terça-feira, 15 de março de 2011

A chegada de Izquierdo a Aranjuez



Segundo Godoy, pouco antes da chegada das notícias da ocupação dos territórios do Papa em Roma pelas tropas francesas e da própria chegada de D. María Luísa a Aranjuez, onde se encontrava a Corte espanhola, já D. Carlos IV estava resolvido a partir para o sul da Espanha, onde estaria em melhores condições de, em último caso, tomar uma decisão semelhante à que tinha tomado a Corte portuguesa, partindo para as colónias espanholas na América. Contudo, opunham-se a esta medida muitas individualidades da Corte espanhola, entre as quais se contava Príncipe das Astúrias (herdeiro da coroa), Infante D. António (irmão mais novo do Rei) e António Caballero (ministro da Justiça). No intuito de dissuadir D. Carlos IV, Caballero, convencido que Napoleão agia defendendo os interesses da Espanha, chegou mesmo a afirmar que temia que houvesse um tumulto logo que se começassem a aprontar os preparativos para a partida da Corte. 
Foi então que, enquanto se discutia esta questão (nos primeiros dias de Março de 1808), chegou inesperadamente o conselheiro Izquierdo, enviado de D. Carlos IV junto de Napoleão (recordemos que, entre outros factos, tinha sido quem assinara, da parte da Espanha, o tratado de Fontainebleau). 
Antes ainda de chegar a Aranjuez, Izquierdo tinha-se cruzado em Bayonne com Murat, Grão-Duque de Berg (que como vimos tinha sido nomeado Comandante em Chefe do exército francês na Espanha pouco antes). Murat, desconhecendo completamente os planos do Imperador, escreveu-lhe no dia 2 de Março o seguinte: 
[...] Izquierdo passou ontem à noite por aqui com bastante pressa, e disse estar munido de uma missão importante de Vossa Majestade junto da sua Corte; e como ele apressou-se a mostrar o seu passaporte que deve servir para a ida e volta, e que era concebido nos mesmos termos do sr. Lima, auguram-se maus presságios sobre a sua missão. Ele pareceu-me bastante alarmado. [...] 
[Fonte: Lettres et Documents pour servir a l'histoire de Joachim Murat (1767-1815) - Tome V, Paris, Librairie Plon, 1911, pp. 303-305 (n.º 3046)].

O aludido sr. Lima era o embaixador de Portugal na França, que tinha passado por Bayonne precisamente na noite de 21 de Outubro do ano anterior, depois de Napoleão o "convidar" a sair da França para comunicar à Corte portuguesa a declaração de guerra que acabava de ser feita a Portugal. Seria assim tão grave a missão de Izquierdo? Porque é que ele pareceu tão alarmado a Murat? E porque é que ele regressou tão apressada e repentinamente à sua Corte, sem sequer avisá-lo previamente? 
Esperamos que o longo trecho que em seguida se insere, extraído das memórias de Godoy, explique estas e muitas outras dúvidas que certamente também passaram pela mente de Murat:


Depois daquele silêncio artificioso e prolongado que o Gabinete da França tinha praticado connosco enquanto Bonaparte empurrava-nos as suas legiões sem apresentar razões para a sua conduta, chegou a hora de falar e D. Eugenio Izquierdo foi chamado para levar directamente ao Rei da Espanha explicações e pedidos. Napoleão manteve-se atrás da cortina: foram os seus encarregados para aquele assunto o Marechal Duroc e o Príncipe de Bénévente. Deram-lhe apontamentos daquilo que foi falado, mas sem forma alguma diplomática, como um alívio à sua memória, com o expresso encargo, repetido muitas vezes, de entender-se directamente com o Rei, sem conferir com os ministros ou comigo. Izquierdo, ao chegar [a Madrid], foi procurar-me e disse-me que estava encarregado de falar sozinho com o Rei, não porque trouxesse coisa alguma contra mim ou qualquer outra pessoa, mas sim porque o que trazia eram assuntos graves e gravíssimos que requeriam muito conselho, sendo por isso indispensável, no seu entender, que eu assistisse a Carlos IV. Respondi-lhe que o Rei chamar-me-ia se o achasse conveniente, e encarreguei-lhe para partir [para Aranjueze apresentar-se logo e cumprir a sua missão. 
Acabado o relato prestado pelo conselheiro Izquierdo na audiência, a que assistiu a Rainha com o Rei, este mandou chamar-me. [...] Posso oferecer aos meus leitores, melhor do que as minhas recordações, uma transcrição exacta do papel que foi dado a Izquierdo para que o copiasse pela sua letra e trouxesse aquela cópia somente como um auxiliar de memória. Aquele escrito tinha somente o seguinte cabeçalho: Termos e questões propostas. Possuo a transcrição que fiz daquele raro documento, que, sendo depois entregue a Carlos IV, Sua Majestade guardou e levou consigo na sua viagem [para Bayonne], para o caso de lhe ser necessária. O seu teor literal é o seguinte: 
1.º termo: Que Sua Majestade o Imperador dos franceses, depois de tantas e tão sangrentas campanhas sustentadas pela França ao longo de quinze anos contra quatro coligações suscitadas e custeadas pela Inglaterra, sem que os constantes triunfos da sua república e do Império tivessem bastado para assegurar a paz tantas vezes concedida depois da vitória às potências coligadas, conquistada esta paz de novo nos campos da Polónia às custas dos maiores sacrifícios dos seus povos, julgava-se cheio de razão e de autoridade legitimamente ganha, para impedir no futuro, por todo o tipo de meios, ordinários ou extraordinários, regulares ou irregulares, violentos ou suaves, conforme as circunstâncias o necessitassem, que a paz do continente pudesse continuar a ser perturbada pela Inglaterra, disposto a este fim de acordo com todos os amigos e aliados do seu Império, entre eles o Imperador das Rússias, que estava pronto pela sua parte a cooperar da maneira mais enérgica com Sua Majestade Imperial e Real para forçar a Inglaterra à necessidade de se prestar a uma paz sincera e estável com a França e com as demais potências suas amigas e aliadas; paz definitiva e duradoura, como Sua Majestade a entendia, em que todas as nações da Europa gozassem dos benefícios e direitos comuns a que a natureza e a civilização as chamava a todas indistintamente.  
