Estampa inserida na 3.ª edição d'O Hissope
Em 1768, o bispo de Elvas, D. Lourenço de Lencastre, e o deão do cabido, José Carlos de Lara, tiveram um arrufo que pôs fim ao costume que o último tinha em obsequiar o hissope (ou aspersório, instrumento utilizado para aspergir água benta) ao bispo, sempre que este se dirigia à sé. Ofendido, D. Lourenço de Castro conseguiu que o cabido emitisse um acórdão para obrigar o deão a continuar a executar o antigo costume. O deão protestou ao cabido, ao bispo e até ao metropolita de Évora, vendo sempre baldados os seus esforços e acabando mesmo por morrer, poucos meses depois, sem ver alterada a sentença. Sucedeu-lhe no cargo um seu sobrinho, ao qual também se exigiu o mesmo, sob pena de repreensão e multa. Sem se deixar intimidar, o novo deão apelou desta vez à Coroa. Prevendo um desfecho malogrado, o bispo e o cabido acabaram por riscar os acórdãos do respectivo livro e negar tudo o que se tinha passado.
Este caso, que durou à volta de dois anos, foi acompanhado de perto pelos habitantes de Elvas, entre os quais se encontrava António Diniz da Cruz e Silva, exercendo funções de magistratura junto do exército da cidade. Tendo sido um dos fundadores da Nova Arcádia, Diniz aproveitou os seus dotes poéticos para caricaturizar esta "bagatela", compondo assim uma obra intitulada O Hissope, que começava com os seguintes versos:
Eu canto o Bispo e a espantosa guerra
Que o hissope excitou na Igreja d'Elvas.
Fonte: Arpose Folha de rosto da 1.ª edição |
O Hissope tem a particularidade de ter sido o primeiro poema heróico-cómico criado em Portugal, género hoje desaparecido que se caracterizava por celebrar (e de igual forma satirizar) em tom épico um acontecimento sem qualquer importância, como era o presente caso. A crítica incisiva que Diniz fazia às vaidades eclesiásticas (retratando um clero ignorante, mundano e soberbo) não agradou à censura da Intendência Geral da Polícia – note-se que a Inquisição, apesar de continuar a existir, tinha perdido muita da sua força desde o tempo do Marquês de Pombal – , que proibiu a obra de ser publicada em Portugal. Contudo, não se conseguiu impedir que proliferassem e circulassem diversas cópias manuscritas. Francisco Augusto Martins de Carvalho, na obra abaixo mencionada, catalogou 54 exemplares manuscritos, com algumas variantes entre si, que se encontravam recolhidos em bibliotecas nacionais (embora possivelmente existam ou tenham existido muitos mais). As variantes aludidas entre estes exemplares derivam provavelmente do facto de António Diniz da Cruz e Silva ter ido aumentando, corrigindo e retocando O Hissope quase até 1799, ano em que morreu. Somente três anos depois é que finalmente era publicada a primeira versão impressa. Talvez para desviar a atenção da censura da Intendência da Polícia, que controlava de forma cerrada tudo o que vinha da França desde os tempos da Revolução, esta primeira edição saiu à estampa com a menção de ter sido publicada em Londres, como se pode ver à esquerda, apesar de na verdade ter sido impressa em Paris. Contudo, de pouco serviu esta dissimulação, pois logo em 1803, o Intendente Geral da Polícia, Pina Manique, mandava afixar em edital um aviso proibindo a venda ou divulgação em Portugal de O Hissope.
Foi assim preciso esperar até ao ano de 1808 para esta obra sair da ignomínia da censura portuguesa, quando o Governo de Junot deu permissão para se publicá-la em Portugal. É possível que uma das razões para essa autorização fosse a semelhança entre esta obra e Le Lutrin de Nicolas Boileau, obra de idêntico teor que já circulava na França há mais de cem anos, e que o próprio autor português tomara confessadamente como modelo de inspiração (embora alguns autores, entre os quais Almeida Garrett, garantam que Diniz ultrapassou a obra de Boileau). Também se deve notar que a iniciativa da publicação de um livro que desmascarava o absurdo e a hipocrisia de certas convenções religiosas era conforme àquela afirmação de Junot, na sua proclamação de 1 de Fevereiro, quando dizia aos portugueses que "a religião de vossos pais [...] será protegida e socorrida [...], mas livre das superstições que a desonram". Num país onde o clero tinha um poder enorme, esta obra caía como uma bomba, e os franceses deviam ter plena consciência disso. Por outro lado, O Hissope continha passagens que se encaixavam perfeitamente naqueles tempos, como a seguinte:
Ao pé de cada esquina, hoje, sem pejo,
Se tratam de Monsieur os portugueses.
Isto, senhor, é moda, e como é moda,
A quisemos seguir; e sobretudo,
Mostrar ao mundo que francês sabemos.
