segunda-feira, 15 de novembro de 2010

A ocupação francesa: desacatos e estratégias para controlá-los

Como se tem abundantemente demonstrado, a ocupação estrangeira contou desde o início com o apoio do Governo da Regência, cujos membros - sublinhe-se - se limitavam a cumprir as ordens que o Príncipe Regente emitira antes de rumar para o Brasil. 
Não obstante, vários acontecimentos pontuais, esporádicos e dispersos, perturbaram desde o início o trabalho aos invasores, sobretudo aos franceses. Logo à entrada em Portugal, na zona da Beira Interior, alguns soldados do Exército francês foram mortos pelos populares, embora provavelmente devido aos seus próprios abusos, como reconhecia o próprio Junot em carta a Napoleão. Já em Lisboa, apesar de se ter restringido o uso e porte de armas de fogo a 4 de Dezembro, nesse mesmo dia ocorreram alguns desacatos entre portugueses e soldados franceses embriagados, o que levou a Regência a emitir uma portaria proibindo a abertura das tabernas depois das 7 horas da noite. Posteriormente, um pouco por todo o país se noticiava o caso de algum francês que tinha sido ofendido com insultos ou apedrejado por populares [ver a este respeito os relatórios da Intendência Geral da Polícia referentes a esta primeira fase da invasão, publicados na obra de António Ferrão, A 1.ª Invasão Francesa (A Invasão de Junot vista através dos documentos da Intendência Geral da Polícia, 1807-1808), Coimbra, Imprensa da Universidade, 1925]. 
A pouca importância que Junot dava a estes factos reflecte-se na ausência das suas referências na correspondência que estabeleceu com Napoleão [Cf. Junot, Diário da I Invasão Francesa]. Junot vê que o ódio do português ao espanhol é bem maior que ao francês, e não se cansa de repeti-lo em várias cartas ao Imperador: "existe entre portugueses e espanhóis um ódio impossível de extinguir" [carta de 30 de Novembro]; "penso que as províncias que se virem governadas por espanhóis terão grande tendência para emigrar e vir para aquelas que ficarem governadas segundo as ordens de Vossa Majestade" [carta de 2 de Dezembro]; "o que eles [os portugueses] muito evidentemente desejam seria um príncipe que os deixasse independentes, mas se o não puderem conseguir querem ser franceses, pois mais receiam ser espanhóis que morrer" [carta de 16 de Dezembro]; "o brado geral, e verdadeiramente bem pronunciado, é Sejamos de um príncipe francês, e eu creio dever repetir a Vossa Majestade que os portugueses têm maior receio de ser espanhóis que de morrer. Nunca dois povos sentiram um pelo outro tão intenso ódio nacional" [carta de 27 de Dezembro].
Fosse isto verdade ou não, o certo é que, durante todo o período em que o Exército espanhol permaneceu em Portugal (e que, inclusive, durante algum tempo foi bem mais numeroso que o francês), não ficaram registados semelhantes incidentes entre portugueses e espanhóis como aqueles que vitimaram alguns franceses.
A primeira grande preocupação de Junot deve ter acontecido no dia 13 de Dezembro, depois de ser alçada a bandeira francesa no Castelo de S. Jorge, rebentando em consequência um pequeno motim na capital, abafado somente no dia posterior, quando também foi publicado um edital proibindo quaisquer tipos de ajuntamentos. Recorde-se o que Junot escreveu a este respeito, no dia 16, ao seu Imperador: "Uma parte da mais vil canalha que inunda as ruas desta capital tinha insultado alguns soldados e dizia não querer ver ondular a bandeira tricolor; alguns tiros de espingarda e uma comissão militar reestabeleceram a calma, mas não posso ignorar que esses espíritos facilmente excitáveis devem estar a ser fortemente incitados por emissários ingleses que um barco de pescadores trouxera dois ingleses para Lisboa; pus imediatamente a polícia em busca deles, mas até agora nada se descobriu; se forem presos, serão imediatamente fuzilados como espiões"... (Não se conhece nenhuma menção de que estes "espiões" tenham alguma vez sido capturados).
O reforço do policiamento de Lisboa de pouco servia para eliminar os temores de Junot, pois como ele próprio escrevia no dia 21, novamente a Napoleão, "Lisboa tem estado tranquila de há dias a esta parte, mas eu não me fio nisso e mando vigiá-la cuidadosamente"  [Junot, Diário da I Invasão Francesa, p. 119]. Ainda sem poder contar com a totalidade do seu Exército (cujas tropas continuavam a chegar aos poucos e desgastadas), Junot tinha plena consciência de que não tinha meios de subsistência por muito tempo e de que não tinha forma de contornar o sistema administrativo e burocrático português e nem muito menos impedir com poucos meios a quase bancarrota do país.  
Ora, se de pouco servia dominar os membros da Regência, e se não podia controlar as (escassas) finanças nem todo o território português, podia ao menos servir-se da religião. Como conta a este respeito Acúrsio das Neves, "bem conhecia Junot (e seu amo o teria instruído nestas máximas) o império que tem sobre os povos que professam o catolicismo, a voz do clero, e especialmente a dos seus pastores, e por isso em todo o tempo da sua intrusa dominação tratou de a fazer servir aos seus fins, extorquindo dos prelados por destreza ou violência, ordens e pastorais que imprimiam uma mágoa e indignação profunda no espírito daqueles verdadeiros portugueses a que[m] os os ferros não tinham tirado o senso e a liberdade de pensar, que porém não deixavam de impor a um grande número de entes fracos, aos quais se conformava a obediência passiva aos opressores, que, se os não libertava dos incómodos e da vergonha do cativeiro, ao menos os dispensava dos perigos de uma resistência heróica" [José Accursio das NEVESHistória Geral da Invasão dos Franceses em Portugal, e da Restauração deste Reino – Tomo I, 1809, Lisboa, pp. 288-289]
O mesmo historiador refere finalmente que na "noite do natal, que costumava sempre ser de um extraordinário concurso de gente pelas ruas e igrejas, foi neste ano [de 1807] de um tristíssimo silêncio, tendo havido o cuidado de se proibirem [a 19 de Dezembro] o canto da salmodia e a celebração das demais funções do costume nessa noite, e [a 23 de Dezembro] o toque dos sinos depois das avé-marias em todos os tempos do ano, por ordem do Cardeal Patriarca. Não só os ajuntamentos mas também os toques de sino faziam estremecer o coração de um General tão tímido quando encarava o perigo, como atrevido quando se julgava em perfeita segurança" [José Accursio das NEVESHistória Geral da Invasão dos Franceses em Portugal, e da Restauração deste Reino – Tomo I, 1809, Lisboa, pp. 287-288].

Fonte: Rmn


Jean-Andoche Junot