2.º Que fundados e assegurados os desígnios de Sua Majestade Imperial e Real no norte da Europa pelos tratados [secretos] de Tilsit e pela exacta e rigorosa execução desde o momento em que foram assinados, sem atender-se neles outros interesses que não os comuns da França e da Europa, faltava a Sua Majestade realizar plenamente as mesmas intenções nos povos do sul, onde a Inglaterra não tinha encerrados ainda todos os caminhos da sua mortífera influência, sendo-lhe forçoso para isto, por uma parte, pôr a Itália a coberto das intrigas e atentados daquele Governo maquiavélico; e por outra, afastá-lo para sempre do predomínio que exercia em Portugal, e de qualquer eventualidade pela qual, mais cedo ou mais tarde, pudesse prometer realizar na Península o que no norte da Europa lhe era já impossível e que tinha ansiado durante tanto tempo, que era acender o rastilho da guerra e abrir o teatro dela num país como Espanha ou Portugal, onde a longa extensão das suas costas devia oferecer-lhe mais recursos para uma guerra sanguinária e prolongada. 
3.ª Que para Sua Majestade levar a cabo os seus desígnios, igualmente saudáveis para Itália e Espanha, tinha concebido com a mais pura boa fé os tratados de Fontainebleau, pelos quais, dando ao Rei de Espanha uma grande parte (a maior) dos benefícios que deviam resultar dos seus projectos e resoluções em relação a Portugal, tinha consultado o bem comum da França e da Espanha, fazendo esta participante por tal meio dos gloriosos sucessos do Império, e contando com ela como uma grande potência que o era, para que lhe ajudasse amplamente a assegurar a paz do continente e a destruir a tirania marítima, objectivo duplo em que a Espanha, senhora quase única do continente americano, tinha ainda mais interesse do que as demais potências da Europa, e uma ideia destacada acerca da qual tinha querido o Imperador excitar mais e mais o ânimo de Sua Majestade Católica, oferecendo-se e obrigando-se pelos mesmos tratados a reconhecer-lhe em tempo oportuno como Imperador das Américas. 
4.º Que Sua Majestade Imperial, não ignorante de que na Espanha tinha existido sempre um partido inglês que embaraçava mais ou menos a amistosa e nobre concorrência da Espanha com a França contra o seu comum inimigo, a Inglaterra, e de que a influência deste partido tinha chegado até a fazer vacilar o Governo de Sua Majestade Católica sobre a boa fé da relações do Gabinete Imperial com o da Espanha, vacilação lamentável que teria podido conduzido a uma guerra dolorosa entre as duas nações, cujo interesse mútuo era de serem perpetuamente amigas, Sua Majestade Imperial, para desvanecer aqueles temores tão mal fundados, tinha feito inserir, de acordo com a sua própria vontade, a obrigação em que se constituía, pelo artigo XI, de garantir a Sua Majestade Católica a possessão dos seus Estados do continente da Europa situados a sul dos Pirenéus. 
5.º Que destruída antecipadamente por este meio todas as coisas malignas que posteriormente pudessem reproduzir os ingleses contra a boa fé e contra a sinceridade das relações do Gabinete francês com o da Espanha, logo que o tratado de Fontainebleau e a convenção a ele anexa foram ratificados pela parte de Sua Majestade Imperial, e todavia sem ainda estar bem seca a sua assinatura, teve [o Imperador] o desgosto de saber da discórdia que tinha rebentado na família real de Espanha, e o violento pesar de que se tivesse podido levar Sua Majestade Católica a crer que o Imperador, através do seu próprio embaixador, tinha tido ou podia ter tido influência na desobediência ou qualquer outra falta que tivesse cometido o Príncipe herdeiro, ofensa gravíssima que teria sido suficiente para ter feito rasgar aquele tratado e pedido uma satisfação ruidosa de tamanho agravo; mas que Sua Majestade Imperial, fiel ainda à poderosa simpatia que lutava no seu coração a favor de Carlos IV, contentou-se em exigir, para única reparação, que fossem sepultadas as injustas queixas que com tanta desonra da sua própria pessoa lhe tinham sido feitas, prometendo ao mesmo tempo que se chegasse a apresentar-se a Sua Majestade Imperial alguma prova convincente de que o seu embaixador se tinha misturado em assuntos interiores da Espanha, Sua Majestade faria justiça e daria satisfação a Sua Majestade Católica. 
6.º Que posteriormente, Sua Majestade Imperial, tanto através do teor de algumas publicações feitas na Inglaterra sobre os acontecimentos do Escorial, como através de notícias de algumas pessoas do Império que viajavam pela Espanha naquele momento e através dos avisos e ofícios do seu embaixador, tinha tido o novo descontentamento de saber que, ainda sem estarem bem sufocadas as discórdias da Real família, envenenavam-se na Espanha os partidos, e que os agentes ocultos da Inglaterra espalhavam que Sua Majestade Imperial se propunha a intervir naquelas dissensões e mostrar-se favorável ao Príncipe herdeiro, até chegarem talvez a coroá-lo ou a fazer pelo menos associá-lo ao reinado do seu pai; tramas e enredos infames do Governo inglês, por cujo meio se propunha a conseguir uma ruptura da Espanha com a França, pronto a oferecer àquela a sua assistência com armas e dinheiro, e arrastá-la e empenhá-la numa guerra desastrosa, com o objectivo de ter um campo onde incendiar de novo o continente. 
