Como atrás já inserimos uma notícia sobre a partida duma deputação portuguesa para a França, bem como uma carta do Conde da Ega a Godoy e uma outra do tesoureiro da Inquisição onde esse mesmo assunto era brevemente mencionado, julgamos oportuno aprofundar agora um pouco a origem desta deputação.
Uma semana antes de Junot entrar em Portugal, mais precisamente a 12 de Novembro de 1807, Napoleão escreveu-lhe uma carta, onde entre outras medidas lhe ordenava que "fareis saber ao Príncipe regente que ele deve passar à França; esforçar-vos-eis que ele o consinta de bom grado. Dar-lhe-eis oficiais cuja missão aparente será escoltá-lo, mas que, na verdade, será para o guardar. [...] Fareis o mesmo a todos os que tenham direito ao trono e, sem demora e sem vexar ninguém, os fareis partir para Bayonne. [...] Convocareis os homens mais proeminentes e que vos possam inquietar, dando-lhes ordem para passarem a Paris. Todos devem esperar em Bayonne por novas ordens. [...] [Correspondance de Napoléon Ier - Tome XVI, Paris, Imprimerie Impériale, 1864, pp. 184-187 (n.º 13351)].
Já a 16 de Dezembro, duas semanas depois de ter entrado em Lisboa, Junot escrevia a Napoleão que "o que aqui chamam Conselho de Regência pediu-me autorização para enviar uma deputação a Vossa Majestade. Vou conceder-lha, e forma-la-ei com indivíduos de que desejo desfazer-me. Quando eles estiverem para partir, darei a Vossa Majestade informações a seu respeito" [Fonte: Jean-Andoche Junot, Diário da I Invasão Francesa, Lisboa, Livros Horizonte, 2008, p. 116].
Em Milão, logo após tomar conhecimento da entrada das tropas francesas em Lisboa e da fuga da família real para o Brasil, Napoleão escrevia a Junot no dia 20 de Dezembro, mandando-lhe "remover do país os príncipes da Casa [de Bragança], os generais portugueses de terra ou de mar, e os ministros ou pessoas que tenham suficiente consideração para poderem servir de pontos de coesão [contra os franceses]" [Fonte: Correspondance de Napoléon Ier – Tome XVI, Paris, Imprimerie Impériale, 1864, pp. 242 - 244 (n.º 13406)], voltando a repetir as mesmas ordens três dias depois: "que todos os príncipes, ministros e outros homens que se possam reunir [contra os franceses] sejam enviados para a França" [Fonte: Correspondance de Napoléon Ier – Tome XVI, Paris, Imprimerie Impériale, 1864, pp. 254 - 256 (n.º 13416)].
Em Lisboa, a 9 de Janeiro de 1808, ao receber estas ordens, Junot respondeu que "não estava em Lisboa nenhum Príncipe da família real além do Duque do Cadaval, que era já de outro ramo; o irmão dele, que ficou mas não goza de qualquer consideração, será apesar disso enviado para Bordéus, bem como o Marquês de Abrantes e uns cinquenta homens mais salientes das primeiras classes, conforme Vossa Majestade ordena" [Fonte: Jean-Andoche Junot, Diário da I Invasão Francesa, Lisboa, Livros Horizonte, 2008, pp. 126-128].
Entre as várias cartas que Junot teria então escrito a esses cinquenta homens mais salientes das primeiras classes, convidando-os a fazerem parte desta deputação, encontra-se a seguinte, remetida no dia 23 de Fevereiro a D. Francisco de Lemos, Bispo de Coimbra e Reitor da Universidade:
Senhor:
A Regência mostrou-me o desejo de enviar uma Deputação a Sua Majestade o Imperador e Rei meu Amo, e esta resolução foi-me expressa por todas as classes do Reino. Sua Majestade consente e aprova a lista que lhe remeti, na qual fazeis parte. Por consequência, Senhor, procedereis bem em tomar as medidas necessárias de maneira a vos encontrardes em Baiona entre os dias um e dez de Abril próximo, sendo que nessa cidade recebereis do Ministro das Relações Exteriores as instruções que regularão a vossa marcha posterior.
Recebei, Senhor, a segurança da minha perfeita consideração.
Junot
[Tradução nossa dum excerto duma Resposta que, vindo da França, fez o Bispo de Coimbra D. Francisco de Lemos a S. Alteza Real, o Príncipe Regente, Nosso Senhor, assente num caderno manuscrito e publicada parcialmente no artigo de António Manuel Hespanha, “Sob o signo de Napoleão. A Súplica constitucional de 1808”, in Almanack Braziliense, Maio de 2008, pp. 80-101, p. 81].
