terça-feira, 14 de junho de 2011

A rendição incondicional da esquadra de Rosily em Cádis (14 de Junho de 1808)




A esquadra britânica bloqueando o porto de Cádis


Em Outubro de 1805, o Almirante Pierre Villeneuve, comandante de 18 navios de guerra franceses ancorados em Cádis, recebeu uma carta do seu Governo, através da qual era informado que ia ser destituído do seu posto, pois Napoleão não estava nada satisfeito com o facto dele não conseguir furar o bloqueio que alguns navios britânicos faziam àquele importante porto. Pressionado desta forma, e antecipando a chegada do Vice-Almirante Rosily (que o ia substituir), Villeneuve decidiu sair de Cádis, acompanhado por outros 15 navios espanhóis. Contudo, o tiro saiu-lhe pela culatra, devido à estratégia naval do Almirante inglês Horatio Nelson, que embargou as movimentações das embarcações inimigas, executando um fulminante ataque, no dia 21 do mesmo mês. Entre embarcações apresadas, afundadas e explodidas, somente 11 navios aliados (5 franceses e 6 espanhóis) e algumas fragatas conseguiram regressar à Cádis. Rosily, ao chegar a esta cidade poucos dias depois da batalha de Trafalgar (como ficou conhecido este episódio), deparou-se com um triste cenário... Desde então, Rosily ficou com os seus cinco navios e uma fragata naquele mesmo porto, igualmente sem os conseguir retirar, pois a esquadra britânica, comandada (depois da morte de Nelson na referida batalha) pelo Vice-Almirante Collingwood, persistia no seu bloqueio a Cádis. 


Fonte: Wikipedia


Vista de Cádis e arredores


Quando o povo espanhol começa a manifestar-se contra os franceses, no início de Maio de 1808, Collingwood encontrava-se temporariamente afastado de Cádis, comandando o bloqueio do porto de Toulon (onde estavam ancorados 12 navios franceses). Não obstante estas movimentações, o porto de Cádis continuou a ser bloqueado por 12 embarcações britânicas, que eram agora comandadas pelo Contra-Almirante Purvis (Collingwood, sabendo das acções que mais abaixo se descrevem, regressaria a Cádis no dia 11 de Junho seguinte). A 14 de Maio, depois de conversações com a Junta de Sevilha, o Governador de Gibraltar (General Hew Dalrymple) envia o General Spencer (juntamente com 4 a 5 mil soldados), que estava estacionado naquela praça desde o final de Janeiro daquele ano, ao encontro da esquadra britânica em Cádis, com o fim de cooperar com os espanhóis em caso necessário. Poucos dias depois de ali chegar, Spencer manda publicar na cidade (provavelmente através de pescadores) alguns exemplares duma proclamação sua, onde propunha a união e cooperação entre espanhóis e ingleses contra os franceses. Apesar da oferta ter soado bem aos ouvidos do povo da cidade, as autoridades demoraram em dar uma resposta formal. O Governador de Cádis, que acumulava ao mesmo tempo, e entre outros, os cargos de Governador e Capitão General do exército e da província da Andaluzia, era nada menos que o Marquês del Socorro, o nosso conhecido General Solano, que como vimos recebera ordens em meados de Fevereiro anterior para regressar à Espanha. Parece que Solano queria atacar as embarcações francesas, mas faltava-lhe a pólvora necessária para empreender um ataque satisfatório. Com os ânimos populares já exaltados pelo facto das autoridades de Cádis não tentarem apresar ou destruir os navios franceses, finalmente, na noite do dia 29 de Maio, depois de se reunir com outros Generais espanhóis, Solano decide ordenar a publicação dum edital onde repudiava a ideia de uma aventurada declaração de guerra à França. Ao amanhecer do dia seguinte, os populares vêm a proclamação e dirigem-se imediatamente à casa de Solano. Este, querendo acalmá-los, aponta para a esquadra inglesa que se vê ancorada no horizonte, e indica-lhes que ali estavam os verdadeiros inimigos de Espanha. Supondo-o partidário dos franceses, o povo enraivecido não lhe perdoa e invade os seus aposentos, levando-o preso. No meio do tumulto, a caminho da forca, Solano morreu assassinado, atravessado por uma espada (Solano não foi a única vítima deste tipo de tumultos, que ocorreram um pouco por toda a Espanha - e seguidamente em Portugal. Curiosamente, longe dali e mais ou menos à mesma hora que Solano era assassinado, o Comandante General da província espanhola da Extramadura, o Conde de la Torre del Fresno, também morria às mãos dos populares de Badajoz).

