domingo, 1 de maio de 2011

Manifesto da Corte portuguesa justificando à Europa e aos seus vassalos a decisão da sua transferência para o Brasil, expondo a conduta de Napoleão e declarando guerra à França (1 de Maio de 1808)






Manifesto ou exposição fundada e justificativa do procedimento da Corte de Portugal a respeito da França, 
desde o princípio da Revolução até à época da invasão de Portugal, e dos motivos que a obrigaram a declarar a guerra ao Imperador dos Franceses, 
pelo facto da invasão e da subsequente declaração de guerra feita em consequência 
do relatório do Ministro das Relações Exteriores 




A Corte de Portugal, depois de ter guardado o silêncio que era próprio das difíceis circunstâncias em que se achou, e até ao momento em que o novo assento do Governo estivesse estabelecido, julga dever à sua dignidade, e à ordem que ocupa entre as Potências, a exposição verídica e exacta da sua conduta, sustentada por factos incontestáveis, a fim de que os seus vassalos, a Europa imparcial, e ainda a mais remota posteridade possam julgar da pureza de sua conduta e dos princípios que adoptou, seja para evitar uma efusão inútil do sangue dos seus povos, seja porque não pôde persuadir-se que Tratados solenes, e de que havia cumprido as condições onerosas a favor da França, pudessem parecer objectos de pouco preço aos olhos de um Governo cuja desmedida e incomensurável ambição não tem limites e que, enfim, tem de todo tirado a poeira dos olhos aos que se achavam mais prevenidos em seu favor. Não é com injúrias, nem com vãos e inúteis ameaços, que a Corte de Portugal levantará a sua voz do seio do novo Império que vai criar; é com factos autênticos e verdadeiros, expostos com a maior singeleza e moderação, que fará conhecer à Europa e aos seus vassalos tudo o que acaba de sofrer, que despertará a atenção dos que podem ainda desejar não serem vítimas de uma tão desmedida ambição, e que poderão ainda sentir quanto a sorte futura de Portugal, e a restituição dos seus Estados invadidos sem declaração de guerra e no seio da paz, deve ser preciosa para a Europa, se espera ver renascer a segurança e independência das Potências que dantes formavam uma espécie de República, que se balançava e se equilibrava em todas as suas diferentes partes. A invocação e a apelação para a Providência divina é a consequência desta exposição; e um Príncipe religioso sente todo o valor desta prática, pois que o crime nem sempre fica impunido [sic]; e a usurpação e a força se gastam e consomem pelos esforços contínuos, que são obrigadas a empregar para se conservarem. 
A Corte de Portugal viu com lástima principiar a Revolução da França; e deplorando a sorte do virtuoso Rei, com quem tinha relações de sangue tão estreitas, não julgou todavia prudente tomar parte alguma na guerra que o procedimento dos malvados que dominaram e desolaram a França (até pela confissão do Governo actual) obrigou a todas as Potências a declarar-lhes; e ainda dando socorros à Espanha para a defesa dos Pirenéus, procurou sempre guardar a mais perfeita neutralidade. 
O Governo francês mandou em 1793 um Ministro para residir junto da Corte de Portugal, que foi acolhido com toda a consideração, mas não reconhecido, porque ainda então os princípios do Direito das Gentes e do Direito Público não autorizavam os Governos a reconhecer as mudanças extraordinárias sem que houvesse lugar de as reputar legítimas; e nenhuma nação é em tal matéria juiz de outra, se a independência existe. O Governo francês, sem declaração de guerra e sem formalidade alguma, começou a deter os navios mercantes portugueses; e depois da época da paz de 1801 pediu e conseguiu indemnidades por aqueles que a Corte de Portugal deteve, para lhe servir de uma legítima compensação; e não quis jamais da sua parte ter consideração alguma às reclamações dos negociantes portugueses. A Corte de Espanha, que tinha requerido os socorros de Portugal, e que até pela confissão dos Generais franceses se viu obrigada a reconhecer quanto lhe haviam sido úteis e necessários, fazendo a paz com a França, não somente se esqueceu do seu aliado, que ela devia fazer declarar em estado de paz com a França, pois que a Corte de Portugal, socorrendo o seu aliado para satisfazer às condições do Tratado de aliança que existia entre os dois Soberanos, não tinha jamais tido a intenção de fazer a guerra à França; mas o que é talvez inaudito, ou ao menos bem raro nos anais da história, a Espanha fez então causa comum com a França para obrigar Portugal a receber condições de paz injustas e humilhantes, sem que Portugal tivesse feito a guerra, e não cessou de declarar-se inimiga do seu aliado, senão quando depôs as armas, e assinou os Tratados de Badajoz e de Madrid; aproveitando-se até das forças da França para se apropriar uma pequena extensão de território da província do Alentejo, da parte de Olivença; querendo assim deixar à posteridade um monumento eterno da triste recompensa que dava a um aliado que, apesar da antiga rivalidade das duas nações, não tinha querido dispensar-se de cumprir com as condições de um Tratado de aliança que existia entre ambas. 