Finalmente, a 8 de Março, Junot informava Napoleão que "terei a honra de enviar a Vossa Majestade pelo primeiro correio a lista das pessoas mais salientes do país que enviarei à França. Partirão por estes dias, e deverão estar em Bayonne a 10 de Abril, o mais tardar. Estão prevenidos de que receberão nessa cidade novas instruções da parte do Ministro das Relações Exteriores. Dei ao seu envio a forma de uma deputação, sem que nenhum deles fosse de má vontade, e enviá-los à força seria, de certeza, causa de algum acontecimento que eu julguei dever evitar, pois satisfazia ao mesmo tempo as intenções de Vossa Majestade" [Fonte: Jean-Andoche Junot, Diário da I Invasão Francesa, Lisboa, Livros Horizonte, 2008, pp. 149-150].
Parece que o Bispo Inquisidor Geral do Reino foi um dos primeiros a partir para a França (tendo deixado Lisboa no dia 10 de Março), enquanto outros o seguiriam nos dias seguintes.
Num momento mais oportuno indicaremos os resultados das suas conferências com Napoleão e seus ministros.
Concluímos por agora com Acúrsio das Neves, que assentou que estava "premeditado ainda antes da invasão o [projecto] de tirar de Portugal todos os parentes da Casa Real e as pessoas de maior consideração, e conduzi-las ao interior da França, para ficarem servindo de reféns ao usurpador. A ideia de uma deputação, que é muito do seu gosto e andava na forja havia muitos tempos, serviu agora para facilitar a primeira remessa.
Foram nomeados para irem cumprimentar o Imperador dos franceses da parte da nação portuguesa (e a nação não o soube senão quando os viu partir) da ordem do clero o Bispo de Coimbra, o Inquisidor Geral e o Prior-mor da Ordem de Avis; da nobreza o Marquês de Penalva, o Marquês de Marialva (este já se achava em França), o Marquês de Valença, os Marqueses de Abrantes pai e filho, D. Nuno Álvares Pereira de Mello (irmão do Duque de Cadaval ausente no Brasil), o Conde do Sabugal, o Visconde de Barbacena e D. Lourenço de Lima, o mesmo que tinha sido embaixador em França; do senado da Câmara os desembargadores Joaquim Alberto Jorge e António Tomás da Silva Leitão. O parentesco com a Casa Real foi o que sacrificou o Marquês de Valença e D. Nuno; os Marqueses de Abrantes também não podiam ficar excluídos, por terem as honras de parentes. [...]
Os predestinados foram instruídos das suas nomeações por avisos da parte de Junot, anunciando-se-lhes juntamente que deviam achar-se em Bayonne entre 5 e 10 de Abril, que era o tempo em que ali devia chegar Napoleão. Todos o cumpriram, e oxalá que o prazo fosse mais demorado, [pois] achariam já vedado o trânsito pela Espanha. Inculcavam os avisos (mais uma impostura das que são muito familiares a esta gente) que a deputação tinha sido pedida pelos próprios portugueses; mas uma deputação nacional não pode ser pedida senão pela própria nação ou por algum corpo que a represente; a nação não a pediu, porque ignorava absolutamente o facto, e o abominou quando lhe foi conhecido; corpo que a represente não o temos; e ainda que como tal se quisesse considerar o Governo legítimo, esse achava-se suprimido.
Se a deputação fosse pedida pela nação ou por alguma autoridade que se arrogasse o direito de falar em nome dela, que alarde não faria Junot deste acto de vassalagem? Que assunto para a Gazeta de Lisboa e para todos os periódicos dependentes de Napoleão? E nesse caso a nação ou a autoridade que a tivesse pedido deveria também nomear os deputados. A verdade é que a deputação foi tão pedida pelos portugueses como o tinham sido as de tantos povos que têm concorrido para arrastarem o carro ensanguentado dos triunfos de Napoleão, e como pouco tempo depois a dos 150 espanhóis que também foram convocados a Bayonne, para irem, como se pretendia, destruir as bases do antigo edifício da monarquia espanhola.
Aos 14 que se chamavam deputados, ainda se ajuntaram mais algumas pessoas de consideração, que aumentaram o número destes infelizes prisioneiros, conduzidos pelos seus interesses, bem ou mal entendidos, ou pelo delírio de quererem viajar em tempos tão críticos; mas isto era somente um ensaio: a procissão devia ir continuando, se os acontecimentos da Espanha não lhe embargassem os passos" [Fonte: Accursio das Neves, História Geral da Invasão dos Francezes em Portugal - Tomo II, Lisboa, 1810, pp. 137-141].