sabidas generalidades; que só entreterão espíritos tão superficiais e ignorantes que cheguem a confundir as promessas com o cumprimento delas, e não vejam que a regeneração do Estado não pode ser a obra dos que o roubam e devastam.
De muitos conquistadores nos fala a história, que assolaram e exterminaram povos para contentar caprichos e ambições; mas invadir manhosa e violentamente um Reino; tirar sem causa as ocupações aos empregados; extorquir somas avultadas por todos os modos possíveis; denominar conquistado o país (em que entrou amigavelmente) para lhe impor uma contribuição cujo produto é incalculável; e chamar por fim a tantas desgraças fortunas e prosperidades, é caso único, que não se repetirá talvez na sucessão de muitos séculos, e que estava reservado para o feroz Bonaparte e seus infames satélites.
Não renunciemos, porém, meu Venâncio, à esperança consoladora de ver abatido o seu poder colossal; julguemos antes que o excesso das calamidades é a aproximação do seu termo. Precisam-se maiores forças para conservar as conquistas do que para alcançá-las; os povos gemem em afrontosa escravidão e suspiram por liberdade; a Inglaterra, invencível pela situação e pela energia do Governo, pode (e lhe convém) prestar socorro às nações que se resolverem a sacudir o jugo; e a vingança terrível que resultar da desesperação, poderá talvez  derribar do trono o orgulhoso tirano, que tão violentamente tem disposto dos alheios.





*     [Nota do autor]: Com a data de 1 de Fevereiro tivemos a proclamação que o Autor transcreveu quase por inteiro e 3 decretos. Um estabelecia a derrama da contribuição imposta por Bonaparte em Milão, aos 23 de Dezembro de 1807. Outro tratava da criação do novo Governo francês. O terceiro dava as fórmulas para as leis, decretos, ordens, sentenças, etc.

1     [Nota nossa]: Trocadilho com o terceiro versículo do livro do Génesis, segundo a Vulgata: dixitque Deus fiat lux et facta est lux ("disse Deus: haja luz. E houve luz").



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In Cartas Americanas. Publicadas por Theodoro José Biancardi [1.ª ed., 1809], Lisboa, Impressão de Alcobia, 1820, pp. 145-154.