Os Tratados de paz de Badajoz e de Madrid, em 1801, são ainda uma nova prova da má fé dos inimigos de Portugal; pois que tendo sido assinado o Tratado de Badajoz por Luciano Bonaparte, Plenipotenciário francês, e o Príncipe da Paz, de uma parte, e da outra pelo Plenipotenciário português, o Governo francês não quis ratificá-lo, e obrigou Portugal a assinar um novo Tratado em Madrid com condições muito mais duras, sem que pudesse alegar outros motivos que os do seu capricho e da sua ambição. Este último Tratado assinou-se quase ao mesmo tempo que o Tratado de Londres entre a Grã-Bretanha e a França, que moderou algumas condições muito onerosas a Portugal, e fixou os limites da parte do norte da América, o que foi confirmado pela paz de Amiens; e esta consideração da Grã-Bretanha para o seu antigo aliado serviu aos olhos da França de nova prova da escravidão e dos grilhões com que o Governo inglês tinha sujeito o Governo português. 
Apenas o Tratado de 1801 se achava concluído, já a Corte de Portugal se apressava a executar todas as condições onerosas e a fazer ver, pela religiosa e exacta observação de todo o empenho contraído, quanto desejava segurar a boa harmonia que se restabelecia entre os dois Governos e que devia fazer esquecer todas as injustiças que tinha experimentado, e que seguramente não tinham sido provocadas da sua parte. O procedimento do Governo francês foi bem diferente; e desde os primeiros momentos que a paz se restabeleceu, não cuidou senão de exigir toda a qualidade de sacrifícios injustos da parte do Governo português a favor das pretensões mais extravagantes e menos fundadas dos vassalos franceses. A Europa devia desde então prever que a sua escravidão desde Lisboa a Petersburgo estava decidida no Gabinete das Tulherias, e que era preciso fazer causa comum para destruir o colosso, ou resolver-se a ser a sua vítima. 
Depois de um curto intervalo a guerra se ateou de novo entre a Grã-Bretanha e a França; e a Corte de Portugal, tendo feito os maiores sacrifícios para evitá-la e para subtrair-se às proposições duras e humilhantes do Governo francês, julgou-se muito feliz de poder concluir com grandes sacrifícios de dinheiro o Tratado de 1804, no qual a França prometia, no Artigo VI, o que se segue: «O Primeiro Cônsul da República francesa consente em reconhecer a neutralidade de Portugal durante a presente guerra, e promete de não se opor a nenhuma das medidas que poderiam ser tomadas a respeito das nações beligerantes, em consequência dos princípios e leis gerais da neutralidade». 
O Governo francês colheu desde essa época toda a vantagem de um semelhante Tratado; não teve jamais lugar de fazer a menor queixa contra o Governo português; e foi contudo na mesma guerra, e depois de uma semelhante estipulação, que exigiu da Corte de Portugal não somente a infracção da neutralidade, mas a declaração de guerra contra a Grã-Bretanha, com a violação de todos os Tratados que existiam entre os dois países, e nos quais no caso de guerra, reconhecido como possível, se tinha fixado o modo com que os vassalos das duas nações deviam ser tratados; e tudo isto sem que Portugal pudesse de modo algum queixar-se do Governo britânico, que até lhe tinha dado sempre toda a qualidade de satisfação, quando os Comandantes das suas embarcações de guerra tinham faltado às atenções e consideração que deviam a uma bandeira neutral. 
