sexta-feira, 25 de março de 2011

Decreto de Junot nomeando mr. Pepin de Bellisle de Corregedor mor da província da Estremadura (25 de Março de 1808)

Decreto de Junot nomeando mr. Lafond de Corregedor mor da província do Alentejo (25 de Março de 1808)

Decreto de Junot nomeando mr. Taboureau de Corregedor mor da província de Entre-Douro e Minho (25 de Março de 1808)

Decreto de Junot nomeando o barão de Quintela de Corregedor mor da província da Beira (25 de Março de 1808)

A deputação portuguesa enviada a Napoleão



Como atrás já inserimos uma notícia sobre a partida duma deputação portuguesa para a França, bem como uma carta do Conde da Ega a Godoy e uma outra do tesoureiro da Inquisição onde esse mesmo assunto era brevemente mencionado, julgamos oportuno aprofundar agora um pouco a origem desta deputação. 

Uma semana antes de Junot entrar em Portugal, mais precisamente a 12 de Novembro de 1807, Napoleão escreveu-lhe uma carta, onde entre outras medidas lhe ordenava que "fareis saber ao Príncipe regente que ele deve passar à França; esforçar-vos-eis que ele o consinta de bom grado. Dar-lhe-eis oficiais cuja missão aparente será escoltá-lo, mas que, na verdade, será para o guardar. [...] Fareis o mesmo a todos os que tenham direito ao trono e, sem demora e sem vexar ninguém, os fareis partir para Bayonne. [...] Convocareis os homens mais proeminentes e que vos possam inquietar, dando-lhes ordem para passarem a Paris. Todos devem esperar em Bayonne por novas ordens. [...] [Correspondance de Napoléon Ier - Tome XVI, Paris, Imprimerie Impériale, 1864, pp. 184-187 (n.º 13351)].


Já a 16 de Dezembro, duas semanas depois de ter entrado em Lisboa, Junot escrevia a Napoleão que "o que aqui chamam Conselho de Regência pediu-me autorização para enviar uma deputação a Vossa Majestade. Vou conceder-lha, e forma-la-ei com indivíduos de que desejo desfazer-me. Quando eles estiverem para partir, darei a Vossa Majestade informações a seu respeito" [Fonte: Jean-Andoche Junot, Diário da I Invasão Francesa, Lisboa, Livros Horizonte, 2008, p. 116].

Em Milão, logo após tomar conhecimento da entrada das tropas francesas em Lisboa e da fuga da família real para o Brasil, Napoleão escrevia a Junot no dia 20 de Dezembro, mandando-lhe "remover do país os príncipes da Casa [de Bragança], os generais portugueses de terra ou de mar, e os ministros ou pessoas que tenham suficiente consideração para poderem servir de pontos de coesão [contra os franceses]" [Fonte: Correspondance de Napoléon Ier – Tome XVI, Paris, Imprimerie Impériale, 1864, pp. 242 - 244 (n.º 13406)], voltando a repetir as mesmas ordens três dias depois: "que todos os príncipes, ministros e outros homens que se possam reunir [contra os franceses] sejam enviados para a França" [Fonte: Correspondance de Napoléon Ier – Tome XVI, Paris, Imprimerie Impériale, 1864, pp. 254 - 256 (n.º 13416)].

Em Lisboa, a 9 de Janeiro de 1808, ao receber estas ordens, Junot respondeu que "não estava em Lisboa nenhum Príncipe da família real além do Duque do Cadaval, que era já de outro ramo; o irmão dele, que ficou mas não goza de qualquer consideração, será apesar disso enviado para Bordéus, bem como o Marquês de Abrantes e uns cinquenta homens mais salientes das primeiras classes, conforme Vossa Majestade ordena" [Fonte: Jean-Andoche Junot, Diário da I Invasão Francesa, Lisboa, Livros Horizonte, 2008, pp. 126-128].

Entre as várias cartas que Junot teria então escrito a esses cinquenta homens mais salientes das primeiras classes, convidando-os a fazerem parte desta deputação, encontra-se a seguinte, remetida no dia 23 de Fevereiro a D. Francisco de Lemos, Bispo de Coimbra e Reitor da Universidade:


Senhor: 
A Regência mostrou-me o desejo de enviar uma Deputação a Sua Majestade o Imperador e Rei meu Amo, e esta resolução foi-me expressa por todas as classes do Reino. Sua Majestade consente e aprova a lista que lhe remeti, na qual fazeis parte. Por consequência, Senhor, procedereis bem em tomar as medidas necessárias de maneira a vos encontrardes em Baiona entre os dias um e dez de Abril próximo, sendo que nessa cidade recebereis do Ministro das Relações Exteriores as instruções que regularão a vossa marcha posterior.  
Recebei, Senhor, a segurança da minha perfeita consideração. 
Junot 
[Tradução nossa dum excerto duma Resposta que, vindo da França, fez o Bispo de Coimbra D. Francisco de Lemos a S. Alteza Real, o Príncipe Regente, Nosso Senhor, assente num caderno manuscrito e publicada parcialmente no artigo de António Manuel Hespanha, “Sob o signo de Napoleão. A Súplica constitucional de 1808”, in Almanack Braziliense, Maio de 2008, pp. 80-101, p. 81].


Finalmente, a 8 de Março, Junot informava Napoleão que "terei a honra de enviar a Vossa Majestade pelo primeiro correio a lista das pessoas mais salientes do país que enviarei à França. Partirão por estes dias, e deverão estar em Bayonne a 10 de Abril, o mais tardar. Estão prevenidos de que receberão nessa cidade novas instruções da parte do Ministro das Relações ExterioresDei ao seu envio a forma de uma deputação, sem que nenhum deles fosse de má vontade, e enviá-los à força seria, de certeza, causa de algum acontecimento que eu julguei dever evitar, pois satisfazia ao mesmo tempo as intenções de Vossa Majestade" [Fonte: Jean-Andoche Junot, Diário da I Invasão Francesa, Lisboa, Livros Horizonte, 2008, pp. 149-150].


Parece que o Bispo Inquisidor Geral do Reino foi um dos primeiros a partir para a França (tendo deixado Lisboa no dia 10 de Março), enquanto outros o seguiriam nos dias seguintes. 


Num momento mais oportuno indicaremos os resultados das suas conferências com Napoleão e seus ministros. 