7.º Que com tais premissas, consciente Sua Majestade Imperial, por uma parte, das expedições que com o maior mistério preparavam os ingleses para a Península, fosse para alentá-la e promover nela o grito da guerra contra os franceses, fosse para a obrigar a entrar nos seus desígnios; e chegando a Sua Majestade, por outra parte, notícias seguras sobre o ardor e violência dos dois partidos que dividiam a Corte de Sua Majestade Católica; julgou o Imperador ser seu dever, não tanto por si próprio como pelo seu aliado Carlos IV, proteger o Reino e ainda a própria Corte contra qualquer evento perigoso; e que assim o tinha verificado, sem pretender pelo momento a anuência de Sua Majestade Católica, por diversas razões; a primeira, de consideração e de prudência para evitar discussões sobre o estado interior de Espanha, e afastar toda a ideia de que o Imperador se quisesse misturar nos negócios dela sem chamar-lhe Sua Majestade Católica; a segunda, para não se expor a uma negativa da sua parte sobre a entrada de mais tropas, negativa que teria sido muito possível em tais circunstâncias e teria comprometido o respeito entre ambas as partes; a terceira, para provar também até que grau podia contar Sua Majestade Imperial com a confiança do Governo de Carlos IV, a quem acabava Sua Majestade de garantir os seus Estados com um tratado soleníssimo.  
8.º Que pelos mesmos motivos, advertido como se achava já o Imperador, por uma longa experiência, do antigo e nunca interrompido sistema de precaução e restrições que o Governo de Sua Majestade Católica tinha observado sempre nas suas relações com a França, tinha antes querido Sua Majestade Imperial que se ocupassem algumas das praças fronteiriças por meios pacíficos e inocentes, em vez de que se fizessem as justas reclamações a que lhe dava direito a manutenção da boa disciplina e a segurança das suas tropas em relação à abertura e franqueza daquelas mesmas praças-fortes, que poderia ter-lhe sido negada com perigo da boa correspondência e harmonia das duas Cortes; que acerca deste ponto tinha sido muito de estranhar para o Imperador que, uma vez acordada por um tratado solene a entrada do primeiro exército de operações, não se lhe abriu praça alguma fronteiriça nem de Portugal, nem da França, antes pelo contrário, deram-se ordens determinantes para que não se abrissem nem sequer à própria curiosidade dos militares franceses, género de conduta nunca visto entre duas nações amigas, aliadas e concorrentes a uma mesma empresa de interesse recíproco; não podendo ocultar-se ao Governo de Sua Majestade Católica a abertura absoluta das praças militares, que ainda com menor motivo tinham desfrutado e desfrutavam as tropas de Sua Majestade Imperial nos demais países aliados onde o interesse comum requeria a passagem delas, nem devendo o mesmo Governo ignorar que, ainda na simples passagem concedida a um exército estrangeiro por um país neutro, costumam oferecer-se circunstâncias graves em que seja necessário apoderar-se de uma praça neutra, pôr nela guarnição, e ocupá-la por mais ou menos tempo, para se prevenir contra um inimigo que poderia invadir ou tentado invadir o território da sua passagem. 
9.º Que esta desconfiança do Governo espanhol em relação à invariável boa fé que Sua Majestade Imperial tinha observado sempre em todas as suas transacções políticas, dava margem a Sua Majestade o Imperador para por sua vez desconfiar da perfeita amizade e sinceridade de que aquele se gabava em relação à França, sendo uma coisa certa que o que desconfia de um amigo e teme dele alguma coisa, está muito perto de tornar-se seu inimigo; e sendo de observar aqui um contraste bem marcado entre os dois Governos, a saber, que Sua Majestade Imperial tinha deixado entrar o seu exército na Espanha sem exigir nenhuma garantia, ainda que o Governo de Sua Majestade Católica tivesse sobre as armas um número de tropas quatro vezes maior das que entravam vindas da França; que esta desigualdade nas demonstrações de amizade e confiança por parte da Espanha tinha obrigado Sua Majestade o Imperador a recolher informações e a estudar os passos e a política do Governo espanhol com especial cuidado; que nesta exploração tinha notado Sua Majestade, com não pouco desgosto, a frieza tão notável que este Governo mostrava nas suas medidas de cooperação contra o inimigo comum, e que se bem que Sua Majestade Imperial tinha tido muitos motivos de satisfação e até de agradecimento nos esforços que tinham sido feitos por parte da Espanha na campanha marítima de 1805, não tinha tido depois novos motivos para se alegrar, depois de ver o carácter de mera guerra defensiva contra a Inglaterra a que o seu Governo se tinha limitado durante mais de um ano, preocupando-se menos com os navios e armamentos da marinha do que com os exércitos de terra, mais adequados para se proteger da França que dos ingleses, tal como se tinha visto na Dinamarca com inteira ruína do seu poder marítimo furtado ao continente. 
1o.º Que por queixas e informações dos seus cônsules, tinha Sua Majestade que lastimar-se da severidade e da dureza das alfândegas e das taxas em relação ao comércio da França, sem distingui-lo em coisa alguma das demais nações e ainda das mais indiferentes; sendo também para o Imperador um grande motivo para estranhar o facto de ter-se diferido e postergado tantas vezes o tratado de comércio entre ambas as duas potências, indicado e prometido desde a paz de Basileia.  
11.º Que o contrabando inglês reinava sempre nas nossas costas do Mediterrâneo, efeito necessário da impunidade quase certa ou da suavidade dos castigos (que era uma coisa igual com que contavam sempre os defraudadores); enquanto a França sujeitava a penas rigorosas as contravenções mais pequenas que se podiam fazer, não somente nos litorais do Império, mas do mesmo modo nos demais países aliados que estavam protegidos pelas suas armas. 