O Imperador dos franceses fez sair neste intervalo uma das suas esquadras, onde se achava embarcado seu irmão; deu fundo na Bahia de Todos os Santos; foi ali recebido com a maior atenção; a esquadra recebeu toda a qualidade de refrescos; e o que é contudo digno de observação, é que na mesma época em que o Governo francês recebia da parte do de Portugal tantas demonstrações de amizade e de consideração, a esquadra queimou alguns navios portugueses para encobrir a sua direcção, com promessa de indemnizar os proprietários, o que jamais se cumpriu de modo algum. A Europa pode dali tirar por conclusão que sorte a espera, se o Governo francês chega a conseguir sobre o mar um ascendente igual ao que tem na terra; e pode avaliar com certeza o fundamento das queixas que ele publica contra o Governo britânico, e a que dá tamanho peso. A Grã-Bretanha nunca fez reclamações contra estes socorros dados à esquadra francesa, porque eram dentro dos limites prescritos pelo direito público; mas o Ministro das Relações Exteriores de França atreve-se a dizer à face da Europa que Portugal deu socorros aos ingleses para a conquista de Montevideu e de Buenos Aires, quando é um facto reconhecido e sabido por todos que esta expedição, que partiu do Cabo da Boa Esperança, não recebeu de Portugal navios, dinheiro, homens, nem, enfim, mercadoria alguma daquelas que são consideradas como contrabando em tempo de guerra, e que até as esquadras inglesas, no tempo que durou esta guerra, não houveram coisa alguma do Rio de Janeiro nem dos outros portos do Brasil, senão o que não se nega a nação alguma, e que aliás com abundância se tinha franqueado à esquadra francesa. A Corte de Portugal propõe à da França que produza um só facto que possa contradizer esta asserção, fundada na mais exacta e escrupulosa verdade. 
A França recebeu de Portugal desde 1804 até 1807 todos os géneros coloniais e as matérias-primas para as suas manufacturas; a aliança de Inglaterra com Portugal foi útil à França; e na depressão em que se acham as artes e a indústria, em consequência de uma guerra de terra perpétua e da guerra marítima desastrosa, onde ela não recebe senão revezes, era seguramente uma grande felicidade para a França o comércio de Portugal, que não recebia estorvo algum e que era certamente útil aos dois países. Assolando Portugal, sujeitando-o a contribuições excessivas de um modo inaudito, sem o ter conquistado e haver da sua parte experimentado resistência alguma, a França não colhe o fruto que um comércio útil aos dois países lhe teria procurado. 
A Corte de Portugal podia pois lisonjear-se com justo título e com toda a espécie de fundamento, que a das Tulherias respeitaria uma neutralidade que ela tinha reconhecido por um Tratado solene e de que tirava tantas e tão decididas vantagens, quando foi despertada da segurança em que estava no mês de Agosto de 1806 por uma declaração formal do Ministro das Relações Exteriores, Mr. de Talleyrand, feita a Lord Yarmouth [então embaixador da Grã-Bretanha na França], pela qual o primeiro fez conhecer ao segundo, que se a Grã-Bretanha não fazia a paz marítima, o Governo francês declararia a guerra a Portugal e faria marchar sobre ele 30.000 homens para o ocupar. Não é com 30.000 homens que se poderia fazer a invasão de Portugal; mas o Imperador dos franceses conhecia a segurança em que este Reino se achava, por motivo do Tratado da neutralidade; julgava surpreendê-lo, e isto bastava para justificar os seus procedimentos. Assustou-se a Corte de Inglaterra; propôs e ofereceu à de Portugal toda a qualidade de socorros; mas a França, que naquela mesma ocasião tinha disposto tudo para aniquilar a Corte de Prússia, a qual em campo só desafiava então a força superior do Imperador dos franceses, quando não tinha querido um ano antes atacá-lo e por ventura obrigá-lo a receber a lei, e salvar assim a Europa, unindo-se com a Rússia e a Áustria, achou meio de tranquilizar a Corte de Portugal, que então queria poupar e entreter, e que por outro lado se não podia persuadir que semelhante perfídia fosse adoptada por uma Potência cuja grandeza devia ir de par com a boa fé e com os sentimentos de dignidade, que tanto se conciliam com o estado de grande elevação. A guerra que depois continuou com a Rússia e que talvez teria também salvado a Europa, se a união entre os Governos que a