Concluímos por agora com Acúrsio das Neves, que assentou que estava "premeditado ainda antes da invasão o [projecto] de tirar de Portugal todos os parentes da Casa Real e as pessoas de maior consideração, e conduzi-las ao interior da França, para ficarem servindo de reféns ao usurpador. A ideia de uma deputação, que é muito do seu gosto e andava na forja havia muitos tempos, serviu agora para facilitar a primeira remessa. 
Foram nomeados para irem cumprimentar o Imperador dos franceses da parte da nação portuguesa (e a nação não o soube senão quando os viu partir) da ordem do clero o Bispo de Coimbra, o Inquisidor Geral e o Prior-mor da Ordem de Avis; da nobreza o Marquês de Penalva, o Marquês de Marialva (este já se achava em França), o Marquês de Valença, os Marqueses de Abrantes pai e filho, D. Nuno Álvares Pereira de Mello (irmão do Duque de Cadaval ausente no Brasil), o Conde do Sabugal, o Visconde de Barbacena e D. Lourenço de Lima, o mesmo que tinha sido embaixador em França; do senado da Câmara os desembargadores Joaquim Alberto Jorge e António Tomás da Silva Leitão. O parentesco com a Casa Real foi o que sacrificou o Marquês de Valença e D. Nuno; os Marqueses de Abrantes também não podiam ficar excluídos, por terem as honras de parentes. [...]
Os predestinados foram instruídos das suas nomeações por avisos da parte de Junot, anunciando-se-lhes juntamente que deviam achar-se em Bayonne entre 5 e 10 de Abril, que era o tempo em que ali devia chegar Napoleão. Todos o cumpriram, e oxalá que o prazo fosse mais demorado, [pois] achariam já vedado o trânsito pela Espanha. Inculcavam os avisos (mais uma impostura das que são muito familiares a esta gente) que a deputação tinha sido pedida pelos próprios portugueses; mas uma deputação nacional não pode ser pedida senão pela própria nação ou por algum corpo que a represente; a nação não a pediu, porque ignorava absolutamente o facto, e o abominou quando lhe foi conhecido; corpo que a represente não o temos; e ainda que como tal se quisesse considerar o Governo legítimo, esse achava-se suprimido.
Se a deputação fosse pedida pela nação ou por alguma autoridade que se arrogasse o direito de falar em nome dela, que alarde não faria Junot deste acto de vassalagem? Que assunto para a Gazeta de Lisboa e para todos os periódicos dependentes de Napoleão? E nesse caso a nação ou a autoridade que a tivesse pedido deveria também nomear os deputados. A verdade é que a deputação foi tão pedida pelos portugueses como o tinham sido as de tantos povos que têm concorrido para arrastarem o carro ensanguentado dos triunfos de Napoleão, e como pouco tempo depois a dos 150 espanhóis que também foram convocados a Bayonne, para irem, como se pretendia, destruir as bases do antigo edifício da monarquia espanhola.
Aos 14 que se chamavam deputados, ainda se ajuntaram mais algumas pessoas de consideração, que aumentaram o número destes infelizes prisioneiros, conduzidos pelos seus interesses, bem ou mal entendidos, ou pelo delírio de quererem viajar em tempos tão críticos; mas isto era somente um ensaio: a procissão devia ir continuando, se os acontecimentos da Espanha não lhe embargassem os passos" [Fonte: Accursio das Neves, História Geral da Invasão dos Francezes em Portugal - Tomo II, Lisboa, 1810, pp. 137-141].


Notícia sobre a partida duma deputação portuguesa e sobre uma festa a bordo do navio Vasco da Gama (25 de Março de 1808)


Lisboa, 25 de Março 

Saiu desta capital uma deputação para levar aos pés de Sua Majestade o Imperador dos franceses os votos e homenagens da nação portuguesa. Todos os que a compõem são pessoas distinguidas pelo seu nascimento, mérito ou carácter, como se verá pela lista seguinte: 

O arcebispo de Lisboa, inquisidor geral do reino; o arcebispo de Coimbra; D. Nuno Álvares Pereira de Melo, irmão do duque de Cadaval, um dos primeiros magnatas do reino, e de sangue real; os marqueses de Abrantes, pai e filho; o marquês de Penalva; o marquês de Valência; o conde de Sabugal; o conde de Lima, que foi embaixador em Paris; o visconde de Barbacena; o prior da Ordem de Avis; Mr. Braamcamp, negociante; e os senadores António Tomás de Silva Leitão, e Joaquim Alberto Jorge. 

Mr. Magendie, Capitão de navio e Comandante da marinha de Sua Majestade Imperial e Real, deu ontem uma esplêndida festa ao General em Chefe Junot, a bordo do navio Vasco da Gama, de 74 canhões. Foram convidados para ela todos os chefes do Exército, como também o Almirante russo Seniavin e um grande número de oficiais da sua esquadra. 

Havia uma soberba falua destinada para conduzir o General em Chefe e outras vinte pessoas para a sua comitiva. Quando o General chegou a bordo do navio, toda a guarnição estava armada, e uma orquestra militar, situada ao pé do mastro maior, esteve tocando enquanto Sua Excelência revistou as tropas, a marinha e as baterias. Em seguida, as três corvetas Benjamim, Gaivota e Curiosa executaram várias manobras ao redor do navio. 

Tinha sido preparada uma mesa para cem pessoas na câmara, que estava decorada com magnificência e adornada com o retrato de Sua Majestade o Imperador e Rei. Servida a sobremesa, o Almirante Seniavin brindou pelo Imperador Napoleão, e o General em Chefe respondeu com outro brinde pelo Imperador Alexandre. Estes dois brindes excitaram o mais vivo entusiasmo, e dispararam-se 21 tiros de canhão como salvas por um e pelo outro. 

Concluída a festa, em que os oficiais das duas nações deram as maiores mostras de afecto recíproco, e em que reinou uma alegria viva e franca, as corvetas voltaram ao seu porto de Belém. 



Decreto promovendo Lagarde a Intendente Geral da Polícia (25 de Março de 1808)





Em nome de Sua Majestade o Imperador dos franceses, Rei de Itália, Protector da Confederação do Reno, o General em Chefe do Exército de Portugal decreta: 

O Senhor de Lagarde é nomeado Intendente Geral da Polícia do Reino de Portugal. 

Suas funções são independentes das diferentes Secretarias de Estado; e ele trabalhará directamente com o General em Chefe. 

O Secretário de Estado dos Negócios do Interior e das Finanças [Hermann] está encarregado da execução do presente decreto, pelo que respeita às autoridades portuguesas, para fazer reconhecer o senhor de Lagarde em sua qualidade de Intendente Geral. 

Dado no Palácio do Quartel-General. 

Lisboa, 25 de Março de 1808. 

Junot 


[Fonte: Gazeta de Lisboa, n.º 14, 5 de Abril de 1808].


_________________

Nota: Sobre Lagarde ver o que aqui já ficou referido.

Considerações militares sobre as fronteiras de terra e de mar de Portugal, pelo Coronel de Engenharia Vincent (25 de Março de 1808)


O Coronel Charles-Humbert-Marie Vincent entrou em Portugal no final de 1807, como chefe do corpo de engenheiros do Corpo de Observação da Gironda (que depois tomou o nome de Armée de Portugal). Recordemos que mal chegou a Lisboa, Junot teve uma natural preocupação em ocupar as fortificações principais de defesa do Tejo, dado o receio dum ataque e desembarque dos ingleses, que se encontravam não muito distantes da foz do rio. Com a mesma preocupação, o referido corpo de engenheiros chefiado por Vincent começou então a orientar e a dirigir algumas obras de reparação e melhoria das fortificações costeiras, bem como ainda outras construções de baterias junto ao Tejo. 
Algum tempo depois, Vincent descobriu que um apetecível conjunto de documentação relativa à defesa do país estava na posse do Inspector Geral das Fronteiras e das costas marítimas, praças-fortes e pontos destinados à defesa do Reino. Vincent escreveu assim no dia 31 de Dezembro de 1807 requerendo toda essa documentação (que "interessava particularmente à tranquilidade e defesa do país") ao referido Inspector, o Marquês de la Rozière, emigrante francês que servia o exército português desde 1797. Doze dias depois, Vincent já tinha recebido a resposta do Inspector, que lhe enviara uma série de mais de cem mapas, plantas, memórias militares, cartas, itinerários, referentes às fronteiras costeiras e marítimas portuguesas. Depois da expulsão dos franceses em Setembro de 1808, muita desta documentação acabou por ir parar à França (servindo provavelmente para a preparação das duas seguintes invasões), onde ainda hoje se encontra. [Cf. António Pedro Vicente, "Para a História da Engenharia Francesa em Portugal - Aspectos da actuação do Coronel Vincent (1807-1808)", in O Tempo de Napoleão em Portugal - Estudos Históricos, Lisboa, Comissão Portuguesa de História Militar, 2000, pp. 237-251].