12.º Que entre tantas e tão positivas demonstrações de tibieza, de indiferença e ainda de aversão por parte do Governo de Sua Majestade Católica em tudo quanto concorra com o de Sua Majestade Imperial, naquela actualidade tão importante, para forçar, por todo o tipo de meios, o Gabinete britânico a necessitar implorar pela paz, havia uma muito especial e recente, ainda não desmentida, a saber, que tendo convidado o Governo de Sua Majestade Imperial a que o de Sua Majestade Católica unisse a sua esquadra de Cartagena com a francesa ancorada em Toulon, para fazer levantar o bloqueio que sofriam em Cádis as duas esquadras combinadas, francesa e espanhola, e dispor com todas as quatro o novo ataque que meditava Sua Majestade Imperial contra as ilhas britânicas, era já passado mais tempo de quarenta dias, sem que a esquadra de Cartagena, chegada a Mallorca e depois a Menorca, tivesse dado à vela para Toulon, conforme se tinha prometido a Sua Majestade Imperial, diferindo a sua saída o comandante daquelas forças debaixo de pretextos especiosos e não comprovados de ventos contrários e de forças maiores inimigas; assunto sobre o qual se tinham feito e se estavam fazendo ao nosso Governo vivas e contínuas reclamações, cujo efeito atrasava-se sempre, e em cuja demora se deixava ver uma má vontade de concorrer àquela empresa tão desejada, restando assim mais tempo ao Governo britânico para organizar as suas defesas e armar mais amplamente as expedições que tentava fazer contra a Península, com maior perigo das armas espanholas e as francesas suas auxiliares. 
13.º Que Sua Majestade o Imperador jamais tinha duvidado e que ninguém no mundo seria capaz de fazer-lhe duvidar da probidade, da boa fé, da religião e da honra incorruptível do seu cordial amigo e aliado Carlos IV; mas que tal segurança não a tinha Sua Majestade Imperial tão completa dos ministros de Sua Majestade Católica; que depois disto tudo, em circunstâncias tais como eram aquelas em que a Espanha se encontrava, não era fácil que Sua Majestade Católica se encontrasse constantemente no caso de ver e julgar os sucessos e as questões que se aproximavam com a clareza, exactidão e impassível firmeza que eram tão necessárias e desejáveis; que desgraçadamente Sua Majestade Católica, por uma triste fatalidade de acontecimentos não previstos, se encontrava no meio de duas influências contrárias, em que se cruzavam ao redor do trono os enredos e mentiras debaixo das mais aparências mais enganosas; que a discórdia introduzida e não bem apagada na sua Real família tinha raízes fundas nos partidos que com astúcia infernal agitava a Inglaterra disfarçada de mil modos; que Sua Majestade Imperial sabia, de uma maneira segura, que, entre os dois partidos principais que dividiam a Corte da Espanha, fazia-se sentir um terceiro partido de anarquistas, cujos desígnios se alargavam ao extremo de aspirar a uma reforma capital da monarquia espanhola, com semelhança segundo uns à constituição inglesa, e segundo outros à constituição americana; que uma revolução, de qualquer modo que fosse levada a cabo, quer se contivesse a uma mera questão de pessoas, quer se estendesse também às coisas, poderia fazer carecer a Vossa Majestade Católica da plena liberdade que necessitaria para cumprir os seus empenhos contraídos com a França, ou para chegar ao ponto de desapossá-lo da sua Real coroa, em cujo triste evento Sua Majestade Imperial poderia encontrar-se comprometido na Península contra as armas britânicas e contra o próprio país, tendo que superar ao mesmo tempo a guerra civil e a guerra estrangeira; que um acontecimento desta espécie poderia pôr em dúvida até a honra do Gabinete francês entre os demais povos do continente, que não poderia saber ao certo qual teria sido a verdadeira origem de semelhante pé de vento; finalmente, que a existência da Espanha como nação independente não poderia deixar de correr em tal revolta um grande perigo, com a transcendência fatalíssima de perder as Américas, e encontrar-se depois destruída, entre as dissensões interiores e as contendas porfiadas da Inglaterra e da França, uma nação como a Espanha, feita para mandar sobre as terras e sobre os mares com a França, única amiga sua verdadeira e companheira natural de interesses e política.
14.º Que ainda esquecendo Sua Majestade Imperial, como se esforçava por esquecer, as queixas amigáveis que tinham sido expostas, era-lhe impossível prescindir da situação interior política em que se achavam os partidos, e das grandes mudanças que uma colisão entre eles poderia ocasionar no sistema político do Gabinete espanhol; que em presença desta situação, pela qual tinham variado notavelmente as circunstâncias em que Sua Majestade Imperial tinha tido por bem aprovar o tratado de Fontainebleau, não se estimava ligado à rigorosa observação daqueles artigos e cláusulas que poderiam prejudicar a segurança e o bom êxito das suas armas na Península, enquanto esta se encontrasse ameaçada, fosse no interior por uma guerra doméstica, fosse no exterior por uma invasão de ingleses nas suas costas sustentada ou não pelas facções que a Inglaterra movia; que não podendo o Imperador nem devendo de modo algum desistir da sua empresa em Portugal, nem deixar de fazer frente aos ataques que tentassem fazer os ingleses tanto naquele Reino como na Espanha, considerava-se na necessidade de mover e situar os seus exércitos em combinação com os de Sua Majestade Católica, onde quer que as circunstâncias poderiam tornar necessária a presença deles, sem excepção alguma de províncias e lugares; e que por igual motivo não podia deixar de exigir que fossem abertas aos seus exércitos quaisquer praças-fortes nas quais os mesmos necessitassem apoiar-se, responsabilizando o Governo de Sua Majestade Católica os seus comandantes sobre qualquer oposição ou demora que façam uma vez requerida a sua abertura.  
