quinta-feira, 30 de junho de 2011

Uma Carta Americana sobre os conselhos de Lagarde, as precauções de Junot, e os começos da revolução em Espanha e Portugal



Plácido a Venâncio



Junho de 1808


Apesar da lembrança de ajuntar em Bayonne uma Deputação Geral de Espanha, composta de 150 pessoas escolhidas do Clero, Nobreza e Povo, para se proporem todos os males que o precedente sistema ocasionou, e as reformas e remédios mais convenientes para destruí-los  (1); apesar da proclamação em que Bonaparte promete, além de felicidades infinitas, dar a Coroa de Espanha a outro ele mesmo (2), consta que a fermentação cresce nas províncias, onde se formam Juntas para representarem o Soberano, enquanto durar o impedimento do legítimo ou [enquanto] não se der mais idónea providência. 
Lagarde, a quem podemos chamar imortal, porque a memória dos seus crimes será eterna, e que serve em Portugal de Intendente, Missionário, Gazeteiro e Inquisidor, continua na louca pretensão de nos iludir, asseverando que os bons espanhóis suspiram pelo Rei prometido [D. Fernando VII]; que os esforços dos maus serão inúteis contra a estrela invencível de Napoleão; que as Juntas não passam de Clubs ou associações populares, que serão tão fatais à Espanha, como foram à França na Revolução; que desobedecer ao Imperador seu Rei é crime tão contrário às Leis da Monarquia, como às da Religião; e que, não sendo Conquistador, mas Legislador, somente se escora na sua missão evidentemente celeste (3). Dos portugueses afirma que, à excepção dalguns agentes do inimigo, é inteiramente bom o espírito público; que Portugal parece um país francês; e que até são bem poucas as povoações do Reino onde não se encontram agora Bibliotecas com livros próprios para ilustrar os espíritos e homens que mostram havê-los lido bem (4). Quanto é grande o influxo da Sabedoria Francesa! Entraram os bons hóspedes em Novembro, e já temos copioso números de doutos! Que rápidos progressos não faremos com tão bons princípios? Somente a força do tempo e de desvelos constantes se tem conseguido difundir num povo o amor das ciências; mas os filósofos da Revolução dao a obra acabada em menos de seis meses. 
O nosso Governador também não se descuida, e prevendo que provavelmente seguiremos o exemplo dos vizinhos, tentou engodar as tropas portuguesas dando-lhes o mesmo soldo que as suas recebem em França (5). E porque sente quão perigoso seria para os bons habitantes da cidade perturbar-se o sossego público, e deseja que as nossas pessoas e os nossos bens tenham nova garantia, ordenou que os nacionais e estrangeiros entregassem no Arsenal as armas que tivessem, cominando aos transgressores a pena de prisão, e de multas reguladas segundo as posses dos deliquentes  (6)
Parece, contudo, que as precauções são baldadas, e que os povos querem medir-se com exércitos franceses, apesar de serem os mais formidáveis e os mais aguerridos da Europa. Nada menos se infere dos delírios de que fala Junot (7) e do procedimento do General espanhol Belestá no Porto, censurado acerbamente na Proclamação e Ordem do dia 11 deste mês. Belestá é, no parecer de Junot, um infame e vil, porque abusando da confiança que tinham nele os Oficiais franceses residentes no Porto, os prendeu imprevistamente; e Bonaparte é grande e justo enganando um Monarca com repetidas protestações de aliança e sincera amizade para o despojar dos seus Estados. Segundo a filosofia dos reformadores do mundo, considera-se primeiro que tudo na avaliação das acções humanas, se eram franceses os que as praticaram; pois gozando desta singular prerrogativa, são virtudes os maiores crimes, se indivíduos de outra raça lhe sentem os efeitos; mas se não lhes coube em sorte tão ilustre dita, são muitas vezes delitos horrorosos o cuidado da própria conservação e a defesa natural. Guiados por estes santos princípios, aboliram entre nós o Governo que aprovávamos, introduziram outro em que não consentimos, roubaram-nos por mil maneiras diferentes, deram-nos na contribuição um meio de chegarmos a forros, sem termos sido escravos; e querem, sob pena de castigar a nossa cegueira, que adoremos o modelo de rectidão e magnanimidade, que tantos bens derrama sobre nós. 
Eu, meu Venâncio, nunca dobrarei o joelho ao ídolo dos franceses degenerados, nunca prostituirei a minha pena em vis adulações; mas como em várias Gazetas deste mês (8) nos advertem que serão punidos com inflexível rigor os que falarem ou escreverem verdades, ponho termo à nossa correspondência, pois vale mais sofrer calado as vexações e trabalhos, do que ser sacrificado por inconsideração. 

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Notas: 



2. Gazeta do [dia] 7 [do] dito [mês]. Na de 3 nos avisou o Intendente que o primeiro benefício de que ia gozar a Espanha era ter estradas novas e canais: mas não lhe invejámos a fortuna, lembrados da brevidade com que Junot tinha aviado obras semelhantes, prometidas no 1.º de Fevereiro.

3. Gazetas de 7 e 10 de Junho de 1808.



6. Decreto de 24 de Junho de 1808, onde se alegam como razões da Ordem as duas que o Autor aponta.

7. Na bem conhecida Proclamação de 26, que principia: Que delírio é o vosso?

8. Nas [Gazetas de Lisboa] de 34 e 22 últimos. 



[Fonte: “Carta L”, in Cartas Americanas. Publicadas por Theodoro José Biancardi [1.ª ed., 1809], Lisboa, Impressão de Alcobia, 1820, pp. 171-175. Inserimos os itálicos e notas originais do autor].