Pensamos assim que o documento de Vincent que em seguida se insere foi sobretudo fruto do estudo duma grande parte da documentação que lhe foi entregue pelo referido Marquês de la Rozière:










[Fonte: Simão José da Luz Soriano, História da Guerra Civil e do Estabelecimento do Governo Parlamentar em Portugal. 
Compreendendo a História Diplomática, Militar e Política deste Reino, desde 1777 até 1834 – Segunda Época - Tomo V – Parte II
Lisboa, Imprensa Nacional, 1893, pp. 57-63].

quinta-feira, 24 de março de 2011

Carta de Izquierdo a Godoy (24 de Março de 1808)




Atrás tínhamos indicado que depois duma rápida estadia em Aranjuez, Izquierdo regressou à França no dia 10 de Março. Já em Paris (onde teria chegado por volta do dia 20 do mesmo mês), depois das suas conversações com Talleyrand e Duroc, Izquierdo enviou a seguinte carta a Godoy, que contudo já não chegaria a recebê-la, dado que tinha sido preso cinco dias antes (informação que então ainda não tinha chegado a Paris). 
Esta carta (tal como provavelmente a carta do Conde da Ega atrás publicada) será recebida por Pedro Cevallos, Primeiro-Ministro e Secretário de Estado de Fernando VII (depois de tê-lo sido de Carlos IV).



A situação das coisas não permite referir com individualidade as conversações que desde o meu regresso de Madrid tive, por disposição do Imperador, tanto com o Grão-Marechal do Palácio Imperial, o General Duroc, como com o Vice-Grão Eleitor do Império, o Príncipe de Bénévent. Assim, limitar-me-ei a explicar os meios que me foram comunicados nestes colóquios para acordar e até para terminar amigavelmente os assuntos que existem hoje entre Espanha e França, meios esses que me foram transmitidos com o fim de que o meu Governo tome a mais pronta resolução acerca deles.  

Que existem actualmente vários corpos de tropas francesas na Espanha, é um facto constante. As consequências estão no futuro. Um acordo feito entre o Governo francês e o espanhol, com recíproca satisfação, pode deter os eventos, e elevar-se a um solene e definitivo tratado sobre as bases seguintes:  

Primeira base: Nas colónias espanholas e francesas comerciarão livremente o francês nas espanholas como se fosse espanhol, e reciprocamente o espanhol como se fosse francês nas francesas, pagando uns e outros os direitos que se paguem nos respectivos países pelos naturais. Esta prerrogativa será exclusiva, e nenhuma potência senão a francesa poderá obtê-la na Espanha, como na França nenhuma potência senão a espanhola.  

Segunda base: Portugal está hoje possuído pela França. A comunicação de França com Portugal exige uma rota militar, e também uma passagem contínua por Espanha para guarnecer aquele país e defendê-lo contra a Inglaterra. Há de causar muitos gastos e obstáculos, e talvez produzir frequentes motivos de desavenças. Poderia amigavelmente combinar-se este objecto, ficando todo o Portugal para a Espanha, e recebendo um equivalente a França nas províncias de Espanha contíguas a este Império.  

Terceira base: Acordar de uma vez a sucessão ao trono da Espanha.  

Quarta base: Fazer um tratado ofensivo e defensivo de aliança, estipulando o número de forças com que ambas as potências se hão de ajudar reciprocamente.  
Tais são as bases […] com que deve cimentar-se e elevar-se a tratado o acordo, como se indica, capaz de terminar felizmente a actual crise política em que se encontram a Espanha e a França. Em tão altas matérias eu devo limitar-me a executar fielmente o que me for dito. Quando se trata da existência do Estado, da sua honra e decoro, e do [decoro] do seu Governo, as decisões devem brotar unicamente do Soberano e do seu Conselho. Sem embargo, o meu ardente amor à pátria coloca-me na obrigação de dizer que nas minhas conversações fiz presente ao Príncipe de Bénévent o que segue:  
1.º Que abrir as nossas Américas ao comércio francês, é reparti-las entre a Espanha e o Império francês; que abri-las unicamente para os franceses, é (dado que não fique de uma vez destruída a arrogância inglesa) afastar cada dia mais a paz, e perder, até que se firme [o aludido tratado], as nossas comunicações e as dos franceses com aquelas regiões. Disse que ainda que se admita o comércio francês, não deve permitir-se que se avizinhem vassalos da França nas nossas colónias com desprezo das nossas leis fundamentais.  
2.º Em relação a Portugal, fiz menção às nossas estipulações de 27 de Outubro último; fiz ver o sacrifício do Rei de Etrúria, o pouco que vale Portugal separado das suas colónias, a sua nula utilidade para a Espanha, e fiz uma fiel pintura do horror que causaria aos povos próximos dos Pirenéus a perda das suas leis, liberdades, forais e língua, e sobretudo o passar a domínio estrangeiro. Acrescentei que não poderei eu firmar a entrega de Navarra, para não ser o objecto de execração dos meus compatriotas, como o seria se constasse que um navarro tinha firmado o tratado em que a entrega de Navarra à França estava estipulada. Finalmente, insinuei que se não houvesse outro remédio, poderia erigir-se um novo Reino ou Vice-Reino da Ibéria, estipulando que este Reino ou Vice-Reino não recebesse outras leis nem outras regras de administração que as actuais, e que os seus naturais conservassem os seus actuais forais e isenções. Este Reino ou Vice-Reino poderia dar-se ao Rei de Etrúria ou a outro Infante de Castela.  
3.º Tratando-se de fixar a sucessão de Espanha, manifestei o que o Rei nosso senhor me mandou que dissesse da sua parte, fazendo-o de modo que creio que ficam desvanecidas quaisquer calúnias inventadas pelos malévolos nesse país, e que chegaram a contaminar a opinião pública neste.  
4.º No que diz respeito à aliança ofensiva e defensiva, o meu zelo patriótico levou-me a perguntar ao Príncipe de Bénévent se se pensava em fazer da Espanha um equivalente à Confederação do Reno, e em obrigá-la a dar um contingente de tropas, cobrindo este tributo com o decoroso nome de tratado ofensivo e defensivo. Manifestei que nós, estando já em paz com o Império francês, não necessitamos de socorros da França para defender os nossos lares; que Canárias, Ferrol e Buenos Aires o testemunham; que África é nula, etc.  
Nas nossas conversações ficou já como negócio assente o do casamento. Terá efeito, mas será um acordo particular, do qual não se tratará no acordo sobre o qual se enviam as bases.  
Enquanto ao título de Imperador, que o Rei nosso senhor deve tomar, não há nem haverá dificuldade alguma. [O Príncipe de Bénévent] encarregou-me que não se deveria perder um momento em responder, a fim de precaver as fatais consequências a que pode dar origem a demora de um dia para pôr-se de acordo. 
Disse-me que se deve evitar todo o acto hostil e todas as movimentações que pudessem afastar o saudável acordo que ainda se pode fazer.  
Ao ser questionado se o Rei nosso senhor partiria para a Andaluzia, respondi a verdade: que nada sabia. Ao ser também questionado se eu julgava que ele partiria, respondi que não, dada a segurança em que se achavam (concernentes ao bom proceder do Imperador) tanto os Reis como Vossa Alteza.  
Pedi (uma vez que se medita um tratado), que enquanto se espera a resposta, se suspendesse a marcha dos exércitos franceses em direcção ao interior da Espanha. Pedi também que as tropas saiam de Castela. Nada consegui; mas presumo que se as bases vierem aprovadas, poderão as tropas francesas receber ordens para se afastarem da residência de Suas Majestades.  
Daí se escreveu que se aproximam tropas por Talavera para Madrid, e que Vossa Alteza me enviou um correio extraordinário. A tudo satisfiz, expondo com verdade o que me constava.  
Segundo se presume aqui, Vossa Alteza tinha saído de Madrid acompanhado os Reis até Sevilha; eu nada sei; e assim disse ao correio que vá até onde Vossa Alteza estiver. 
As tropas francesas deixarão passar o correio, segundo me assegurou o Grão-Marechal do Palácio Imperial.  
Paris, 24 de Março de 1808.  