15.º Que por causa das contingências já indicadas de um transtorno que pudesse produzir a colisão dos partidos, Sua Majestade Imperial não podia deixar de pedir a Sua Majestade Católica algumas garantias contra todo o tipo de acontecimentos posteriores que, independentemente da vontade de Sua Majestade Católica, chegassem a alterar a paz interior do Reino juntamente com o sistema político do seu Governo; que devendo precaver-se Sua Majestade Imperial contra tais acontecimentos muito possíveis, não podia deixar de fortalecer-se especialmente nas províncias espanholas fronteiriças da França, e que tais poderiam ser os acontecimentos que se visse obrigado a estabelecer nelas governos militares e ocupá-las até um ano depois de se terem feito e consolidado as pazes gerais; que na execução desta medida, Sua Majestade o Imperador não podia deixar de encontrar todos os inconvenientes que leva consigo uma maneira de existir precária e sobrenatural, tal como haveria de ser em tal suposição a daquelas províncias, e que Sua Majestade Imperial, que podia achar serem suficientes os antecedentes históricos e as razões históricas e políticas para uni-las ao Império, ou estabelecer pelo menos entre as duas nações uma potência neutra que fosse uma barreira entre uma e outra, se limitava a indicar uma mudança favorável às duas partes, que era ceder Portugal inteiro contra um equivalente nas províncias fronteiriças da França; mudança tanto mais útil quanto pelo meio dela se evitaria a servidão de um caminho militar de ponta à ponta das fronteiras, forçoso de sofrer-se enquanto a França possuísse alguma parte do território lusitano; que sem pretender violentar acerca desta mudança a vontade de Sua Majestade Católica, desejava o Imperador vivamente obter a sua conformidade, e que obtida esta, se procedesse sem mais demora a realizar aquela troca e que se a assegurasse por um tratado; não devendo-se perder de vista que, mais adiante (o que Deus não permita), uma complicação imprevista de acontecimentos poderia obrigar Sua Majestade o Imperador a cimentar a segurança da França, por nosso lado, sobre a posse das mesmas províncias, sem ter à sua mão território algum que voltasse à Espanha em troca delas; que a política de Sua Majestade Imperial se estendia não menos às coisas possíveis no futuro do que às reais e presentes, servindo-lhe de regra as passadas; que a Espanha não tinha sido em todos os tempos amiga da França, e que a história a representava frequentemente ora como vizinha indiferente e desdenhosa, ora como rival, ora como inimiga encarniçada com ódio hereditário; que a revolução francesa tinha cortado os laços de família que durante um século tinham unido mais ou menos fortemente ambas as potências, e que, faltando aqueles laços, ainda que Espanha, por sua posição geográfica e por sua própria conveniência, devia ser amiga, companheira e associada eterna da França, nem por isto devia contar-se que fosse sempre conseguinte a este sistema e não o viria a abandonar como tantas vezes se tinha visto; que aspirando Sua Majestade a tornar duradouras, à prova dos tempos, as bases do Império que tinha fundado, ou para melhor dizer, restabelecido do antigo, não deveria estranhar Sua Majestade Católica a indicação que lhe era feita, pois ao executá-la e desejar pôr mais uma barreira aos seus estados nos confins da Espanha, como outras vezes a tiveram, oferecia a esta um novo Reino, livrava-a de uma fronteira perniciosa e retirava aos seus inimigos um bocado da terra que tinham contra ela, sempre aberto, desde o Minho até ao Guadiana.  
16.º Que mesmo estendidas e afirmadas deste modo contra qualquer evento as fronteiras da França e da Espanha, Sua Majestade não observaria como uma coisa indiferente qualquer alteração ou turbulência que o maquiavelismo inglês continuasse a promover entre nós algum tipo de atentado que diminuísse no mais mínimo pormenor a dignidade e o respeito do seu aliado Carlos IV; que este devia contar com o total das forças do Império contra qualquer aleivosia, fosse onde fosse que emanasse, contra a sua autoridade e seus direitos soberanos; que o Imperador não estava ainda em pleno conhecimento dos acontecimentos lamentáveis que turbaram a paz da sua família, e desejava certificar a verdade acerca deles, para se prestar ou não à aliança da família começada a apalavrar-se entre ambas Majestades; que o Imperador não assentiria definitivamente tal enlace sem se encontrar assegurado de que o Príncipe das Astúrias tenha merecido a indulgência do seu pai e soberano, perseverando inteiramente na sua obediência e seu respeito; que sendo de outro modo, não só se negaria a introduzir-lhe na sua família, como ainda mostraria uma complacência muito grande em que Sua Majestade o separasse do seu direito ao trono, e antes pensasse noutro dos seus filhos para o enlace projectado e para suceder-lhe na coroa, bem consultado este negócio e decidido por comum acordo de Sua Majestade e o Rei Católico, sendo a França grandemente interessada em que o Príncipe herdeiro lhe seja grato e continue sinceramente a aliança dos dois Estados. 
17.º Que na perfeita associação de todo o tipo de interesses que o Imperador queria fundar entre as duas nações, a sua intenção era pedir ao Rei Católico que se levasse finalmente a cabo a celebração dum bom tratado de comércio, no qual tudo fosse igual entre as duas potências em todos os seus estados e domínios de aquém e de além dos mares.  
18.º E por última medida, que na prossecução da grande obra de conquista da paz marítima, e em tornar sólida e durável a de todo o continente, se procedesse a renovar, duma maneira mais expressa e mais completa, a aliança entre as duas potências, sob a dupla qualidade de ofensiva e defensiva, não limitada somente contra os comuns inimigos duma e doutra, como até então o tinha sido, mas perfeita e absoluta contra qualquer que o fosse de uma delas, ainda quando não o fosse da outra; um pacto equivalente ao velho pacto de família que se acordou outras vezes entre as duas coroas, e ainda mais perfeito todavia, como requeriam os tempos, dada a obstinação da Inglaterra e o interesse preponderante de Sua Majestade Católica na extensão imensa dos seus domínios das Índias.  