dividem fosse tão estreita como devia ser, retardou ainda as vistas do Imperador dos franceses a respeito da Corte de Portugal; e foi somente depois da conclusão da paz de Tilsit que a Corte das Tulherias, com um tom ditatorial, e qual conviria a Carlos Magno junto dos Príncipes de que era Senhor soberano, fez propor à Corte de Portugal por meio do seu Encarregado de Negócios e pelo Embaixador de Espanha a extraordinária proposição: I. De fechar os portos de Portugal à Inglaterra; II. De deter todos os ingleses que residiam em Portugal; III. De confiscar toda a propriedade britânica; ou, em caso de negativa, de expor-se a uma guerra imediata com a França e com a Espanha; pois que o Encarregado de Negócios de França e o Embaixador de Espanha tinham ordem de partir no 1.º de Setembro [de 1807], quase três semanas depois de uma semelhante proposição, se a Corte de Portugal não satisfizesse a todas as pretensões das duas Cortes. A boa fé do Governo francês é também notável pela celeridade com que, fazendo esta declaração e sem esperar a resposta da Corte de Portugal, fez deter todos os navios mercantes portugueses que estavam nos portos de França, e começou assim as hostilidades sem declaração de guerra; e excedeu desta sorte todos os procedimentos que não cessa de lançar em rosto à Grã-Bretanha, e a que na presença de uma semelhante conduta se pode dar o justo valor. 
A Corte de Portugal poderia então adoptar a máxima conhecida dos romanos, e persuadir-se que as condições que desonram têm muitas vezes salvado os que recusam aceitá-las e perdido os que as propõem; mas de uma parte ela não podia persuadir-se que a Corte das Tulherias fizesse seriamente tais proposições, que comprometiam a sua honra e a sua dignidade, e da outra esperava aplacar a tempestade, não querendo derramar o sangue dos seus povos; e tendo uma plena confiança na amizade do seu antigo e fiel aliado Sua Majestade Britânica, tentou moderar as pretensões do Governo francês acedendo à clausura dos portos, mas negando-se aos dois outros artigos, contrários aos princípios do direito público e aos Tratados que existiam entre as duas nações; e Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal não hesitou em declarar que estes dois artigos ofendiam a sua religião e os princípios de moral de que jamais se afasta, e que talvez sejam a verdadeira causa da firmeza, da fidelidade e da lealdade que tem experimentado da parte de todos os seus vassalos. 
A Corte de Portugal começou então a tomar medidas para segurar o seu retiro para aquela parte dos seus Estados que não pode temer uma invasão cujas consequências venham a inquietá-la. Para este fim fez armar os navios da sua esquadra, que podiam navegar; e ao mesmo tempo fazendo sair dos seus Estados todos os ingleses e animando-os a venderem as suas propriedades, dispôs-se a fechar os portos à Grã-Bretanha, para ceder a uma força superior, para evitar uma efusão de sangue dos seus vassalos, que provavelmente teria sido inútil, e para procurar comprazer com as vistas do Imperador dos franceses, se ele não se quisesse persuadir da justiça com que a Corte de Portugal sustentava os direitos da sua independência e os que resultavam do Tratado de neutralidade concluído em 1804. Não querendo a Corte das Tulherias prestar-se a nenhumas vistas de conciliação, e tendo exigido não só a clausura dos portos, mas até a prisão dos vassalos britânicos e o confisco das suas propriedades, assim como o abandono do projecto do retiro para o Brasil, Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal, que de uma parte conhecia que o seu fiel e antigo aliado Sua Majestade Britânica, que estava informado de tudo o que se tratava, consentiria para salvar Portugal da invasão dos franceses na simples clausura dos portos; e que de outra parte sabia que já não havia no Reino de Portugal inglês que se não tivesse naturalizado, assim como também que toda a propriedade britânica tinha sido vendida e até o seu valor exportado, tomou enfim a resolução de fechar os portos à Inglaterra, e de comprazer com outras vistas e pretensões que a França exigia; declarando porém sempre que se as tropas francesas entrassem em Portugal, Sua Alteza Real havia tomado a firme resolução de transferir o assento do Governo para o Brasil, que formava a parte mais essencial e mais defensável dos seus Estados. 