Na verdade, esta segunda edição é hoje raríssima, pois logo que os franceses saíram do país (em Setembro de 1808), mandaram-se recolher os seus exemplares, e novamente foi proibida a venda e divulgação desta obra. Só depois da implantação do regime liberal é que se permitiu que O Hissope fosse novamente publicado em Portugal, embora entretanto se tivessem publicado diversas edições em Paris.
Apesar desta censura de quase meio século, O Hissope, a "verdadeira coroa poética" de António Diniz da Cruz e Silva, no entender de Almeida Garrett, não perdeu a sua força e vivacidade, pois só contando até ao ano de 1921, foi editado pelo menos vinte e quatro vezes, três das quais traduzido para o francês. Uma média invejável, tendo em conta o perfil da obra. Note-se que, ainda até aquele ano, o poema também já tinha sido alvo de outras traduções (embora parciais) em inglês e alemão. De 1921 para cá foi publicado pelo menos mais cinco vezes em Portugal, a última das quais através de uma nova edição crítica de Ana María García Martín e Pedro Serra (O Hissope. Poema Herói-Cómico, Coimbra, Angelus Novus Editora, 2006).
Os interessados poderão consultar abaixo o texto da terceira edição:
O Hyssope, Poéma Heroi-Comico (Nova edição correcta, com variantes, Prefacio e Notas), Paris, Officina de A. Bobée, 1817
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Outras edições disponíveis on-line:
- Le Gouppilon (O Hyssope) - Poème Héroï-Comique d'Antonio Diniz traduit du portugais par J.-Fr. Broissonade. Deuxième édition revue et précédée d'une noticie sur l'auteur par Mr. Ferdinand Denis, Paris, Imprimerie Jouaust, 1867.
- O Hyssope (Edição critica, disposta e annotada por José Ramos Coelho), Lisboa, Edição da Empreza do Archivo Pittoresco - Typographia Castro Irmão, 1879.
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Bibliografia consultada:
- Almeida Garrett (org.), Parnaso Lusitano ou Poesias Selectas dos auctores portuguezes antigos e modernos... - Tomo I, Paris, Casa de J. P. Aillaud, 1826, pp. xl e seguintes.
- Almeida Garrett (org.), Parnaso Lusitano ou Poesias Selectas dos auctores portuguezes antigos e modernos... - Tomo II, Paris, Casa de J. P. Aillaud, 1827, pp. 168 e seguintes.
- A. A. P. de Vasconcellos, "Litteratura Nacional - Poémas Heróe-Comicos", in Chronica Litteraria da Nova Academia Dramatica, n.º 5, Coimbra, Imprensa da Universidade, 28 de Março de 1840, pp. 69-73.
- António Cardoso Borges de Figueiredo, Bosquejo Historico da Literatura Classica, Grega, Latina e Portugueza, para uso das escholas [2.ª ed.], Coimbra, Imprensa da Universidade, 1846, p. 193.
- Francisco Freire de Carvalho, Lições Elementares de Poética Nacional [2.ª ed.], Lisboa, Typographia Rollandiana, 1851, pp. 114-116.
- Francisco Freire de Carvalho, Lições Elementares de Poética Nacional [2.ª ed.], Lisboa, Typographia Rollandiana, 1851, pp. 114-116.
- L. A. Rebello da Silva, "Poetas da Arcadia Portugueza: Antonio Diniz da Cruz e Silva. Na Arcadia - Elpino Nonacriense. 1731-1779", in O Panorama, Volume XIII (Quinto da Terceira Série), n.º 37, Lisboa, Typographia de A. J. F. Lopes, 1856, pp. 290-295.
- Innocencio Francisco da Silva, Diccionario Bibliographico Portuguez - Tomo Primeiro, Lisboa, Imprensa Nacional, 1858, pp. 123-127.
- Innocencio Francisco da Silva, Diccionario Bibliographico Portuguez - Tomo Oitavo, Lisboa, Imprensa Nacional, 1867, pp. 128-129.
- Francisco Augusto Martins de Carvalho, As edições do "Hyssope" - Apontamentos bibliographicos (Tiragem limitada, só para offertas), Coimbra, Edição de autor - Casa Tipográfica, 1921.
- Alberto Pimentel, Poemas Herói-Cómicos Portugueses (Verbêtes e apostilas), Porto, Renascença Portuguesa, 1922, pp. 67-76.
- B.N.N.F., "O Hyssope. Como surgiu o poema heróico-cómico", in Jornal Linhas de Elvas, n.º 2.274 – 18 – XI, 1994.
- Ana María García Martín, "Claves del Género Heroico-Cómico en O Hissope", in Professor Basilio Losada: ensinar a pensar con liberdade e risco, Barcelona, Publicacions de la Universitat de Barcelona, 2000, pp. 402-408 [texto parcialmente truncado].