Carta de Plácido a Venâncio
Abril de 1808
Temos novo Intendente da Polícia 1; e o General em Chefe é também Duque de Abrantes por graça do Imperador dos franceses. Como os Títulos de Portugal ficam provavelmente diminuídos pela Deputação forçada que deste Reino saiu há pouco tempo para França, substituem-se novos para conservar o esplendor da Monarquia 2.
Em túrgido estilo se anunciou o segundo despacho na Gazeta de 5 do corrente; e curiosos que estranharam o fraseado, pesquisaram e souberam que o mesmo Intendente era agora o compilador dela. Assegura-se que este homem comprara em França, por avultadas somas, o cargo que hoje ocupa em Lisboa; e que o Imperador, sabendo quantos prodígios se têm operado no mundo pela palavra, encarregara a este Apóstolo a missão de Portugal. Não sei qual será o resultado futuro dos seus trabalhos; mas o que se tem ordenado até agora em seu nome excita por um lado a mofa, e por outro a indignação; e não me parece que estes dois sentimentos sejam muito favoráveis às vistas do Conquistador.
Pela primeira Ordem de 7 deste mês, manda que as gazetas, cartas ou proclamações que nos chegarem da Esquadra Inglesa sejam denunciadas na Intendência; e que não comuniquemos novidades suspeitas ao Governo nos lugares públicos, sob pena de prisão; além da que nos impõe, obrigando-nos a gemer e calar. Não esquece que serão recompensados os espias e delatores 3.
Por uma de 9, declara réus de morte os cães existentes em Lisboa, e para as execuções promove todos os soldados franceses a carrascos (cargo bem digno de tais indivíduos), tendo por gratificação a pele do padecente.
Por outra de 11, dá finas providências para não se venderem chaves sem fechaduras; nem molhos de chaves velhas; nem chaves novas a qualquer pessoa; e tantas vezes fala em chaves, que forma uma nojosa arenga de seis artigos, e de nenhuma utilidade.
Ultimamente, como num bairro da cidade alguns moradores castigaram numa taberna a petulância de cinco soldados franceses, ordena, para exemplo – o discípulo de Robespierre –, que dos moradores das ruas em que se cometeu a desordem sejam logo presos doze entre os que tiverem pior conduta e fama; e que as tabernas ou casas de povo fiquem por seis meses fechadas, e os seus donos presos, se não denunciarem alguns dos delinquentes. No resto da Ordem, que contém dez artigos, defende-se de novo o uso das armas, que tanto susto causam aos nossos inimigos 4.
Para prender só os doze homens que num bairro tenham a pior fama, é indispensável averiguar anteriormente o procedimento de todos; cuja diligência não pode fazer-se logo, como manda a vivacidade francesa. Conservá-los presos, se não nomearem réus, não serve para descobrir a verdade, mas para acumular testemunhos falsos, que multiplicarão as prisões e as desgraças; e ordenar, porque houve uma bulha numa taberna, que se fechem todas as do bairro, é fazer justiça de Herodes ou assustar miseráveis para que procurem dobrar com dinheiro o ânimo do magistrado, e já dizem que não é difícil aplacar com o metal louro, que se ri da traça, as iras desta Divindade.
A Lei, meu amigo, só castiga o delinquente; e a humanidade ordena, e os melhor criminalistas recomendam, que se deixem antes cem culpados impunes, do que se castigue um inocente. Porém, os que governam com baionetas não adoptam máximas de moderação; e se este homem fora justa, não seria empregado por Bonaparte. Não se cuida agora de reger povos exercitando ditames de justiça; convém fasciná-los com ideias ilusórias e assombrosas, fazê-los escravos e empobrecê-los; e quem melhor desempenha a honrada comissão, mais lugar consegue na privança do Soberano. Contudo, enganar uma nação, não é obra que se incumba a néscios; e eu começo a desconfiar do saber de Napoleão, pela escolha dos enviados. Já conhecemos pelo dedo o gigante Junot, e vemos que Lagarde não é mais que um presunçoso pedante, que na época em que se nos prometem reformas sábias e extirpação de abusos, trata de chaves velhas e de cães, e mostra na punição dos delitos que ou carece das primeiras ideias de Direito Criminal, ou as despreza por cruel 5.
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Notas do autor:
1. Por Decreto de 25 de Março de 1808.
2. Também porque estavam extintos os Títulos em França, se criaram novos por Decretos de Napoleao. Tal é o do 1.º de Março de 1808, que se refere ao Senatus-Consulto de 14 de Agosto de 1806.
3. Deu-se esta Ordem em consequência de um Decreto de Junot de 5 de Abril, que proibia de novo a comunicaçao com a Esquadra [inglesa].
4. A primeira providência sobre as armas deu-se em 4 de Dezembro de 1807, a segunda em 15 de Fevereiro, esta de que fala o autor em 29 de Abril, e a última em 24 de Julho de 1808.
5. Nota-se em duas Gazetas do mês de Abril uma contradição, que mostra bem quanto eram superficiais os engenhos que nos governavam. Na de 16, para que se formasse alta ideia da polícia, asseverou o Intendente que em Lisboa não se ouviu falar de delitos triviais; e na de 19 disse o General que tendo-se multiplicado infinitamente os roubos tanto em Lisboa, como em todo o Portugal, ordenava que o Tribunal Especial (criado por Decreto de 8 do mesmo mês) conhecesse provisoriamente do crime de roubo. Duvido que se possam achar cabeças mais ocas!
[Fonte: “Carta XLVIII”, in Cartas Americanas. Publicadas por Theodoro José Biancardi [1.ª ed., 1809], Lisboa, Impressão de Alcobia, 1820, pp. 161-165. Inserimos os itálicos originais e as notas do autor].