Sua Alteza Real fez então aproximar das costas e portos do mar todo o seu exército; persuadiu-se que a França, tendo conseguido essencialmente tudo o que tinha pedido, não teria lugar de exigir mais coisa alguma; e pôs toda a confiança na boa fé, que devia considerar-se como a base de todo o Governo que há cessado de ser revolucionário, e na segurança de que, tendo feito tudo o que estava da sua parte para segurar a tranquilidade do seu povo, para evitar uma efusão inútil de sangue, tinha cumprido assim com todos os deveres de um Príncipe virtuoso e adorado pelos seus vassalos, e que quanto ao mais não tem que dar contas das suas acções senão ao Ente Supremo. 
O Governo francês procedeu então a respeito de Sua Alteza Real e dos seus Estados de uma maneira que não teria exemplo na história, se a invasão da Suíça feita pelos franceses no tempo do Directório Executivo não fornecesse um facto completamente semelhante. O General Junot, sem nenhuma declaração preliminar, sem consentimento algum de Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal, entrou com a vanguarda do seu exército no Reino, assegurando aos habitantes do campo e aldeias por onde passava, que vinha socorrer o seu Príncipe contra a invasão dos ingleses, e que entrava como General de uma Potência amiga e aliada. Ele colheu na sua passagem provas autênticas da boa fé do Governo português, porque viu em que perfeita segurança se estava a respeito da França, e que todas as tropas portuguesas se achavam na vizinhança das costas. Sua Alteza Real o Príncipe Regente, surpreendido de uma conduta tão inaudita, teria podido reunir o corpo de tropas que tinha junto a si, e fazendo entrar a esquadra inglesa no porto de Lisboa, reduzir a pó o pequeno e miserável corpo, a cuja frente o General Junot avançava com uma temeridade que seria incrível, se a sua conduta em Lisboa [como embaixador da França] e Veneza o não tivessem feito conhecer, e se ele não confiasse no coração do virtuoso Príncipe, que nunca exporia a terríveis revezes os seus povos a troco de um primeiro sucesso seguro, que só serviria de castigar a audácia de um homem que, como muitos outros, abusava do poder que lhe havia sido confiado, ou que executava ordens que de modo algum se podem justificar. 
Sua Alteza Real o Príncipe Regente abraçou então o único partido que poderia convir-lhe, para não se afastar dos princípios que tinha constantemente seguido, para poupar o sangue dos seus povos e para evitar a completa execução das vistas criminosas do Governo francês, que não se propunha a nada menos que apoderar-se da sua Real pessoa e de todas as que compõem a sua Augusta Família Real, para poder depois, ao seu modo e segundo lhe parecesse, repartir os despojos da Coroa de Portugal e dos seus Estados. A Providência favoreceu os esforços de um Príncipe justo; e a magnânima resolução que Sua Alteza Real abraçou de retirar-se aos seus Estados do Brasil com a sua Augusta Família Real, tornou totalmente inúteis os desígnios do Governo francês, e descortinou à face de toda a Europa as vistas criminosas e pérfidas de um Governo que não tem outro fim senão o dominar a Europa e o mundo inteiro, se as grandes Potências dela, despertadas do letargo em que se acham, não fizerem causa comum contra uma ambição tão excessiva e tão fora de todos os limites. 
Depois que Sua Alteza Real chegou felizmente aos seus Estados do Brasil, soube com horror não somente a usurpação de Portugal, e a assolação e saque que ali se pratica, mas o indigno procedimento do Imperador dos Franceses, que como verdadeiro Ditador da Europa se atreve a fazer um crime a Sua Alteza Real de ter transferido a sua capital para o Brasil, e aos seus fiéis vassalos de terem acompanhado um Príncipe que todos os seus povos veneram e adoram, mais ainda pelas suas virtudes que pelos direitos da sua Augusta Família Real, que herdou e pelos quais reina sobre eles. Sua Alteza Real viu com horror o excesso de se atrever a proscrever numa Gazeta ministerial os direitos da sua Augusta Família Real à Coroa de Portugal, os quais não cederá jamais; e com todo o direito perguntaria ao Imperador dos franceses, em que código das nações achou semelhantes princípios e semelhante autoridade; reclamando sobre esta matéria uma séria reflexão da parte de todos os Governos da Europa, que não poderão ver a sangue frio o que se acaba de expor, e a introdução de um novo Governo em Portugal sem o seu consentimento, assim como a cobrança de uma contribuição desmedida, exigida de um país que não opôs resistência alguma à entrada das tropas francesas, e que por isso mesmo não podia considerar-se em estado de guerra. A mais remota posteridade, assim como a Europa imparcial, hão de ver com dor semelhantes factos, precursores de séculos de barbaridade, quais os que se seguiram à queda do Império Romano, e que não poderão evitar-se se não se procurar o restabelecimento da Europa por meio de um esforço unânime, e pelo esquecimento de todas as rivalidades, que têm sido até aqui as verdadeiras causas da elevação do poder monstruoso que ameaça a universal ruína. 