Sereníssimo Senhor, de Vossa Alteza,  

Eugenio Izquierdo 




[Fonte: Cuenta dada de su vida política por Don Manuel Godoy, Príncipe de la Paz - Tomo V, Madrid, Imprenta de I. Sancha, 1838, pp. 492-504].


Novo edital da Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação referente ao pagamento do decreto de 1 de Fevereiro (24 de Março de 1808)


A Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação destes Reinos e seus domínios, não tendo recebido resultado algum das ordens precisas que passou aos corregedores de todas as comarcas do reino a respeito da contribuição extraordinária de guerra, havendo só alguns deles que fizeram perguntas, a que se lhes não pôde responder, sobre a inteligência das mesmas ordens, que foram concebidas com toda a clareza que permitiam as circunstâncias e a natureza do negócio; manda declarar que, cingindo-se todos ao teor da circular, guiados pelo artigo 1.º do decreto imperial e real, que a cada um deles foi remetido, procedam à derrama na forma prescrita no mesmo artigo, o qual a caracteriza: resgate de todas as propriedades, debaixo de quaisquer denominações que tenham. A taxa de todas as rendas, públicas ou particulares, deve ser 5 por cento no preço de um ano. Os prazos dos pagamentos estão assinalados no subsequente decreto do General em Chefe do exército francês em Portugal. É, portanto, desnecessário persuadir a actividade que exige a conclusão desta diligência, que já se mostra retardada. 
Para constar a todos, e se verificar a sua execução, se mandaram expedir os presentes editais. 
Lisboa, 24 de Março de 1808. 

Francisco Soares de Araújo e Silva 

[Fonte: Simão José da Luz Soriano, História da Guerra Civil e do Estabelecimento do Governo Parlamentar em Portugal. Compreendendo a História Diplomática, Militar e Política deste Reino, desde 1777 até 1834 – Segunda Época - Tomo V – Parte I, Lisboa, Imprensa Nacional, 1893, pp. 37-38].

terça-feira, 22 de março de 2011

Carta do Conde da Ega a Godoy (22 de Março de 1808)



Sereníssimo Senhor: 

Mui Señor meu e estimadíssimo amigo; esta qualidade deve conservar e aumentar a nossa confiança e jamais afrouxar em pessoas que, como nós, sabem ser constantes quaisquer que sejam as circunstâncias que ocorram. Nesta certeza estava eu, mas faltava-me contestação a uma carta que te escrevi pouco depois da retirada da família real desta capital; mas agora sei que fora desencaminhada e que não chegara à tua mão, e por isso continuo sem sossego a buscar-te por este meio, para assegurar-te a minha verdadeira amizade. 
Uma deputação composta das primeiras pessoas da nobreza portuguesa vai apresentar-se a Sua Majestade o Imperador dos franceses; o não ser designado membro dela me privou da grande satisfação que teria de ver-te nessa Corte; mas havendo nela ocupado «só» o emprego que exercitei junto de Sua Majestade Católica*, não me era próprio a concorrência de muitos, e esta, estou seguro, será a tua opinião. 
Aqui estou e aqui conservo a memória das distintas honras que Suas Majestades Católicas me favoreceram, e que farão o meu eterno reconhecimento; rogo-te** pois que a seus augustos pés ofereças os meus respeitos e os mais sinceros votos pela sua existência, paz e felicidades. A Condessa te pede juntamente [para que] queiras ter a bondade de dizer da sua parte a Sua Majestade a Rainha que ela tem presente na sua imaginação e impresso no seu coração todos os favores e distinções que sempre devera a Sua Majestade e muito mais às expressões lisonjeiras com que a honrou quando se separou ultimamente da Sua Augusta Presença, e que espera igualmente que Sua Majestade conserva aquela benevolência que a Condessa procurou constantemente merecer-lhe, e que toma a liberdade de assegurar a seus Reais pés que tem o maior pesar de que as circunstâncias políticas a fizessem separar dessa Corte, que considera como uma nova pátria. Estes são, meu amigo, os puros sentimentos de toda esta família. 
Um amigo grato, um coração sincero e uma amizade sem interrupção me fazem apreciar sempre o tempo que tive a satisfação de achar-me mais perto de ti; de quem protesto [=declaro] ser fiel e verdadeiro amigo e respeitoso q. t. m. b. 



[Fonte: Raul Brandão, El-Rei Junot, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, s.d. p. 155-156].


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Notas:

Previamente, o Conde da Ega tinha sido embaixador de Portugal junto da Corte espanhola. 

*É óbvio que esta carta foi escrita antes que o Conde da Ega tivesse tomado conhecimento da prisão de Godoy (ocorrida apenas 3 dias antes).


sábado, 19 de março de 2011

Aviso da Secretaria de Estado dos Negócios do Interior e das Finanças à Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação destes Reinos e seus domínios (19 de Março de 1808)



Sendo presente ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor General em Chefe do Exército de Portugal que o primeiro terço da contribuição extraordinária de guerra, pela parte que é cometida à Real Junta do Comércio, não só deixou de satisfazer-se no prazo assinalado pelo decreto do 1.º de Fevereiro […] passado, mas na sua arrecadação se prossegue com tal demora e vagar que não permite esperar [que] se conclua em termo razoável, o que é inteiramente alheio das intenções de Sua Excelência: 

Manda o mesmo Senhor General em Chefe declarar à dita Junta que até ao último dia deste mês deve achar-se entrado na Caixa geral da contribuição todo o referido terço; para cujo fim a Junta tomará as medidas oportunas, pedindo qualquer auxílio, ou providência que entender necessária; na certeza de que ao contrário será inevitável que o Governo lance mão de meios mais rigorosos, e que façam mais pesado o ónus da mesma contribuição. 

E para constar a todas as pessoas que são responsáveis, se afixaram editais. 

Lisboa, 19 de Março de 1808. 


[Fonte: Gazeta de Lisboa, n.º 12, 22 de Março de 1808].

Aranjuez, 19 de Março de 1808



Prisão de Godoy


Abdicação de Carlos IV e aclamação de Fernando VII


Gravuras de Zacarías Velázquez
[Fonte: Ilustración de Madrid (n.º monográfico «Dos de Mayo»), Ano III, n.º 7, Primavera 2008].

Proclamação do Comandante britânico Charles Cotton, dada a bordo do navio Hibernia, ancorado na foz do rio Tejo (18 de Março de 1808)



A todos os súbditos portugueses presentemente alistados no Exército e Marinha de Sua Alteza Real o Príncipe Regente, faz saber o Comandante em Chefe da Esquadra Britânica que actualmente bloqueia os portos de Portugal, que ele tem navios de transporte prontos sobre as costas para tomar a seu bordo todos os sobreditos súbditos portugueses e suas famílias, e lhes oferece o sagrado penhor da fé britânica para a promessa que dá, de os fazer transportar imediatamente aos portos do Brasil, donde passam a Seu Legítimo adorado Soberano. 

Se os transportes não fossem logo bastantes para acomodar todos os que quisessem embarcar, o Comandante em Chefe permite que fiquem repartidos pelos navios de sua esquadra, até que cheguem transportes bastantes ou, se parecer mais conveniente, os remeterá a Falmouth para ali serem embarcados para o Brasil sem perda de tempo. 

Hibernia, a dezoito de Março de mil e oitocentos e oito. 

Comandante Cotton 

[Fonte: Alberto Iria, A Invasão de Junot no Algarve (Subsídios para a História da Guerra Peninsular), Lisboa, Tip. Inácio Pereira Rosa, 1941, pp. 414-415 (doc. 292); No Arquivo Histórico Militar (1.ª div., sec. 14.ª, cx 182, doc. 83, fl. 7) existe um exemplar impresso desta proclamação, com algumas variantes em relação ao texto recolhido por Alberto Iria].




