domingo, 28 de agosto de 2011

Primeira versão da Convenção Definitiva para a evacuação de Portugal pelo exército francês (28 de Agosto de 1808)





Convenção Definitiva para a evacuação de Portugal pelo exército francês


Os Generais Comandantes em Chefe dos Exércitos britânico e francês em Portugal, tendo determinado negociar e concluir um Tratado para a evacuação de Portugal pelas tropas francesas, sobre a base do acordo que se ajustou a 22 deste mês para uma suspensão de hostilidades, nomearam os Oficiais abaixo mencionados para negociar o mesmo em seus nomes, a saber: da parte do General em Chefe do Exército britânico, o Tenente Coronel Murray, Quartel-Mestre-General, e da parte do General em Chefe do Exército francês, monsieur Kellermann, General de Divisão; aos quais deram autoridade para negociar e concluir uma Convenção para este efeito, sujeita às suas respectivas ratificações, e à do Almirante comandante da frota britânica na foz do Tejo.
Estes dois oficiais, depois de trocarem os seus plenos poderes, concordaram nos artigos que se seguem:

Art. I. Todas as praças e fortes no Reino de Portugal ocupadas pelas tropas francesas serão entregues ao exército britânico no estado em que se encontram no momento da assinatura da presente Convenção.

Art. II. As tropas francesas evacuarão Portugal com as suas armas e bagagem; não serão consideradas como prisioneiras de guerra e, uma vez chegadas à França, terão a liberdade para [voltar a] servir.

Art. III. O Governo inglês fornecerá, às suas custas, os meios de transporte para o exército francês, que desembarcará em qualquer um dos portos de França entre Rochefort e Lorient, inclusive.

Art. IV. O exército francês levará consigo toda a sua artilharia de calibre francês, com os cavalos do seu trem, e os [respectivos] carros munidos de 60 balas por peça.

Art. V. O exército francês levará consigo todos os seus equipamentos e tudo o que se compreende debaixo da denominação de propriedade do exército, ou seja, a sua caixa militar e as carruagens agregadas ao comissariado e aos hospitais de campanha; em alternativa, permitir-se-lhe-á negociar, por sua conta, aquela parte da mesma que o Comandante em Chefe julgue desnecessário embarcar. Da mesma forma, todos os indivíduos do exército serão livres para vender a sua propriedade particular, seja qual for, com plena garantia futura para os seus compradores.

Art. VI. A cavalaria embarcará os seus cavalos, e os Generais e os outros oficiais [embarcarão] o número [de cavalos] permitido a cada um, segundo o regulamento do serviço militar francês. É contudo perfeitamente entendido que os meios de transporte dos cavalos à disposição dos comandantes britânicos são muito limitados; poderão conseguir-se alguns transportes adicionais no porto de Lisboa; e em todo o caso, dar-se-á ao exército francês toda a facilidade para negociar os cavalos que lhe pertençam e que não se possam embarcar.

Art. VII. Com o objectivo de facilitar o embarque, este será feito em três divisões, compondo-se a última das quais principalmente pelas guarnições das praças, pela cavalaria, pela artilharia, pelos doentes e pelo equipamento do exército. A primeira divisão embarcará dentro de 7 dias a partir da data da ratificação, ou mais cedo, se possível.

Art. VIII. As guarnições de Elvas e dos seus fortes, bem como as de Peniche e de Palmela, embarcarão em Lisboa; a de Almeida embarcará no Porto ou no ancoradouro mais próximo. Estas guarnições serão acompanhadas na sua marcha por comissários britânicos, encarregados de providenciar a sua subsistência e alojamento.

Art. IX. Todos os doentes e feridos que não puderem ser embarcados com as tropas ficam confiados ao exército britânico. Serão cuidados, enquanto permanecerem neste país, às custas do Governo britânico, debaixo da condição da despesa ser paga pela França quando se efectuar a evacuação final. O Governo inglês providenciará o seu regresso para a França, que será feito por destacamentos de cerca de cento e cinquenta ou duzentos de cada vez. Um número suficiente de oficiais médicos franceses ficará para trás para os tratar.