Ainda no dia 29, depois de vários dias sem obter resposta alguma das autoridades de Cádis, Spencer escrevia uma carta ao Secretário de Estado da Guerra da Grã-Bretanha (Visconde Castlereagh), anunciando-lhe que a nobreza e o Governador daquela cidade pareciam “preferir a segurança e a submissão aos perigos duma resistência honrosa” [Fonte: “Précis of Letters from Major-General Spencer, relative to Spanish Affairs”, in Correspondence, despatches, and other papers, of Viscount Castlereagh, second Marquess of Londonderry – Volume VII, London, William Shoberl Publisher, 1851, pp. 146-157, p. 148]. Perante tal cenário, Spencer preparava-se no dia 30 para regressar à praça de Gibraltar, quando recebe a bordo da sua embarcação uma visita inesperada de dois enviados da Junta de Sevilha,  perguntando-lhe se continuava viável a proposta de acordo que tinha sido tornada pública. Foi assim que Spencer tomou conhecimento de que Solano acabava de ser assassinado, e que, na sequência do tumulto, criara-se em Cádis uma Junta que reconhecia a de Sevilha como Suprema. Depois de várias horas de conversações, chegou-se a um consenso, que foi formalizado no dia seguinte. Os espanhóis rejeitaram o auxílio das embarcações inglesas, pois queriam apresar para si as embarcações francesas. Por outro lado, não nos podemos esquecer que, até aí, espanhóis e ingleses eram inimigos, pelo que ainda continuava a haver algum receio de ambas as partes. Assim, ficou acordado que os ingleses manter-se-iam nas suas embarcações, continuando a bloquear a baía da cidade, mas só dariam assistência em caso estritamente necessário. O que realmente fazia falta aos espanhóis era pólvora (motivo pelo qual, como dissemos, Solano não tinha determinado o ataque aos navios franceses), a qual foi cedida pelos ingleses na quantidade de 400 quilos



Vista aérea de Cádis



Entretanto, antes ainda da revolta espanhola se ter alastrado a Cádis, Rosily, esperando o reforço do corpo comandado pelo General Dupont e prevendo já um eventual rompimento das relações com a Espanha por parte de Napoleão, tinha disposto as suas embarcações entrelinhadas com as espanholas, a fim de se prevenir contra um eventual ataque directo das baterias e fortificações costeiras. Contudo, no dia 30 de Maio (já depois da morte de Solano), sob o pretexto de festejar o dia de San Fernando, onomástico do monarca D. Fernando VII, as embarcações espanholas separam-se das francesas com o consentimento de Rosily, enquanto se começam a preparar as fortificações costeiras e a construir várias baterias terrestres, bem como a artilhar várias lanchas (é caso para se notar que somente um navio espanhol estava em condições de empreender um ataque bem sucedido). Vendo-se cercado por todos os lados e sem poder sair da barra devido ao bloqueio inglês, Rosily decide posicionar a sua esquadra bem dentro da baía de Cádis (numa zona conhecida por Poza de Santa Isabel), no dia 6 de Junho, ou seja, no mesmo dia em que a Junta de Sevilha declara formalmente guerra a Napoleão
Finalmente, no dia 9 de Junho, depois de ultimados todos os preparativos para o ataque, o novo Governador de Cádis (General D. Tomás de Morla) escreve a Rosily, intimando-o a render a sua esquadra e os seus homens:




Sr. Almirante:
A nação espanhola, religiosa, amante dos seus Soberanos, fiel e leal a eles, e sempre valorosa com honra, não pôde ver sem se irritar a perfídia com que a França se apoderou do nosso amado monarca [Fernando VII] sem guerra declarada, e com aparência de cordial amizade. 
A sua insurreição foi geral por todas as províncias, que se declararam mais ou menos prontamente, com muito pouca diferença de dias. Em Sevilha, capital da Andaluzia, erigiu-se uma Junta Suprema de Governo, à qual obedecemos. Esta não pode ver com indiferença que, enquanto as tropas da nação francesa já agem hostilmente nas nossas povoações, esteja neste porto armada e arvorando o pavilhão francês a esquadra comandada por Vossa Excelência. Em consequência, a Junta ordenou-me a intimar Vossa Excelência a render-se imediatamente, e, em caso contrário, a empregar todos os meios que dita a arte e que estão em meu poder para bater a esquadra até que se renda.
Para este efeito dou a Vossa Excelência duas horas para que se resolva a render-se; mas negando-se a fazê-lo depois desse tempo, ou se o ver fazer qualquer movimento, abrirei fogo de bombas e balas rasas (que serão incendiárias se Vossa Excelência se obstinar); atacará a esquadra espanhola e também as forças subtis. Por último, a esquadra inglesa estará na boca do porto para que não lhe reste o menor recurso.
A efusão de sangue é sempre dolorosa a quem tem sentimentos de humanidade; mas muito mais quando se derrama sem a menor esperança de sucesso, como não a pode ter Vossa Excelência. Para além disto, a vossa obstinação irritará muito mais o povo, e ainda que seja pouco o mal que nos possa fazer, não respondo pela sua vingança sobre inocentes vítimas [vivia em Cádis uma pequena colónia francesa]. Conheço a honra militar, e não seria capaz de intimar a Vossa Excelência (a quem pessoalmente estimo) algo contrário a ela. É certo que não a manchará rendendo-se; dado que Vossa Excelência não poderá ter o menor vislumbre de não ser destroçado, perdidas as suas embarcações, e não só a vida das suas tripulações, mas talvez também outras fora do campo de Marte.
Cádiz, 9 de Junho de 1808.
Tomás de Morla