Relação circunstanciada da Revolução de Espanha, segundo o Correio Braziliense





[Fonte: Correio Braziliense ou Armazem Literario - Vol. I, Londres, Impresso por W. Lewis, 1808, pp. 10-14; p. 91].

Manifesto imparcial y exacto de lo mas importante ocurrido em Aranjuez... (atribuído a Juan de Arias)

Acontecimentos memoráveis do Reinado de Carlos IV desde o ano de 1806 até 19 de Março de 1808, relativos ao Príncipe da Paz



O seguinte texto provém dum manuscrito da época, da autoria de José de Ascutia, o Guarda Real várias vezes citado por Ronald Fraser. Trata-se de um texto anti-godoyista que oferece uma visão algo tendenciosa sobre os acontecimentos de Aranjuez, precedidos por uma pequena contextualização. Certas passagens do texto induzem-nos a pensar que teria sido escrito logo após os motins de Aranjuez, possivelmente antes mesmo dos franceses entrarem em Madrid (no dia 23 de Março). Por esse motivo, vale pelo testemunho da confiança cega que então muitos espanhóis depositavam em boatos e rumores sobre as intenções de Napoleão em relação à deposição de Godoy e ao suposto apoio a Fernando, Príncipe das Astúrias, agora Fernando VII. Como testemunho anti-godoyista, apesar de deixar transparecer várias incoerências e incongruências, revela que havia um plano da alta nobreza espanhola para forçar a destituição de Godoy, cuja ocasião perfeita foi dada no momento em que Carlos IV decidiu partir para Cádis ou Sevilha. 



Acontecimentos memoráveis do Reinado de Carlos IV 
desde o ano de 1806 até 19 de Março de 1808, 
relativos ao Príncipe da Paz 


Na grave doença que padeceu Carlos IV no ano de 1806, Soler fez presente a Sua Majestade que era necessário fazer um testamento. Convencido disto, [Carlos IV] disse que esta disposição seria ordenada pela Rainha e pelo Príncipe da Paz, os quais assim o fizeram; e entre as suas cláusulas havia a seguinte: 

"Deserdo da Coroa o meu filho mais velho, D. Fernando, por [ser] fátuo; e pela menoridade do meu filho o Infante D. Carlos, nomeio o Príncipe da Paz como regente do Reino".

Uma boa pessoa que tomou conhecimento desta negociação artificiosa, participou-a sigilosamente ao Príncipe das Astúrias. Este, vencendo mil dificuldades, como carecia de liberdade escreveu uma carta ao cónego Escoiquiz, na qual lhe perguntava o que devia fazer nas actuais circunstâncias, ao ver-se tratado com o maior desprezo e tendo sido deserdado pelo seu pai, o que é que lhe aconselhava, como o esperava do seu carinho e talento. O cónego respondeu-lhe que aquilo requeria um conselho verbal, e doutro modo não podia responder-lhe. 

Continuou o Príncipe das Astúrias experimentando o maior rigor, sendo privando até de poder falar com o seu irmão Carlos. 

O Rei volta a ter o peito atacado em Janeiro de 1807, e vendo o Príncipe das Astúrias que o ocaso se aproximava, volta a escrever ao cónego, vencendo mil dificuldades para consegui-lo, e valendo-se do mesmo portador que tinha levado a carta anterior. Nesta nova carta, pressionava-lhe fortemente para que lhe desse o ditame. O cónego respondeu, dizendo-lhe que ele não era fátuo, e que estava jurado como Príncipe das Astúrias; e que pelas leis do Reino, não podia ser privado da Coroa; que procuraria falar com o duque del Infantado, a pessoa mais recomendável para o assunto, e de acordo com ele disporiam o que fosse conveniente. Através do mesmo portador que levava a carta, foi chamado o duque del Infantado. Este, tendo sido instruído, ordenou que o Príncipe das Astúrias lhe desse um decreto, nomeando-o General de Castela, e vários ofícios assinados em branco, para o duque preencher as nomeações, no caso de faltar o Rei, para fazer as eleições correspondentes para todas as Capitanias-Gerais e demais empregos entre pessoas idóneas, e outro decreto para prender o Príncipe da Paz. Este papéis foram conservados pelo duque, unidos ao seu próprio corpo, e assim foram salvos. 

Formado todo o plano pelo duque del Infantado e pelo cónego, determinaram prestar contas ao Imperador dos franceses, juntando uma carta do Príncipe das Astúrias, na qual lhe informava tudo o que tinha acontecido, mostrava-lhe o plano que estava feito e rogava-lhe que o protegesse, e que se o plano não estava bem feito, que [o Imperador] alterasse o que lhe parecesse [mais conveniente]. Esta carta foi para a Etrúria e daí em correio [...] para Paris através do marquês de la Romana, com conhecimento de O'Farril e da própria Rainha da Etrúria. 

Tendo isto transparecido nalguma parte, o Príncipe da Paz teceu intrigas, através do embaixador, para desacreditar O'Farril e Romana, e daqui principiou a revolução de Florença. O Imperador dos franceses, pelo mesmo portador, respondeu ao Príncipe das Astúrias, assegurando-lhe a sua protecção e que o plano estava muito bem formado. Neste estado deixa Napoleão este negócio, e parte para a Polónia, encarregando muito particularmente a Talleyrand acerca deste assunto, e sobre o que devia fazer se ocorresse alguma novidade na Espanha, e com o maior sigilo que tentasse ver se por algum meio podia conduzir o Príncipe das Astúrias a casar-se com algumas das pessoas reais daquela Corte [francesa]. 

O Príncipe da Paz, por algumas suspeitas que teve, escreveu a Izquierdo, que estava em Paris, para que procurasse tentar perceber se Talleyrand tinha correspondência com o Príncipe das Astúrias. Este intrigante finge com o ministro francês ser inimigo de Godoy e afeiçoado ao Príncipe das Astúrias; o ministro, de boa fé, disse supor que sabia já da íntima união do Imperador com o dito Príncipe das Astúrias. De boa fé, o ministro confiou-lhe algumas coisas, que foram bastantes para Izquierdo ter uma ideia. Este avisa o Príncipe da Paz que está perdido, pois o Imperador protege o das Astúrias. Quando Godoy recebeu esta carta, tentou sublevar o Reino, alucinar os Reis e declarar guerra à França, como de facto esteve algumas horas declarada, e se não tivesse sido Gil de Lemos, a declaração tinha sido levada a cabo. 
Volta o Imperador a Paris depois de tratada a Paz de Tilsit, fala com Talleyrand sobre a Corte de Espanha, e este conta e refere o episódio com Izquierdo. Penetra Napoleão na intriga, chateia-se com Talleyrand, e dispõe que se dirija a Madrid como embaixador o Ex.mo Sr. D. Beauharnais, a quem deu umas instruções muito particulares. Chama Izquierdo, e pergunta-lhe com que ordem se introduzia nos negócios de Estado, e este presta-lhe satisfações assumindo as ordens que tinha da sua Corte; não obstante, [Napoleão] manda-o sair imediatamente dos seus domínios. [Izquierdo] vem em diligência para Madrid, e diz a Godoy que está perdido, que o Príncipe das Astúrias tem a protecção de Napoleão, as tropas à sua disposição, e que se casa em Paris. De facto, adiou-se o casamento, houve mil dificuldades, e finalmente, depois da Rainha e Godoy terem resistido, respondeu-se afirmativamente.

Vendo Godoy que já não havia remédio, trama a atroz calúnia de difamação do Príncipe das Astúrias, com o fim de lhe cortar a cabeça ou pelo menos deixar-lhe desacreditado, quer para que não reinasse e para que a deserdação fosse levada a cabo, quer para que não se verificasse o casamento em Paris depois de estar  com esta nódoa. 

