quinta-feira, 24 de março de 2011

Carta de Izquierdo a Godoy (24 de Março de 1808)




Atrás tínhamos indicado que depois duma rápida estadia em Aranjuez, Izquierdo regressou à França no dia 10 de Março. Já em Paris (onde teria chegado por volta do dia 20 do mesmo mês), depois das suas conversações com Talleyrand e Duroc, Izquierdo enviou a seguinte carta a Godoy, que contudo já não chegaria a recebê-la, dado que tinha sido preso cinco dias antes (informação que então ainda não tinha chegado a Paris). 
Esta carta (tal como provavelmente a carta do Conde da Ega atrás publicada) será recebida por Pedro Cevallos, Primeiro-Ministro e Secretário de Estado de Fernando VII (depois de tê-lo sido de Carlos IV).



A situação das coisas não permite referir com individualidade as conversações que desde o meu regresso de Madrid tive, por disposição do Imperador, tanto com o Grão-Marechal do Palácio Imperial, o General Duroc, como com o Vice-Grão Eleitor do Império, o Príncipe de Bénévent. Assim, limitar-me-ei a explicar os meios que me foram comunicados nestes colóquios para acordar e até para terminar amigavelmente os assuntos que existem hoje entre Espanha e França, meios esses que me foram transmitidos com o fim de que o meu Governo tome a mais pronta resolução acerca deles.  

Que existem actualmente vários corpos de tropas francesas na Espanha, é um facto constante. As consequências estão no futuro. Um acordo feito entre o Governo francês e o espanhol, com recíproca satisfação, pode deter os eventos, e elevar-se a um solene e definitivo tratado sobre as bases seguintes:  

Primeira base: Nas colónias espanholas e francesas comerciarão livremente o francês nas espanholas como se fosse espanhol, e reciprocamente o espanhol como se fosse francês nas francesas, pagando uns e outros os direitos que se paguem nos respectivos países pelos naturais. Esta prerrogativa será exclusiva, e nenhuma potência senão a francesa poderá obtê-la na Espanha, como na França nenhuma potência senão a espanhola.  

Segunda base: Portugal está hoje possuído pela França. A comunicação de França com Portugal exige uma rota militar, e também uma passagem contínua por Espanha para guarnecer aquele país e defendê-lo contra a Inglaterra. Há de causar muitos gastos e obstáculos, e talvez produzir frequentes motivos de desavenças. Poderia amigavelmente combinar-se este objecto, ficando todo o Portugal para a Espanha, e recebendo um equivalente a França nas províncias de Espanha contíguas a este Império.  

Terceira base: Acordar de uma vez a sucessão ao trono da Espanha.  