[...] A lealdade, a sinceridade e a franqueza que dirigem sempre a conduta de Sua Majestade Imperial com os seus amigos e aliados, fizeram-lhe antecipar a Sua Majestade Católica estas explicações confidenciais dos seus actos, pensamentos e desígnios, segundo os quais desejaria o Imperador arranjar e consolidar para sempre, com recíproca utilidade, as relações da França e da Espanha; acrescentando acerca disto que a presente actualidade oferece uma verdadeira estreiteza de circunstâncias impossíveis de superar, enquanto não se tomam duma e doutra parte resoluções prontas e definitivas, tanto mais urgentes quanto mais graves e penosos seriam os resultados de qualquer espécie de transtorno que pudesse ocorrer em Espanha e alterar as suas relações com a França.

[...] O Rei mandou D. Eugenio Izquierdo ler por uma segunda vez aquele papel que tinha trazido, perguntando-lhe depois qual era a sua opinião sobre as verdadeiras intenções do Imperador dos franceses, o que teria ouvido acerca disto nos salões da Corte e as observações e notícias que teria podido recolher dos seus amigos. Izquierdo respondeu a Sua Majestade que, na sua maneira de pensar, pelo que tinha entendido e observado tão profundamente quanto lhe tinha sido possível penetrar entre as sombras de que Napoleão se rodeava, havia duas coisas certas e indubitáveis, uma delas a ânsia de adquirir para o Império as nossas províncias fronteiriças; outra, a de sujeitar-nos como tinha sujeitadas tantas outras Cortes da Europa fazendo-lhes servir os seus desígnios e as suas guerras com o título de amigos e aliados, e carregando às suas costas uma grande parte das suas tropas debaixo de todo o tipo de pretextos; que uma pessoa muito próxima dos segredos, pela sua posição, e espanhol leal deveras como o era D. José Martínez de Hervás, sogro do Marechal Duroc, lhe tinha afirmado que achava impossível que Bonaparte se atrevesse a sondar o trono da Espanha enquanto o ocupasse Sua Majestade reinante; mas que era de temer que o derradeiro prazo à sua ambição e aos seus desejos mal recatados de arruinar as dinastias borbónicas pudesse ser o dia funesto em que Sua Majestade faltasse; que o Imperador tinha uma muito má ideia do Príncipe das Astúrias, por mais que lhe escrevesse a seu favor o senhor Beauharnais, como o fazia frequentemente; que ainda com tudo isto, ninguém poderia fiar-se de que não fizesse ou não tentasse fazer do jovem Príncipe um instrumento para os seus desígnios, se o Rei negasse, tal como devia negar, as desmedidas pretensões que lhe eram mostradas; que uma só coisa, no seu raciocínio, devia resultar para se sair bem daquela crise, que era a estreita união do Príncipe das Astúrias com o seu augusto pai; que uma vez efectuada esta união, sem resistir com outras armas ao Imperador para além das que este dava ao Rei, a sua razão e a sua justiça à vista e à presença da Europa poderiam muito bem esquivar as pretensões feitas, ou pelo menos as mais graves e as de todo incompatíveis com a honra da Coroa e com a integridade dos seus domínios; que devia existir um grande cuidado para agasalhar as tropas imperiais e para evitar encontros de paisanos e franceses, através dos quais o Imperador pudesse ter pretextos para fundar uma ruptura; que se devia mostrar uma muito grande confiança na sua amizade para tê-la por perto; mas que em qualquer caso de se acercarem tropas às Reais residências ou de tentarem espalhar-se pelo Reino em todas as direcções, Sua Majestade devia salvar a sua soberana dignidade e independência numa posição segura, e não fiar-se de modo algum nem em palavras nem em protestos nem em visitas de amizade, porque, apesar de tudo, tratava-se de um homem poderoso e mais que nunca inconstante e caprichoso nos seus projectos gigantescos. Izquierdo unia-se completamente à opinião de Hervás, sobretudo no que diz respeito ao grande risco que poderia trazer a desunião do Príncipe das Astúrias, se os seus amigos encobertos e os agentes da França conseguissem-no perverter, pois no seu entender o Imperador fazia o seu cunhado continuar constantemente o jogo desta grande intriga e preparar um novo rompimento, para vir depois dar a lei em qualidade de mediador. Em relação aos termos e rumores espalhados em Paris entre as altas classes mais próximas ao Governo e à Corte, assegurava Izquierdo que prevalecia a ideia, com muito poucas excepções, de que o Imperador se interessava bastante pelo Príncipe das Astúrias, e que se fizesse a viagem projectada à nossa Corte, seria provavelmente a seu favor. Izquierdo suspeita que estes termos eram espalhados de propósito nas tertúlias para fomentar as esperanças dos que conspiravam na Espanha em qualidade de fernandistas, que sobre alguns dos quais se dizia que mantinham correspondência contínua com não poucas personalidades da segunda ou terceira ordem do Império. Segundo estas mesmas fontes, acrescentava-se que o Príncipe de Masserano, nosso embaixador na França, recolhia as notícias que comunicava depois a todos quantos iam à sua casa, servindo de instrumento, sem o pensar, para tornar mais seguros os enganos que transtornavam as cabeças em Espanha. 
Tais foram em resumo as informações e notícias que deu Izquierdo. E eis aqui completamente a manifesto a inevitável alternativa em que se viu encerrado Carlos IV: ou prestar-se aos desejos de Bonaparte, desejos que naquele homem eram equivalentes a ordens; ou correr o perigo de uma guerra, tanto mais funesta quanto podia misturar-se com uma guerra interna em que as tropas imperiais tomassem parte e dessem a mão aos que com o nome de Fernando dividiam os ânimos e julgavam e divulgavam ocultamente que vinham a seu favor aquelas tropas. [...] 