O Imperador, muito bem informado de todas estas tramas, tanto pelo duque de Frías como pelo embaixador, para preservar o Príncipe das Astúrias dos riscos que o ameaçavam, nomeou-o de Generalíssimo das tropas francesas e espanholas que se haviam de reunir para certos fins, para assim retirá-lo da Corte; ao que a sua mãe respondeu que não o queria para guerreiro.

Napoleão, quer pela palavra dada de protecção ao Príncipe das Astúrias, quer pela estima que sempre tem tido pela paz com a Espanha (e nestas actuais circunstâncias ainda mais), quer pela penetração na bastarda conduta de Godoy, da qual tinha os maiores testemunhos pela correspondência que tinha interceptado com os ingleses, [...] vê-se obrigado a mandar as suas tropas para a Espanha, e a vir pessoalmente derrubar este colosso, aparentando outros desígnios para que não se lhe escapasse. 

Vendo o traidor que todas as suas maquinações estavam descobertas, apela à última para pôr-se a coberto do tecido de maldades que a sua vida envolve, ao que muito contribuiu a muita vontade do Rei, que julgava que Manuel era impecável, chegando a tanto a confiança de Sua Majestade, que se o embaixador da França não o pedisse no próprio acto da prisão, a pessoa do Príncipe das Astúrias tinha sido decapitada, como igualmente teria se não tivesse intervido na causa que se lhe tinha formado um atroz sumário que teria privado da vida muitos homens verdadeiramente ilustres e virtuosos, não tendo bastado nem a clareza com que o Infante D. António falou ao seu irmão [Carlos IV] para desfazer a falsa impressão que tinha formado, nem outras várias sessões[?], tendo chegado a tal a cegueira do tirano, que fez o fiscal Viegas assinar sem ler a resposta na qual lhe pedia monstruosidades. Obrigado à França por tudo! Os espanhóis, muito capazes de qualquer obra grande, estavam atados, não podiam respirar, e assim, quando viram um pouco de claridade, empreenderam a brilhante acção que ocorreu por consequência desta última trama, e é como se segue: 

Dado tudo o que anteriormente foi dito (e manifestado nos papéis públicos), tentou Godoy abandonar este Reino à sorte. Tratou com os ingleses para lhes entregar algumas praças de Espanha e a esquadra de Cartagena, dispôs-se a levar consigo para a América os velhos Reis, e na confusão que daqui infalivelmente resultaria, extinguir o resto dos Borbons. 

Para realizar este iníquo plano, deu, como [chefe] absoluto do Governo, todas as ordens oportunas para o desígnio: repartiu o seu quantioso tesouro nos bancos da Europa [...]. Ordenou que o exército que estava em Portugal, passasse rapidamente, sem ordem do Rei, a Toledo, a fim de entreter o exército francês, obrigando-o a opor-se e empenhando-o tanto com este exército como com as tropas inglesas e as argelinas (que tinham combinado com a Inglaterra), qu entrariam na Espanha apoderando-se de Ceuta e Cádis; e entretanto Godoy fugia com os velhos Reis. Igualmente meditava coroar-se no México, ou imediatamente, como ficou manifestado quando foram encontradas (segundo se afirma) moedas cunhadas em seu nome como Rei de Espanha e Imperador do México*, ou somente depois de mortos os velhos Reis. 

Não pôde dispor este plano sem que se apercebessem tanto os leais espanhóis como a Corte da França, que era contrário a outros fins anteriormente concertados pelas duas Cortes. Ordena Napoleão para que os exércitos se dirijam à Espanha para estorvar esta cruel cena, separar Godoy do Governo e coroar Fernando VII. Os Generais e as tropas francesas ignoravam qual era o objectivo principal que tinham. [Napoleão] deu ao embaixador que residia na Corte de Espanha as ordens convenientes para tudo, instruindo-lhe até ao mais ínfimo pormenor. Ao Almirante da esquadra francesa que estava no porto de Cádis deu-lhe ordens para não permitir, mesmo que isso implicasse sacrificar a sua esquadra, que saísse do dito porto embarcação alguma. Toda esta inaudita maldade [isto é, o plano de fuga de Godoy] estava combinada entre Godoy e os ingleses para o dia 27 de Março; estava também composta a proclamação que fariam os velhos Reis, da urgente necessidade de saírem da Espanha para salvar as suas vidas da ira dos franceses, que enquanto isto não se acalmava e voltassem ao seu trono, deixavam como regente em Espanha o Ex.mo Sr. Duque de Almodovar del Campo [irmão de Godoy]. Foi já depois de organizado este suposto plano, sem esperar outra coisa do que a chegada do referido dia 27, assinalado pelos ingleses, que Godoy o propôs ao Rei (com quem contava como coisa segura), quando já tinha armado todo o Reino espanhol contra os franceses, espalhando rumores vis e vagos que a sua malignidade fazia publicar, dando ordens e contra-ordens para desconcertar os franceses.  

