terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Carta de Pierre Margaron, General de Brigada do Exército francês em Portugal, ao naturalista Geoffroy Saint-Hilaire, membro do Instituto da França e administrador do Museu de História Natural de Paris (10 de Dezembro de 1807)



Quartel-General, em Lisboa, 10 de Dezembro de 1807.


Fizestes-me justiça, Senhor, ao não duvidardes do prazer que me daria a vossa carta e da prontidão com que atenderia aos vossos pedidos. 
Vi o senhor Lendenberg e o senhor Sieber. A colecção do senhor conde de Hoffmansegg está em segurança. Ofereci salvaguardas, mas responderam-me que consideravam que tal precaução era inútil. Assim, limitei-me a convidar estes senhores a recorrerem a mim se surgissem circunstâncias em que lhes pudesse ser útil. Podeis, portanto, tranquilizar o proprietário e assegurar-lhe que a vossa recomendação será plena e inteiramente efectuada*.
Para responder tanto quanto possível aos desejos do meu amável sábio, questionei o senhor Sieber, que saiu há instantes da minha casa, para saber quais são quais as peças de grande beleza que, conforme o seu conhecimento, estão tanto nos gabinetes de história natural do Príncipe como nos de particulares: ele indicou-me que o objecto mais raro e sem paralelo é uma massa de cobre nativo**. Amanhã iremos percorrer todos os gabinetes, e tomarei nota de tudo o que ele e um célebre mineralogista que nos deve acompanhar*** me refiram e que mereça ser transportado para o Jardin des Plantes.
Daqui a uma hora irei à casa do General em Chefe, ao qual comunicarei a carta do interessante professor [o próprio Saint-Hilaire] e dos seus projectos. Antes de mais, obterei todas as autorizações que necessitarei para as minhas primeiras pesquisas, e tudo farei para ver chegar a Lisboa o administrador zeloso que quer enriquecer com tantas razões o nosso Gabinete e, sobretudo, o senhor Geoffroy, ao qual garanto a recepção mais amigável.
Resultou inútil falar do Thouyou: esta ave é desconhecida, mesmo do senhor Sieber. Talvez tenha mais sorte nas minhas pesquisas amanhã, pois não restam dúvidas que, a existir, deve encontrar-se no gabinete do Príncipe****.
Senhor, podeis dar-me frequentemente ocasiões para vos ser agradável, e contai com a minha exactidão, bem como com os meus sentimentos de elevada consideração, com os quais serei sempre
Vosso muito devotado,


[P.S.] [...] Escrever-vos-ei assim que veja o General [Junot] e feito as minhas descobertas.

[Fonte: E.-T. Hamy, "La mission de Geoffroy Saint-Hilaire en Espagne et en Portugal (1808). Histoire et documents", in Nouvelles Archives du Muséum d'Histoire Naturelle, Quatrième série - Tome dixième, Paris, Masson et C. Éditeurs, 1908, pp. 1-66, pp. 56-57].

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Notas:

* Entre 1797 e 1801, o naturalista alemão Hoffmansegg tinha estado em Portugal, juntamente com os seus colegas Heinrich Friedrich Link e Friedrich Wilhelm Sieber (não confundir com o também naturalista Franz Wilhelm Sieber), com o objectivo de recolher material (sobretudo botânico) do país, então praticamente desconhecido no resto da Europa. Contudo, mais ignorado ainda era o material do Brasil. Assim, antes de deixar Portugal, Hoffmansegg decidiu recorrer à sua vasta fortuna para enviar o referido Friedrich Wilhelm Sieber ao Brasil. Porém, como a antiga colónia portuguesa estava fechada aos estrangeiros (recordemos que só depois de ali chegar o Príncipe Regência é que os seus portos foram abertos "às nações amigas"), Hoffmansegg comprometeu-se que Sieber deixaria em Portugal todos os duplicados dos materiais que recolheria no Brasil. Não obstante, ao regressar a Lisboa, depois de explorar o Brasil durante três anos, Sieber tentou esquivar-se da referida obrigação que o seu promotor tinha contraído, junto do director do Museu da Ajuda, Domingos Vandelli. De facto, Sieber conseguiu expedir para o Mar Báltico a maior e melhor parte das caixas com os materiais que  tinha recolhido no Brasil, através dos recursos duma casa de comerciantes alemães sediada em Lisboa (da qual fazia parte o "sr. Lendenberg", como aparece referido na carta acima transcrita, embora noutros documentos apareça grafado como "Lindenberg", o qual correspondia-se periodicamente com o próprio Hoffmansegg). Contudo, a Alfândega de Lisboa, ao descobri-lo, decidiu apreender duas dessas caixas, como forma de garantia do cumprimento das obrigações contraídas por Hoffmansegg. Aparentemente, Sieber não deu o braço a torcer (por recomendações do seu patrono?), e acabou por permanecer em Lisboa com as seis caixas que restavam. Entretanto, Hoffmansegg recebera a maior parte desse material (possivelmente antes do embargo ordenado pelo Governo português), e não perdera tempo para anunciar ao mundo a "descoberta" de quatro tipos novos de macacos do Brasil, descrevendo-os num artigo publicado em meados de 1807 [Von Graf Hoffmannsegg, "Beschreibung vier affernatiger Thiere aus Brasilien", in Magazin für die Neuesten Entdeckungen in der Gesammten Naturkunde, Berlim, Realschulbuchhandlung, 1807, pp. 83-104]. No final desse mesmo ano de 1807, Hoffmansegg toma conhecimento que o exército francês prepara-se para marchar para Portugal, e percebe que não pode perder essa oportunidade para tentar resgatar as seis caixas que permaneciam em Lisboa, ademais daquelas duas que tinham sido apreendidas. Assim, escreve imediatamente ao Museu de História Natural de Paris (do qual era correspondente), cujos membros intervêm rapidamente junto das autoridades competentes (isto é, o Ministério do Interior do Governo francês, encabeçado por Emmanuel Crétet). Ao mesmo tempo, e com o mesmo objectivo, o naturalista francês Geoffroy Saint-Hilaire, então administrador do dito Museu parisiense, recorre ao seu amigo Margaron, que rumara para Portugal como General de Brigada do [primeiro] Corpo de Observação da Gironda (posteriormente chamado Armée de Portugal). Apesar de não se conhecer a correspondência que Saint-Hilaire remeteu ao General Margaron, percebe-se pelo teor da resposta acima transcrita que o primeiro tinha recomendado ao segundo precisamente para salvaguardar (entre outras coisas) as colecções naturais que Sieber tinha recolhido no Brasil, e cujo "legítimo proprietário", por assim dizer, era o próprio Hoffmansegg. Adiante veremos como esta questão ficou resolvida.



*** É possível, embora não o possamos afirmar, dada a falta de maiores informações, que o "célebre mineralogista" fosse José Bonifácio de Andrada e Silva.

**** Posteriormente descobrir-se-ia que, de facto, existia nas colecções de animais do Príncipe Regente pelo menos um exemplar vivo de ema, então conhecida no mundo francófono por thouyou ou touyou. Ver, a este respeito, as nossas anotações às citadas instruções de Crétet a Geoffroy Saint-Hilaire