Apesar da sua situação arriscada, Rosily nega render-se, adiantando na resposta ao ultimato de Morla que se a esquadra britânica não atacasse nem perseguisse as embarcações francesas por um período de quatro dias desde a sua saída, estas afastar-se-iam imediatamente das águas de Cádis. Em contra-resposta, o General Morla dá sinal para se começarem as hostilidades. Ao entardecer, depois de cinco horas de uma intensa troca mútua de fogo de artilharia, o combate cessa sem os franceses se renderem. 
Ao amanhecer do dia 10, recomeça o fogo da artilharia, embora com menor intensidade do que na tarde anterior. Por volta do meio-dia, os franceses hasteiam a bandeira de tréguas e Rosily envia um novo ofício a Morla, insistindo na sua postura anterior. A resposta de Morla não se faz esperar:

Peço a Vossa Excelência que reflexione sobre a inutilidade da sua resistência, e se persuada de que se não consente a rendição que lhe intimo pela segunda vez, usarei de todos os meios vigorosos que tenho para destruí-lo, responsabilizando Vossa Excelência por todos os prejuízos e desastres que se originem em consequência.


Na verdade, apesar desta resposta, os espanhóis mal dispunham de pólvora para um ataque em força, uma vez que a tinham gasto quase toda no primeiro dia do combate. Assim, Morla manteve os canhões silenciados à espera que os franceses tomassem a iniciativa, o que não voltou a ocorrer nesse dia 10. 
No dia seguinte, Rosily envia uma nova proposta: apesar de insistir em que o deixem sair de Cádiz com as suas embarcações e respectiva tripulação, adianta agora que cederia todo o seu armamento, que seria desembarcado na cidade. Vendo que os ânimos dos franceses começavam a fraquejar, Morla responde a Rosily que não estava capacitado para aceitar as condições sugeridas e que deve consultá-las com a Junta Suprema de Sevilha. Enquanto se espera pela resposta, os espanhóis aproveitam os dois dias seguintes para executarem ostensivamente (para enganar e induzir medo aos franceses) novas medidas de ataque, entre as quais o restabelecimento das posições danificadas e a instalação de uma bateria costeira de 30 canhões bem defronte dos navios inimigos. 
Finalmente, na manhã do dia 14, chega a Cádis a resposta da Junta de Sevilha, que nega a proposta de Rosily e oferece tão somente o respeito pelas vidas e equipagens dos rendidos. Depois de receber esta resposta, Rosily convoca os seus comandantes e, à vista da aparente inutilidade de resistir ao assédio, decide arrear a bandeira e render a esquadra. Ainda no mesmo dia, o General Morla torna público este facto através da seguinte proclamação:

Prevenções do Governo aos habitantes de Cádis



A esquadra francesa acaba de render-se à discrição, confiada na humanidade e na generosidade dos gaditanos, como já publiquei. As medidas que se tomaram libertaram a nossa esquadra do menor deterioro, e deixaram-na ilesa: mesmo nas forças que se empregaram não houve estragos consideráveis; e a efusão de sangue foi menor que a dum combate de duas embarcações pequenas: não houve mais que quatro mortos.

Ademais, os navios franceses e as suas munições e armas ficam ao nosso dispor; os seus prisioneiros servir-nos-ão de moeda de troca e como reféns. Nada disto se teria conseguido com os projectos pouco meditados e combinados de brulotes, balas incendiários e outros. Se não se tivessem tomado precauções que exigem tempo, a nossa mortandade teria sido considerável. Lisonjeio-me, pois, de ter correspondido à confiança destes habitantes, que tantas e tão repetidas provas me deram da sua estima, a que jamais o meu coração sensível poderá corresponder dignamente.