Art. X. Assim que as embarcações utilizadas para levar o exército para a França o tenham desembarcado nos portos especificados, ou em qualquer outro da França para onde as condições do mau tempo as tivessem forçado a dirigir-se, dar-se-ão todas as facilidades para regressarem à Inglaterra sem demora, e com a garantia de não serem capturadas até alcançarem um porto amigável.

Art. XI. Os franceses concentrar-se-ão em Lisboa e dentro dum raio de duas léguas de distância da cidade. Os ingleses aproximar-se-ão até à distância de três léguas da capital, e colocar-se-ão de maneira a manter cerca duma légua de distância entre os dois exércitos.

Art. XII. As fortalezas de Elvas, Almeida, Peniche e Palmela render-se-ão assim que chegarem as tropas britânicas para ocupá-las. Entretanto, o General em Chefe do exército britânico notificará a presente Convenção às guarnições daquelas praças, tal como às tropas que estão diante delas, para que cessem todas as hostilidades futuras. A ocupação de Lisboa e dos fortes de S. Julião e do Bugio, juntamente com os outros fortes de defesa do Tejo, ocorrerá quando a segunda divisão do exército francês embarcar. Assim que se troquem as ratificações, as tropas britânicas tomarão posse do forte de Cascais e dos outros fortes à direita de S. Julião.

Art. XIII. Os transportes destinados para o embarque e aqueles navios de guerra que possam ser necessários para esse serviço serão imediatamente admitidos no Tejo.

Art. XIV. Ambas as partes nomearão comissários para regular e acelerar a execução das disposições acima acordadas.

Art. XV. No caso de se levantarem dúvidas sobre o sentido de algum artigo, este será explicado a favor do exército francês.

Art. XVI. A partir da data da ratificação da presente Convenção pelos Comandantes em Chefe de mar e terra, todas as contribuições ou requisições da parte do exército francês cessarão em Portugal.

Art. XVII. Todos os súbditos da França, ou de potências amigáveis ou aliadas à França, domiciliados em Portugal ou acidentalmente neste país, serão protegidos. A sua propriedade de todo o género, móvel ou imóvel, será respeitada, e eles terão a liberdade para acompanhar o exército francês ou para permanecer em Portugal. Em qualquer dos casos, as suas propriedades serão garantidas, com a liberdade de a reterem ou de a venderem, e passarem o seu rendimento para a França ou para qualquer outro país onde queiram fixar a sua residência, sendo-lhes permitido para este fim o prazo de um ano.

Art. XVIII. Nenhum português será chamado para prestar contas pela sua conduta política durante o período que o exército francês ocupou este país. E todos aqueles que continuaram no exercício das suas funções, ou aqueles que aceitaram empregos debaixo do Governo francês, ficam debaixo da protecção dos comandantes britânicos; as suas pessoas ou propriedades não sofrerão injúrias, pois eles não puderam optar entre ser ou não obedientes ao Governo francês. Também ficam em liberdade de se aproveitarem das estipulações do artigo XVII.

Art. XIX. Os prisioneiros espanhóis detidos a bordo dos navios no porto de Lisboa serão entregues ao General em Chefe do exército britânico, que se compromete a obter dos espanhóis a restituição daqueles súbditos franceses, tanto militares como civis, que possam ter sido detidos na Espanha, sem serem capturados numa batalha ou em consequência de operações militares, mas sim por ocasião das ocorrências do dia 29 do passado mês de Maio e dos dias imediatamente seguintes.

Art. XX. Estabelecer-se-á imediatamente uma troca de prisioneiros de todas as graduações que tenham sido capturados em Portugal desde que começaram as presentes hostilidades.

Art. XXI. Fornecer-se-ão mutuamente reféns para a garantia da presente Convenção até à sua completa execução.

Art. XXII. Permitir-se-á que o General em Chefe do exército francês mande um oficial à França com a notícia da presente Convenção. Enviar-se-á uma embarcação, fornecida pelo Almirante britânico [Charles Cotton], para levá-lo a Bordeaux ou a Rochefort. 