Nestas circunstâncias, (pela providência de Deus) foi desfeita toda esta máquina, por uns poucos vassalos leais e fiéis militares organizados pelos grandes do Reino, apoiados no sempre recomendável Conselho de Castela, sem que os franceses tenham tido mais arte nesta gloriosa acção do que terem provocado a antecipação do projecto pela entrada das suas tropas, tanto pelo medo que teve o tirano, desconcertando-lhe o movimento das tropas francesas, como pelos remorsos da sua péssima consciência. 
O conde de Teba estava em Portugal com o seu Regimento, sem poder entrar em Madrid por ser um dos desterrados. O duque del Infantado encontrava-se em Écija cumprindo o seu desterro. Por certa pessoa foi este último instruído de toda a maquinação, a fim de que, como cabecilha de toda esta história, desse as ordens oportunas. Pensou sobre qual sujeito seria mais apropriado para executar o que tinha meditado. Elege [o conde de] Teba e manda chamá-lo a Portugal; Teba vem imediatamente a Écija em diligência, e apresenta-se ao duque del Infantado, que pergunta-lhe se se atrevia a ir a Madrid para dar parte ao Conselho da trama que estava urdida e reunir toda a grandeza para impedir a saída dos Reis de Espanha. Responde-lhe Teba que se atrevia, e recebendo as instruções de Infantado, disfarça-se em traje de manchengo [natural de La Mancha] e parte para a Corte em diligência. Com aquele traje vai à casa de Sierra, fiscal do Conselho, e diz-lhe que é necessário que o Conselho se reúna, e que se oponha a todo o plano que medita Godoy. O fiscal responde-lhe que juntar o Conselho é o menos, mas para que formule um decreto é necessário que se faça uma representação na qual se exponha tudo o que ele dizia. Sierra pergunta-lhe se via algum inconveniente em que se fizesse a representação em seu nome, ao que Teba respondeu que não o via, e nem mesmo em apresentar-se pessoalmente ao Conselho. Ali fez-se a representação, e ali a jurou Teba. Com isto se convocou o Conselho, que foi perfeitamente instruído pela representação, e decretou com firmeza que não tendo o Rei motivos para sair de Espanha, não se lhe permitiria de modo algum a saída. 
O manchego [conde de Teba], tendo recolhido o decreto do Conselho, convocou uma junta de grandes de Espanha, à qual concorreram 19. Concordaram e comprometeram-se todos com as suas rendas e pessoas não só a impedir a saída dos Reis, mas também a aniquilar o traidor Godoy; acordaram igualmente que era indispensável que alguém se dirigisse ao sítio para entregar a representação e o decreto do Conselho ao Rei. Nisto houve muitas dificuldades, mas resolveu-se que fosse o marquês de Castelar, o qual partiu e falou com o Rei, cujo medo que tinha dos franceses se desvaneceu, e cujo resultado foi a proclamação que trouxe a Gazeta**. 
Neste mesmo dia 13 pela tarde, voltou Godoy ao sítio, propôs aos Reis que era preciso sair para Cádis ou Sevilha para estarem mais próximos para o embarque, que assim convinha para evitar que Napoleão lhes usurpasse o trono, pois aproximava-se a sua chegada, e as tropas estavam já em cima. O Rei respondeu a isto não só manifestando-lhe o decreto do Conselho mas também lendo-lhe uma carta de Napoleão na qual lhe dizia que vinha à Espanha para o seu bem. Pede o traidor ao Rei que junte ali mesmo um Conselho, que Sua Majestade veria como o que ele propunha era conveniente, e que não devia ter confiança nem na carta de Napoleão, nem no decreto do Conselho; e que ele amava o seu Rei. Formou-se um Conselho com os ministros patriarcas e outros, à excepção do Ministro da Guerra e de Caballero, que estavam passeando, e pelo Conselho determinou-se a fuga, assinando todos a resolução. 
A assinatura de Caballero era indispensável para a solenidade desta determinação. Godoy recolheu os papéis para que Caballero os assinasse na noite daquele dia 14. Ao entrar [no Palácio] Caballero, vindo do passeio, encontra Godoy, que lhe diz "tem ali aqueles papéis, assine-os que tem ali um tinteiro". Caballero disse-lhe que não os assinava sem ler, e impôs-se. [Disse Godoy:] "pois bem, leia-os Vossa Mercê, e eu espero ali". Caballero aproximou-se dum candeeiro que estava por perto, e ficou a lê-los; [depois,] volta-se para Godoy, e diz-lhe que não assinava, e [perguntando] quem tinha aconselhado o Rei (desentendendo-se que tinha sido ele) a semelhante traição e vileza, que aquilo era enganar o Rei sacrilegamente e que, assim, ali tinha os papéis [não assinados]. Godoy, que encontrou esta resposta com um valor e firmeza como jamais tinha experimentado, saca da espada, mas antes que a acabasse de desembainhar, já lhe tinha posto Caballero uma pistola junto ao peito, dizendo-lhe que se acabasse de sacar a espada, acabaria com a sua vida com um tiro. Deteve-se Godoy, e com a disputa sobre a assinatura, chegam ao quarto do Rei. Godoy, cheio de cólera, vendo-se desobedecido e ultrajado em termos que jamais poderia ter imaginado, queixou-se ao Rei de que Caballero não queria assinar o que tinha sido acordado por Sua Majestade e pelo Conselho. O Rei censurou docemente Caballero, perguntando-lhe que motivos tinha para não assinar, ao que respondeu ele que amava verdadeiramente a Sua Majestade, que não era falso traidor como era o que lhe tinha aconselhado um absurdo como o que lhe tinham proposto, que não havia porquê temer os franceses, como muito bem constava a Sua Majestade, ao Conselho de Castela, e à maior parte da nação, e que não havia a menor suspeita para uma tão atroz determinação; e voltando-se para Godoy, disse-lhe que "quando Caballero diz que não convém uma coisa, é porque sabe o que diz e porque pode sustentá-lo; e assim, antes darei a vida com gosto, do que assinar a maior maldade que se inventou". Vendo o Rei esta discórdia, e convencido por Caballero, mandou ali mesmo juntar o Conselho por uma segunda vez, cujos membros foram convocados. Caballero foi o primeiro a faltar, e dirigindo a sua palavra ao Rei, disse: "Senhor, já é tempo de falar abertamente a Vossa Majestade; as tristes circunstâncias que nos rodeiam o requerem. O senhor (apontando para Godoy) é um traidor, é quem formou esta trama para os seus fins particulares, a vida do sr. é esta"; e fez ao Rei um retrato muito vivo de Godoy, e volta-se para ele ainda conservando o calor que pelo episódio antecedente se pode calcular, e disse "se Vossa Mercê quer partir, vá, que é um favor que faz ao Reino. Você não sabe o que é um Reino, não sabe mais do que entrar e sair do Palácio". Com isto, os demais ministros tomaram asas e disseram ao Rei o que tinham calado durante mais de 15 anos. Sua Majestade, completamente confuso, mandou que imediatamente se consultasse o Conselho de Castela. Mandou Caballero consultá-lo, que chegou a Madrid no dia 15 de Março às 9 da manhã.  
Juntou-se o Conselho imediatamente, e às 3 da tarde, concluiu-se já quase com as rédeas do Governo nas suas mãos, determinando repetir o decreto anteriormente referido, que se despachou em seguida, mandando o Conselho por si que as tropas de Madrid fossem ao amanhecer ao sítio para impedir qualquer alvoroço. Decretou igualmente a prisão do Príncipe da Paz, entregando este decreto ao marquês de Castelar, fundando-o o Conselho no conhecimento que já tinha de tudo desde a primeira representação que lhe foi feita. 
O manchego [conde de Teba], ao ter tido conhecimento de que na noite do dia 15 tinha Godoy voltado ao Palácio, e com novas intrigas feito vacilar ao Rei, e quase convencendo-o; e entre as muitas coisas com que intimidava Sua Majestade, era que a Corte de Madrid estava sublevada contra ele, e como [Teba] não duvidava que o Rei, apesar do que se tinha passado, havia de seguir o ditame de Godoy, dispôs juntamente com Castelar para que este fosse a Madrid formar uma junta sob a determinação do Conselho, enquanto aquele ia convocar gente em seu auxílio, e para que tudo fosse disposto do melhor modo.  
Teba, disfarçado, dirigiu-se a todas as povoações da comarca, fingindo ser uma vez de tal parte, e noutras vezes de outra, e que vinha pedir que os leais manchegos [naturais de La Mancha] o acompanhassem para impedir que os Reis fugissem e os deixassem desamparados; com estas proposições, trouxe consigo até os velhos, determinados a morrer antes de permitirem que Suas Majestades se fossem embora. Ao regressar desta expedição, já estava ali Castelar, e determinaram não só exigir palavra de honra mas também juramento formal aos chefes das tropas convocadas a defender a saída dos Reis, e não somente não obedecer às ordens do Generalíssimo [Godoy], mas também prendê-lo pelo decreto do Conselho de Castela, que Castelar já tinha entregado ao manchego, depois da consulta feita pelo Rei no dia 15. No dia 16 estava já Godoy completamente desconcertado, e naquela noite volta ao Palácio, e forma as últimas tropas, pois na noite do dia 17 levaria os Reis ocultos, e juntos fugiriam; para cujo fim comunicou as devidas ordens, para que no mesmo dia partissem (como se verificou) a Tudó, [o padre] Duro e outros, para se reunirem em Cádis. Neste momento, tudo estava já bem claro para o Conselho e para os grandes, que tinham previsto todos os pontos, e nada se lhes escapava. 