Mas agora peço, exijo e mando que cessem os rumores, que tudo entre na ordem: que se submeta cada um segundo a sua classe às Autoridades constituídas, que todas dependem da Suprema Junta [de Sevilha], sempre atenta ao bem geral e a procurar com a maior actividade alianças parciais e meios para o feliz êxito da nossa empresa; que se deixem reinar as leis, e se odeie a arbitrariedade. Escandaliza que o povo mais culto e urbano da terra exclame e queira a morte de um particular. Só o campo de Marte, onde se repele a força com a força, autoriza a ilegal efusão de sangue. Fora dele, até os próprios Soberanos não são donos da vida mais facínora; é nas leis que a foice tem a força que a faz obrar. Estas proíbem em todas as nações, mesmo nas mais bárbaras, as sedições, gritarias e tumultos; devemos obedecê-las e respeitá-las: é o único meio de esperar felizes êxitos e de não ofender nesta parte nem ao Deus dos Exércitos, nem ao Soberano cujos direitos sagrados jurámos defender.

Para não multiplicar escritos, dirijo-me agora aos franceses fixos ou residentes nesta cidade. A Junta Suprema teve uma consideração sem exemplo convosco, pois prestando juramento de fidelidade à nação espanhola, admite-vos no seu seio, e salva os vossos bens e propriedades; gratos a este grande benefício, não deveis ser víboras que destroem e mordem o seio que as abriga; pelo constrário, estais obrigados a mostrar a maior lealdade e estima a um Governo tão generoso; deste modo não só afastareis de vós o ódio destes habitantes urbanos, senão que atraireis o seu amor. De contrário, temei a sua justiça. Castigarei com rigor e sem a menor indulgência até as assembleias entre vós, as expressões e ditos desordeiros e contrários à nossa causa. Se algum insensato não a respeita pela sua razão e justiça, será a vítima do seu orgulho ou necessidade.

Cádis, 14 de Junho de 1808.

Morla



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Chegava assim ao fim o primeiro confronto bélico entre os espanhóis e os franceses (apesar da bibliografia sobre a chamada Guerra de la Independencia muitas vezes dar tal primazia à batalha de Bailén, ocorrida mais de um mês depois). Este episódio marca também o início do fim do Império de Napoleão, provando-se pela primeira vez que as suas tropas não eram invencíveis. Cerca de 3.600 soldados foram aprisionados, e como as embarcações francesas (5 navios e 1 fragata) tinham sido previamente apetrechadas para cinco meses, foi imensa a quantidade de material bélico apreendido: 442 canhões e outras 80 peças de artilharia, 1.651 quintais de pólvora, 1.429 espingardas, 1.069 baionetas, 50 carabinas, 505 pistolas, 1.096 sabres, 425 chuços, 101.568 balas, assim como a quase totalidade de munições para os canhões... A luta andaluza via-se agora mais aliviada e fortalecida do que nunca

Mais de um mês depois, Napoleão tomou conhecimento destes factos através de um periódico inglês. Apesar de anos mais tarde vir a reconhecer que a guerra da Espanha foi o seu maior erro, por enquanto Napoleão mantinha-se altivo e desconfiado da veracidade de tais notícias: numa carta que no dia 28 de Julho de 1808 enviou ao seu irmão José (que como vimos passara a ser rei de Espanha), escreveu ele que um jornal inglês diz que a minha esquadra foi bombardeada durante três dias pelos rebeldes em Cádis, que foi forçada a se render e que se encontra no mesmo porto. E logo repetia, desconfiado da sua autenticidade: isto é uma notícia inglesa... [Fonte: The Confidential Correspondence of Napoleon Bonaparte with His brother Joseph, sometime King of Spain – Volume I, ed. cit., pp. 338-339, p. 339 (n.º 408)].

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Bibliografia e websites consultados:





Miguel Aragón Fontenla, “La rendición de la escuadra de Rosily”, in XXXV Jornadas de Historia Marítima – La Marina en la Guerra de la Independencia I (Ciclo de Conferencias – Octubre 2007), Cuadernos Monográficos del Instituto de Historia y Cultura Naval, n.º 55, Madrid, 2007, 67-90, pp. 88-89; republicado in Revista General de Marina, vol. 255, Agosto-Septiembre de 2008, pp. 329-348.






La captura de la flota francesa en Cádiz y la evacuación de las tropas españolas en Zelanda en 1808, in Todo a babor.