Art. XXIII. O Almirante britânico será solicitado a acomodar Sua Excelência o Comandante em Chefe e os outros oficiais principais do exército francês a bordo dos navios de guerra [britânicos].

Dado e concluído em Lisboa, a 28 de Agosto de 1808.


George Murray, Quartel-Mestre-General

Kellermann, General de Divisão





Artigos adicionais à Convenção de 28 de Agosto


Art. I. O Tenente Coronel Murray admite ter sido avisado que o artigo XVII tem em vista particularmente os súbditos de Sua Majestade Dinamarquesa [Frederick VI, sobrinho de George III da Grã-Bretanha], e considera que as estipulações de tal artigo serão aplicadas a eles em toda a sua extensão.

Art. II. Os indivíduos com cargos civis no exército [francês] que tenham sido aprisionados pelas tropas britânicas ou pelas portuguesas, em qualquer parte de Portugal, serão restituídos, como habitualmente, sem troca.

Art. III. O exército francês subsistirá através dos seus próprios provimentos até ao dia de embarque; as guarnições, até ao dia da evacuação das fortalezas. O resto dos provimentos será entregue, na forma usual, ao Governo britânico, que se encarrega da subsistência dos homens e cavalos do exército [francês], desde os períodos acima mencionados até à sua chegada à França, debaixo da condição de serem reembolsados pelo Governo francês pelo excesso da despesa em relação à estimativa, que será feita por ambas as partes a partir do valor dos provimentos entregues ao exército britânico.

Art. IV. O General Comandante das tropas britânicas tomará as medidas necessárias para se reestabelecer a livre circulação dos meios de subsistência entre o país e a capital.

Art. V. Se se achar necessário empregar embarcações dinamarquesas ou de qualquer outra nação para levar o exército francês, em assistência dos transportes britânicos, aquelas deixarão os portos da França, da mesma forma que estes últimos, assim que o desembarque se efectue. Tais embarcações não serão detidas na França por qualquer pretexto que seja, e desfrutarão da mesma vantagem estipulada para os navios ingleses, de regressarem a um porto amigável sem serem incomodadas.

Dado e concluído em Lisboa, a 28 de Agosto de 1808.


George Murray, Quartel-Mestre-General

Kellermann, General de Divisão




Nota: 

No dia 22 de Agosto, depois da derrota decisiva do exército francês na batalha contra o exército anglo-luso ocorrida no dia anterior, Junot enviou o General Kellermann ao Quartel-General britânico no Vimeiro para tentar pedir uma suspensão de armas. Esta foi concedida, através dum armistício temporário assinado nessa mesma tarde, com a condição de que, durante esse período, seria acordada uma convenção definitiva para o exército francês abandonar Portugal. Como a negociação desta convenção dependia do parecer do Almirante Charles Cotton, Comandante da frota britânica estacionada na barra do Tejo, foi enviado ao seu encontro o Tenente-Coronel George Murray, que ocupava o cargo de Quartel-Mestre-General do Estado-Maior do exército britânico, a fim de lhe comunicar o conteúdo do dito armistício. Charles Cotton negou-se a concordar com os termos de tal tratado, pelas precisas razões que expôs num ofício ao General Dalrymple datado de 23 de Agosto*