Chega com efeito a noite de 17, na qual devia realizar-se o último dos atentados, e em que tudo estava disposto, tanto por parte do Almirante [Godoy] para a sua fuga, como da parte dos opositores deste horroroso desígnio. 
Por volta da uma da madrugada dispara-se uma pistola dentro do Palácio Real, e logo a seguir saiu o Príncipe das Astúrias com uma luz do seu quarto, acompanhado de alguns guardas que diziam "traição, traição"; seguem-no outros muitos; deixou todas as portas do Palácio bem custodiadas, para não deixar sair pessoa alguma, voltando depois ao seu quarto. Os paisanos e a tropa que estavam na parte de fora acudiram prontamente ao ouvir o tiro, cercaram o Palácio e aumentaram as guardas nas suas portas, no lado de fora, ficando de tal modo que que nem por portas nem varandas podia escapar quem tentasse sair. Depois deste alvoroço, uma guarda de honra que se dirigia a uma porta falsa do Palácio Real, teve contestações e contendas com outras guardas valonas que estavam antecipadamente a guardar a dita porta. A este barulho acudiu o manchego [conde de Teba], com um grande número de paisanos, que se lançaram à guarda de honra (comandada por Osório, que era carabinero) com paus e pedradas, arrojando-os e perseguindo-os até à porta do Palácio de Godoy. Este foi cercado imediatamente, saindo à sua porta D. Diego Godoy aos gritos, mandando a tropa da guarda abrir fogo; põe-se à frente o chefe das guardas valonas que ali iam e diz a [Diego] Godoy que se a sua tropa abre fogo a sua também o fará, mas que ele não traz a sua tropa para fazer isso, a não ser para aqueles que resistam e que se oponham às ordens que tem. Volta D. Diego a mandar abrir fogo, e o oficial da sua guarda, longe de obedecer, manda descansar sobre as armas, não podendo conter o impulso dos paisanos; atropelam estes a guarda de honra, entram no Palácio, D. Diego resiste e manda usar as armas; dão-lhe duas fortes pancadas com a culatra, atiram-no ao chão, e levam-no ao quartel, mas da guarda espanhola; aqui não o querem receber, e mandam-no ao das valonas. 
A tropa e a paisanagem passam a revistar todo o Palácio, em busca do Príncipe da Paz; não o encontram, mas sim a Princesa, em trajes menores. O manchego [conde de Teba] diz-lhe para não se assustar e para se vestir; e com toda a honra levam-na ao Palácio Real e entregam-na aos Reis, sem se terem apresentado a estes mais do que os manchegos, deixando entretanto tudo bem custodiado, para que não fugisse o réu. No dormitório da Princesa da Paz encontrou-se um papel do marido, em que a encarregava que tivesse cuidado com a sua filha, que ele, para salvar a vida, partia. 
Volta como um raio o manchego ao Palácio de Godoy, e vendo que não o encontrava, julga que fugiu, e apesar de ter tomado todos os caminhos e saídas com a tropa e paisanos, põe-se a caminho de Ocaña. Aí apresenta-se ao Corregedor, pergunta-lhe se o conhece, e diz-lhe o Corregedor que não; dá-se a conhecer ligeiramente, e informa-o acerca do objectivo da sua comissão, do estado em se encontrava o sítio, e que era preciso assim que lhe dissesse se tinha passado por ali Godoy, ao que o Corregedor lhe afirmou que não, e que se necessitava gente, garantia que um grito bastaria para ter todo o povo armado. Disse o manchego que ele não queria alvoroço, e que se passasse por ali Godoy, que o prendesse porque havia ordem para isso, lendo-lhe o decreto do Conselho, que levava prevenido. E feita esta diligência não se apeou nem se deteve até chegar a Madridejos; e aí repete com o alcaide as mesmas palavras que tivera com o corregedor de Ocaña, mas este diz-lhe que na pousada há uns coches e carruagens de personalidades, e que ele não conhece Godoy. O manchego faz a sua descrição, e roga-lhe para passar pela pousada para reconhecer aquelas pessoas, e ver se entre elas vem Godoy, enquanto ele fica à espera. O alcaide foi à pousada, e pela descrição que trouxe de volta percebeu o manchego que eram as senhoras Tudó e o padre Duro. Disse que nada queria com senhoras, e mandou emissários com avisos para Écija, e outros para o sítio. Daqui passou a reconhecer os apeadeiros, e à distância de 5 léguas encontrou um guarda com outros que regressavam depois de terem executado essas mesmas diligências; ficando assim convencido de que o pássaro não tinha saído da Corte. Determinou voltar e não descansar enquanto não se repetissem no sítio as mais escrupulosas revistas de toda a vizinhança e das paragens onde se supusera que se podia ocultar; alimentou-se um pouco e sem se despir descansou num aposento, deixando fechado o Palácio de Godoy e dando as devidas ordens para tudo o que pudesse ocorrer. 
No dia 19, por volta das 9 da manhã, dois soldados da guarda valona, um chamado Rodríguez e outro Aillon, reparam que um soldado sobe pelas últimas escadas com uma taça de chocolate: chamam-no e perguntam-lhe para quem é que é aquele chocolate. O homem, meio perturbado, respondeu-lhes que era para um enfermo, mas aqueles replicam-lhe "que enfermo, quando não há um cristão em toda a casa?" Já desconfiado, determina Aillon que o seu companheiro faça a guarda àquele homem, e este continuou subindo as escadas com a taça de chocolate, afirmando que quem o esperava, sairia ao sentir os passos; com efeito, saiu Godoy com duas pistolas nas mãos, de calças negras e chapéu de copa alta e um casacão, e perguntou muito desfalecido ao soldado se queria trocar a casaca, ao que o soldado, sem se intimidar, respondeu que a casaca não era sua, que era do Rei; desceu um pouco o soldado e deu gritos; sobem os demais e encontram-no num desvão, envolto numa esteira e as pistolas numa pouca cinza. Alvoroça-se a casa, comunica-se ao povo o alvoroço, acode uma numerosa multidão carregando sobre ele, e comunica-se ao Rei. Este, aturdido por este barulho e algazarra, manda o seu filho, e autoriza-o para que fosse e fizesse tudo quanto podia fazer. Saiu o Príncipe com 4 guardas, e metido entre o povo, levando empurrões, encontrou o réu, que era trazido preso e vinha ferido e feito numa miséria. Ordenou o Príncipe que o deixassem, pois convinha que falasse, e apesar de tudo era tal o encarniçamento do povo que mesmo na sua presença maltrataram-no. Deste modo foi conduzido ao quartel das guardas reais, e ali disse ao Príncipe:"perdão, Senhor! Misericórdia, misericórdia!" Respondeu-lhe o Príncipe que todos os ultrages e atentados cometidos contra a sua pessoa estavam perdoados, mas que o Conselho era quem o havia de julgar. Continuando o alvoroço, sem afastar-se o povo do quartel, determinaram os Reis que o réu passasse a Alhambra de Granada. Estava já o coche pronto, cresceu o alvoroço do povo, pedindo aos gritos a cabeça de Godoy, e tirando as mulas desfizeram o coche em mil pedaços. O Rei, o Príncipe e Caballero, estavam atrás dos vidros de uma varanda vendo esta tragédia: diz o Rei ao seu filho, todo comovido: "a ti te querem, Príncipe, tu dispõe, que eu não estou para isto, vai e sossega essa gente". Caballero disse ao Rei que não podia o Príncipe fazer coisa alguma, que para isso era indispensável um decreto de abdicação da coroa. Livre e espontaneamente, disse o Rei no mesmo instante: não tinha acabado Sua Majestade de pronunciá-lo, quando já o ministro estava compondo-o, de modo que ali mesmo foi assinado pelo Rei, sem a Rainha o saber nem perceber, pois fugindo dos gritos tinha ido para os quartos opostos.
Caballero, já com o decreto assinado, juntou o Conselho imediatamente, publicou-o, e foi Fernando VII aclamado no sítio. 
Uma dama, tendo ouvido a aclamação de Fernando VII, avisou a Rainha: vem esta já feita uma víbora, mas já não há remédio, sem demora passaram-se os decretos ao Conselho de Castela, e por uma rara providência do Céu, organizou-se numa hora sem derramar uma gota de sangue o que não tinha podido verificar-se em muitos anos.
[Fonte: A. Rodríguez Moñino, "Relato de la caida de Godoy por un testigo presencial", in Revista de Estudios Extremeños, Tomo XIV, n.º III, Badajoz, Septiembre-Diciembre 1958, pp. 3-16].



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Notas:


* Ver o que ficou dito atrás sobre um boato semelhante.


** Deve notar-se que a proclamação de Carlos IV (aqui traduzida) data somente de 16 de Março.