Nunca vi tão determinado Carlos IV aos meus conselhos e à partida desejada, como lhe achei depois daquela longa e grave cena. Em relação à resposta, deu-a o próprio Rei a Izquierdo segundo a sua própria inspiração, nobre, firme e bem sentida, se bem que cheia de respeito e prudência, conforme requeriam as circunstâncias. Devia dizer Izquierdo que o Rei das Espanhas, fiel ao tratado feito sem revogá-lo em coisa alguma, e fiel à sua amizade com o Imperador dos franceses, encontrava-se pronto para voltar a apertar aqueles laços de amizade enquanto fosse compatível com o bem-estar dos seus vassalos e com a honra da sua coroa, sem indicar mais tributo nisto que a que o próprio Imperador, em caso igual e na grandeza do seu ânimo, poderia ter por necessária e rigorosa em relação aos seus Estados e aos seus súbditos franceses;  
Que em matéria de confiança de Sua Majestade Católica em relação às saudáveis e intenções de Sua Majestade o Imperador dos franceses, não podiam oferecer-se maiores provas das que o mesmo Imperador tinha feito por si mesmo, introduzindo no país pelo menos o triplo do número de tropas que tinha sido acordado, e vendo o agasalho e o afecto com que tinham sido recebidas, por mais que o peso delas, superior às nossas forças e recursos, aumentasse os apuros das Reais finanças e os gravames dos povos; 
Que Sua Majestade Católica tinha igualmente demonstrando confiança, ainda que sofrendo, quando as tropas imperiais surpreenderam duas das nossas praças, sem que qualquer tipo de explicações se tivessem precedido, o que normalmente não é visto fazer-se, nem sequer no princípio de uma guerra que não foi declarada; por mais irregular que parecesse esta conduta, tinha bastado ao Rei, para não julgá-la como hostil, a perfeita segurança que devia inspirar-lhe a estreita amizade e aliança que reinava entre ambas as potências, e o artigo XI do recente tratado de Fontainebleau, no qual o Imperador garantia a Sua Majestade Católica a posse dos seus Estados do continente da Europa a sul dos Pirenéus;  
Que Sua Majestade Católica observava aquele tratado como a obrigação mais sagrada de uma e da outra parte, sem que tivesse acontecido depois sucesso algum ou circunstâncias que pudessem quebrar, alterar ou debilitar a fé e a união recíproca pactuada;  
Que se depois da campanha marítima de 1805 a Espanha não se ocupou com a França em novas empresas e expedições contra a Inglaterra, Sua Majestade o Imperador não poderia deixar de ter presente, em primeiro lugar, que ambos os Gabinetes puseram-se de acordo, naquela época, em que enquanto se aguardava melhor tempo, cada qual das duas potências devia empregar as suas forças como melhor o entendesse cada uma, para hostilizar a Inglaterra, atacando de preferência os seus navios mercantes, os seus comboios, os seus avisos e as suas embarcações destacadas para reforços e mudas das guarnições dos seus postos; em segundo lugar, que o Governo de Sua Majestade viu-se então duplamente empenhado, quer na atenção que requeria a defesa tão gloriosa que tinham feito as nossas Américas com tão grandes perdas do inimigo, quer na necessidade de defender as nossas costas e as fronteiras de Portugal contra qualquer agressão que nos nossos Estados do continente tivesse podido tentar a Inglaterra, enquanto que o Imperador se encontrava empenhado com todas as suas forças na campanha da Polónia; 
Que acerca do aumento de forças terrestres feito por Sua Majestade Católica nos seus domínios para manter respeito sobre os seus inimigos, mal poderia queixar-se o Imperador, vista a largueza com que Sua Majestade Católica, sem estar obrigada por tratado algum a assistir a França nas suas guerras do continente, lhe auxiliou não obstante com a brilhante divisão espanhola que lhe foi enviada para reforçar o grande exército, e cujo regresso prometido, depois de feitas as pazes, todavia ainda se esperava; 
Que ainda não era tempo de se queixar de que a esquadra espanhola que tinha zarpado de Cartagena não tivesse ainda cumprido o seu destino, sendo bem conhecidas, como o eram, as dificuldades que ofereciam os ventos no Mediterrâneo, e a contínua e extrema vigilância dos ingleses desde Cádis até Malta; 
Que em matéria de relações mercantis, a França estava em condições de ser tratada como a potência mais amiga, e que o Governo de Sua Majestade achava-se em estado de responder a qualquer queixa que se lhe desse detalhada, salvo o caso de alegar por queixa que se houvessem resistido e que se resistissem a pretensões desmedidas contra as leis do país que costumavam fazer os comerciantes e os cônsules, interpretando a seu bel-prazer os acordos e as regras admitidas entre as duas nações. 
Que em relação ao contrabando, era notório que estavam tomadas as medidas mais completas e eficazes que eram praticáveis nos nossos vastos litorais para fechar-lhe toda a entrada, e que o bom efeito produzido pela observação delas era também notório; que estas medidas, preventivas na maior parte, resultavam em melhor efeito do que os rigores levados ao extremo, sem arruinar as famílias através deles; 
Que a propósito dos sucessos desagradáveis ocorridos na Corte poucos meses antes, qualquer que pudesse ter sido a influência estrangeira e inimiga que os tivesse ocasionado, Sua Majestade Católica não julgava que, estreitadas as relações da Espanha e da França tanto quanto o estavam, e em tão perfeito acordo os seus Governos, poderia encontrar a raiz de algum partido que os ingleses fomentassem; que Sua Majestade podia contar com a perfeita emenda, obediência e afecto do seu filho primogénito; que em prova disto, e a fim também de que o Imperador formasse uma ideia completa e exacta daquelas ocorrências, acerca das quais a malícia tinha espalhado as mais estranhas falsidades, Sua Majestade fazia levar um fiel resumo do processo que se tinha formado, e ao qual estava posto completamente um fim; que nele veria o Imperador o respeito que se tinha tido, de acordo com os seus desejos, em tudo quanto podia ferir a honra do seu enviado, e onde veria, ademais, as mostras mais sinceras do arrependimento do seu filho; que em tal estado das coisas, de nada estava tão distante Sua Majestade Católica como de ressuscitar estes assuntos, ou de tocar nos direitos de seu filho, reabilitado em todos eles pelo perdão que lhe tinha dado, e regressado plenamente ao seu carinho e à sua graça. 