Quarta base: Fazer um tratado ofensivo e defensivo de aliança, estipulando o número de forças com que ambas as potências se hão de ajudar reciprocamente.  
Tais são as bases […] com que deve cimentar-se e elevar-se a tratado o acordo, como se indica, capaz de terminar felizmente a actual crise política em que se encontram a Espanha e a França. Em tão altas matérias eu devo limitar-me a executar fielmente o que me for dito. Quando se trata da existência do Estado, da sua honra e decoro, e do [decoro] do seu Governo, as decisões devem brotar unicamente do Soberano e do seu Conselho. Sem embargo, o meu ardente amor à pátria coloca-me na obrigação de dizer que nas minhas conversações fiz presente ao Príncipe de Bénévent o que segue:  
1.º Que abrir as nossas Américas ao comércio francês, é reparti-las entre a Espanha e o Império francês; que abri-las unicamente para os franceses, é (dado que não fique de uma vez destruída a arrogância inglesa) afastar cada dia mais a paz, e perder, até que se firme [o aludido tratado], as nossas comunicações e as dos franceses com aquelas regiões. Disse que ainda que se admita o comércio francês, não deve permitir-se que se avizinhem vassalos da França nas nossas colónias com desprezo das nossas leis fundamentais.  
2.º Em relação a Portugal, fiz menção às nossas estipulações de 27 de Outubro último; fiz ver o sacrifício do Rei de Etrúria, o pouco que vale Portugal separado das suas colónias, a sua nula utilidade para a Espanha, e fiz uma fiel pintura do horror que causaria aos povos próximos dos Pirenéus a perda das suas leis, liberdades, forais e língua, e sobretudo o passar a domínio estrangeiro. Acrescentei que não poderei eu firmar a entrega de Navarra, para não ser o objecto de execração dos meus compatriotas, como o seria se constasse que um navarro tinha firmado o tratado em que a entrega de Navarra à França estava estipulada. Finalmente, insinuei que se não houvesse outro remédio, poderia erigir-se um novo Reino ou Vice-Reino da Ibéria, estipulando que este Reino ou Vice-Reino não recebesse outras leis nem outras regras de administração que as actuais, e que os seus naturais conservassem os seus actuais forais e isenções. Este Reino ou Vice-Reino poderia dar-se ao Rei de Etrúria ou a outro Infante de Castela.  
3.º Tratando-se de fixar a sucessão de Espanha, manifestei o que o Rei nosso senhor me mandou que dissesse da sua parte, fazendo-o de modo que creio que ficam desvanecidas quaisquer calúnias inventadas pelos malévolos nesse país, e que chegaram a contaminar a opinião pública neste.  
4.º No que diz respeito à aliança ofensiva e defensiva, o meu zelo patriótico levou-me a perguntar ao Príncipe de Bénévent se se pensava em fazer da Espanha um equivalente à Confederação do Reno, e em obrigá-la a dar um contingente de tropas, cobrindo este tributo com o decoroso nome de tratado ofensivo e defensivo. Manifestei que nós, estando já em paz com o Império francês, não necessitamos de socorros da França para defender os nossos lares; que Canárias, Ferrol e Buenos Aires o testemunham; que África é nula, etc.  
Nas nossas conversações ficou já como negócio assente o do casamento. Terá efeito, mas será um acordo particular, do qual não se tratará no acordo sobre o qual se enviam as bases.  
Enquanto ao título de Imperador, que o Rei nosso senhor deve tomar, não há nem haverá dificuldade alguma. [O Príncipe de Bénévent] encarregou-me que não se deveria perder um momento em responder, a fim de precaver as fatais consequências a que pode dar origem a demora de um dia para pôr-se de acordo. 
Disse-me que se deve evitar todo o acto hostil e todas as movimentações que pudessem afastar o saudável acordo que ainda se pode fazer.  
Ao ser questionado se o Rei nosso senhor partiria para a Andaluzia, respondi a verdade: que nada sabia. Ao ser também questionado se eu julgava que ele partiria, respondi que não, dada a segurança em que se achavam (concernentes ao bom proceder do Imperador) tanto os Reis como Vossa Alteza.  
Pedi (uma vez que se medita um tratado), que enquanto se espera a resposta, se suspendesse a marcha dos exércitos franceses em direcção ao interior da Espanha. Pedi também que as tropas saiam de Castela. Nada consegui; mas presumo que se as bases vierem aprovadas, poderão as tropas francesas receber ordens para se afastarem da residência de Suas Majestades.  
Daí se escreveu que se aproximam tropas por Talavera para Madrid, e que Vossa Alteza me enviou um correio extraordinário. A tudo satisfiz, expondo com verdade o que me constava.  
Segundo se presume aqui, Vossa Alteza tinha saído de Madrid acompanhado os Reis até Sevilha; eu nada sei; e assim disse ao correio que vá até onde Vossa Alteza estiver. 
As tropas francesas deixarão passar o correio, segundo me assegurou o Grão-Marechal do Palácio Imperial.  
Paris, 24 de Março de 1808.  

Sereníssimo Senhor, de Vossa Alteza,  

Eugenio Izquierdo 




[Fonte: Cuenta dada de su vida política por Don Manuel Godoy, Príncipe de la Paz - Tomo V, Madrid, Imprenta de I. Sancha, 1838, pp. 492-504].