Na noite de 24 de Agosto, George Murray regressa ao Quartel-General britânico (que se transferira para o Ramalhal), onde comunicou ao General Dalrymple o resultado das suas conversações com Cotton. Na manhã seguinte, Dalrymple enviou Murray para Lisboa, para comunicar a Junot que o armistício tinha chegado ao fim (dentro do devido prazo de 48 horas, conforme o seu artigo IX), em virtude de Cotton se ter recusado a ratificar alguns artigos do dito acordo. No entanto, ao mesmo tempo, Dalrymple deu autorização a Murray para entrar em negociações sobre os restantes artigos, caso Junot concordasse, sendo em tal caso alargada a suspensão de armas para um prazo definitivo. Na noite de 26, chega ao Quartel-General britânico um oficial francês com cartas de Murray e de Junot, motivadas pela incompreensão de qual seria o anunciado prazo definitivo. Wellesley esclarece então Murray, através de uma carta, que o prazo seria alargado por mais 24 horas. 
Finalmente, no dia 28 de Agosto, é assinada em Lisboa a Convenção acima traduzida. Na manhã seguinte, regressava ao Quartel-General do exército britânico (ainda no Ramalhal) o Capitão Dalrymple (filho do próprio General em Chefe Dalrymple, e seu secretário militar), que tinha partido para Lisboa com George Murray, trazendo consigo uma cópia desta Convenção. Apesar de trazer o título de "Definitiva", esta Convenção não chegou a ser ratificada pelo General Dalrymple, em virtude das várias objecções apresentadas por um conselho militar composto por alguns dos Generais seus subordinados. Wellesley, presente nesta reunião, minutou as alterações que deveriam ser feitas à Convenção, cuja lista foi enviada imediatamente para George Murray, que permanecera em Lisboa. Apesar de tais alterações só poderem chegar à capital no dia seguinte, devido à distância do percurso, ao meio-dia do mesmo dia 29 de Agosto o Quartel-General britânico avançava para Torres Vedras, pois já tinha terminado o prazo definitivo da suspensão de armas. Entretanto, o exército francês recuara em direcção a Lisboa, e não voltaram a ocorrer novos confrontos.

Alterada em vários pontos (inclusive alguns que não tinham sido sugeridos previamente) em relação à primeira, a versão final da Convenção Definitiva, erroneamente conhecida como Convenção de Sintra, foi finalmente assinada (em Lisboa) por Murray e Kellermann no dia 30 de Agosto, sendo ratificada no mesmo dia por Junot. Na manhã seguinte, Murray chegou ao Quartel-General britânico (ainda em Torres Vedras), trazendo consigo uma cópia deste acordo. Dalrymple convocou imediatamente os Generais Harry Burrard, John Moore, John Hope e Mackenzie Fraser (Wellesley não esteve presente pois tinha entretanto avançado com parte das tropas britânica) e, na sua presença e com a aprovação de todos, ratificou a Convenção Definitiva, que, ao ser publicada na Inglaterra a 16 de Setembro, viria a provocar uma gigantesca onda de indignação por todo o país (pois parecia que tratava como vitorioso um exército que tinha sido humilhado em três distintas ocasiões, conforme se tinha publicado pouco antes, mais precisamente a 3 de Setembro), o que por sua vez viria a motivar que o Governo britânico mandasse regressar os principais envolvidos para prestarem contas acerca do sucedido.



* Repetimos que Dalrymple tinha sido nomeado General em Chefe das forças britânicas destinadas a operar na Península Ibérica (com o General Harry Burrard como segundo no comando), facto que lhe foi comunicado a 15 de Julho. Esta informação chegou a Gibraltar, praça que governava desde 1806, no dia 8 de Agosto (ao passo que Wellesley começara a desembarcar as suas forças em Lavos no dia 1 do mesmo mês), tendo Dalrymple partido cinco dias depois. No dia 19 alcançou a barra do Tejo, onde se comunicou com Charles Cotton (que ainda desconhecia que tinha ocorrido uma batalha na Roliça dois dias antes), e sendo então informado sobre a posição que era ocupada pelas tropas de Wellesley, partiu para a praia do Porto Novo (a oeste do Vimeiro), onde desembarcou na manhã do dia 22, sendo a sua chegada antecedida, na tarde anterior, pela de Sir Harry Burrard (que partira da Inglaterra). Conforme as ordens do Governo britânico, e devido a estas chegadas sucessivas, o comando do exército britânico passou por três distintas mãos em menos de 24 horas. Para cúmulo, Kellermann dirigiu-se ao Quartel-General britânico, como acima se mencionou, poucas horas depois da chegada de Dalrymple, General sem grande experiência em campanhas militares (o cargo de General em Chefe com que tinha sido incumbido era justificado sobretudo pela habilidade que revelara nas negociações que tinha travado, nos meses anteriores, com o General Castaños e com a Junta de Sevilha, não se podendo descurar algumas intrigas que ocorreram no seio do Governo britânico a este respeito, tal como foram reveladas no diário do General John Moore, terceiro no comando do mesmo exército).