Sobre tudo o demais devia dizer [Izquierdoque Sua Majestade Católica encontrava-se convencida de que o Imperador devia fiar-se completamente no seu carácter pessoal e em tantas provas como lhe tinha dadas da sua amizade sincera; que lhe sobrava confiança na lealdade por excelência com que distinguia os seus povos para contar com eles, sem temor das divisões que os seus inimigos exteriores tentassem suscitar nos seus domínios, respondendo acerca disto pela nação inteira, com igual certeza que ela própria responderia o mesmo; que em relação ao futuro, este era um filho do presente, e não podia duvidar-se que estando sempre conciliados em justas proporções os interesses mútuos das duas potências, deviam-se afiançar mais e mais os laços que as tinham unido durante um século inteiro; que se o Imperador achava ainda mais meios para estreitá-los e afirmá-los, sob os mesmos pressupostos de interesses mútuos e de igual consideração que ainda sem as relações de família tinham guardado tão ditosamente a Espanha com a França e a França com a Espanha desde a paz de Basileia, Sua Majestade adoptaria de boa vontade qualquer proposição que se lhe fizesse tendo em vista um fim tão importante; mas que não achando pela sua parte coisa alguma a acrescentar aos tratados feitos e vigentes, limitava-se a renovar a sua firme vontade de viver em paz segura com a França, de concorrer a cimentar aquela paz e fazê-la favorável de igual modo a ambas as duas nações, e de lutar constantemente em proporção devida com os seus meios e recursos contra os comuns inimigos duma e doutra; finalmente, que o Imperador, dado o caso de tentar pedir mais provas de amizade a Sua Majestade Católica e acrescentar tratados novos aos feitos, não deveria estranhar que o Rei se situasse de tal modo que fosse visto desfrutar de liberdade perfeita, não sendo coisa honrosa para os dois monarcas, se se dissesse depois, como poderia dizer-se, que o Rei de Espanha tinha tratado sob o jugo ou a obsessão dos exércitos franceses. 
Esta última cláusula foi posta com dois fins, o primeiro para deixar Bonaparte ver que o Rei não estava alheio de sustentar a sua dignidade, se aquele pretendesse abusar da sua prepotência; o segundo para que a sua marcha para o interior do Reino não pudesse ser tida nem por fuga nem por rompimento, e que ficasse sempre aberto algum caminho para evitar a guerra. Era fundada a esperança de que, dada esta resposta, Napoleão cedesse nas suas intenções e não se empenhasse numa luta em que, ainda que triunfasse (o que não era seguro), teria perdido mais que ninguém, unicamente pela desonra e desconsideração que teria causado a sua conduta entre as demais nações e entre os seus próprios aliados, onde nenhum Governo se teria depois fiado na sua palavra ou na sua assinatura. Um só manifesto que o Rei em liberdade tivesse feito às demais potências, com inclusão do último tratado, teria produzido muito mais rápido e com mais força aquele terrível efeito que depois produziu o nobre grito da nação inteira, porque de nenhum modo teria podido desmentir ou caluniar Carlos IV, com que tinha tratado, e a quem tinha garantido todos os seus domínios na Europa [...].
[Fonte: Cuenta dada de su vida política por Don Manuel Godoy, Príncipe de la Paz - Tomo V, Madrid, Imprenta de I. Sancha, 1838, pp. 399-440].


No dia 10 de Março, Izquierdo parte novamente de Aranjuez, para ir dar a conhecer a Napoleão a resposta verbal acima recordada por Godoy, juntamente com um resumo do processo de El Escorial (que tinha sido concluído a 25 de Janeiro), e ainda uma carta escrita pelo punho do próprio Carlos IV. Continuando decidido a partir para o sul de Espanha, Carlos IV conversa então com o Príncipe das Astúrias D. Fernando sobre as intenções de Bonaparte e sobre a viagem de Izquierdo, conseguindo aparentemente convencê-lo a acompanhar a viagem da família real.
Contudo, nos dias seguintes, reacende-se a discórdia dentro do Palácio Real. Novos rumores começam a reforçar o partido dos que se opunham à viagem da família real. Enquanto este desacordo ia aumentando e distraindo a Corte, começam a chegar a Aranjuez, no dia 13, hora após hora, diversas notícias de várias autoridades militares espanholas sobre os preparativos e movimentações que os exércitos franceses de Moncey e Dupont começavam a fazer em direcção a Madrid, abastecidos como estavam com provisões para vários dias. Neste cenário, ainda segundo Godoy, 

Era preciso resolver-se ou a partir sem mais demora, ou a resignar-se ignobilmente e consentir que um Rei das Espanhas se entregasse, de corpo e alma, à discrição dum estrangeiro que, sem pedir sequer a vénia só por aparência, ousava violar o último lugar sagrado, o das suas Reais residências. A escolha não admitia dúvidas: mas poderia contar-se com a tranquilidade, a consideração e o respeito da enganada multidão? E o Príncipe das Astúrias, de cujo nome se fazia uso por tantas almas desleais, com tão grandes motivos para se temer que lhe tivessem seduzido novamente, ou que lhe viessem a seduzir e ainda o levantassem, prestar-se-ia à viagem docilmente? Mover-se-ia um tumulto à mesma hora da partida, ou ao vê-la preparar-se? Desfrutaria Napoleão de ver de novo divididos pai e filho, empenhar-se-ia um combate de ambas as partes, e começaria um incêndio que justificasse a sua agressão com o pretexto de apagá-la? 
[Fonte: Cuenta dada de su vida política por Don Manuel Godoy, Príncipe de la Paz - Tomo V, Madrid, Imprenta de I. Sancha, 1838, pp. 474-476].