Depois da exposição exacta e verdadeira que Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal vem de fazer à Europa e aos seus vassalos, de tudo o que acaba de suceder entre o Governo português e francês; e quando o Imperador dos franceses tem não somente invadido e sujeitado a contribuições, de um modo horrível e que apenas se pode acreditar, o Reino de Portugal debaixo do véu de amizade; mas tem também há muito feito retirar a sua missão, e se tem apoderado dos navios mercantes portugueses que existiam nos seus portos, sem uma preliminar declaração de guerra e contra os artigos expressos do Tratado de neutralidade de que tirava as maiores vantagens; e ultimamente declarado a guerra, em consequência do relatório do Ministro das Relações Exteriores. Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal, depois de entregar a sua causa nas mãos do Todo Poderoso, cujo auxílio tem todo o direito de invocar em uma tão justa contenda, julga dever à ordem e à dignidade da sua Coroa o fazer a seguinte declaração: 

Sua Alteza Real rompe toda a comunicação com a França, chama aos seus Estados todos os empregados naquela missão, se é que algum possa ainda ali achar-se; e autoriza os seus vassalos a fazer a guerra por terra e mar aos vassalos do Imperador dos franceses. 
Sua Alteza Real declara nulos e de nenhum efeito todos os Tratados que o Imperador dos franceses o obrigou a assinar, e particularmente os de Badajoz e de Madrid em 1801, e o de neutralidade de 1804, pois que ele os infringiu e nunca os respeitou. 
Sua Alteza Real não deporá jamais as armas, senão de acordo com o seu antigo e fiel aliado Sua Majestade Britânica; e não consentirá em caso algum na cessão do Reino de Portugal, que forma a mais antiga parte da herança e dos direitos da sua Augusta Família Real. 
Quando o Imperador dos franceses tiver satisfeito sobre todos os pontos às justas reclamações de Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal, e abandonar o tom absoluto e imperioso com que rege a Europa oprimida, e restituir à Coroa de Portugal o que invadiu no meio da paz e sem provocação, Sua Alteza Real se apressará então de renovar os enlaces que teriam sempre subsistido entre os dois países, e que devem ligar as nações, que jamais se dividirão essencialmente entre si, senão pelos princípios de uma ambição sem limites, e que a experiência dos séculos tem bem mostrado quanto são contrários à prosperidade e tranquilidade daquelas que os adoptam. 

Rio de Janeiro, em 1 de Maio de 1808. 

[Fonte: Manifesto ou exposição fundada e justificativa do procedimento da Corte..., Coimbra, Real Imprensa da Universidade, 1808; Correio Braziliense - Setembro de 1808, pp. 255 e ss; existe uma outra edição, da qual extraímos a folha de rosto acima inserida, publicada pela Impressão Régia (de Lisboa?), sem data de impressão, e que consta inserida na compilação de Antonio Joaquim Moreira (org.), Colecção de sentenças que julgarão os réos dos crimes mais graves e attrozes commetidos em Portugal e seus dominios - Vol. 4, 1863; o Código Brasiliense da John Carter Brown Library dispõe de um exemplar deste manifesto publicado pela Impressão Régia do Rio de Janeiro; finalmente, este texto também foi inserido na obra de Julio Firmino Judice Biker, Suplemento á Collecção dos Tratados, Convenções, Contratos e Actos Publicos celebrados entre a Corôa de Portugal e as mais potências desde 1640 – Tomo XV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1878, p. 112 e ss. Existe ainda uma tradução francesa (acompanhada pelo texto original) publicada como apêndice ao n.º 129 do periódico L'Ambigu, ou Variétés littéraires et politiques (publicado em Londres no início de Julho de 1808)].