quarta-feira, 9 de março de 2011

Carta de Plácido a Venâncio sobre o governo francês e os delírios dos sebastianistas




Carta de Plácido a Venâncio



Março de 1808


Conquistado o Reino por manhas e não por armas, seguia-se sustentar pelos mesmos meios a injusta aquisição; e o novo Governador, rígido observante do sistema adoptado, já principiou*, licenciando as Milícias e recolhendo as armas, a diminuir os recursos de que poderíamos aproveitar-nos, mostrando assim que mais confia na nossa fraqueza do que no seu valor.
Se ainda ignorássemos as desgraças que nos afligem e que se nos preparam, só estas cautelas descobririam de sobejo o fundo das malévolas intenções de quem nos dominia. A desconfiança nos Governos é sintoma infalível de vício; quando as suas operações tendem todas ao bem público, vive tranquilo o chefe da nação no meio dos vassalos, como o pai amado no centro da sua família. Mas quando os direitos dos povos são sacrificados aos caprichos do soberano, este, sempre inquieto e desconfiado, multiplica as guardas, escuta os delatores, e, sobressaltado continuamente pelos perigos que a consciência dos seus crimes lhe figura, vê em cada vassalo um inimigo que espreita [a] ocasião para assassiná-lo. Tal é, meu amigo, a condição dos que vieram oprimir-nos; certos de que detestamos o seu violento domínio, pretendem que soframos manietados o jugo que despedaçaríamos livres. 
Quando medito nestas desgraçadas circunstâncias e nos funestos desígnios dos nossos opressores, ora me parece que só nos resta chorar sobre tantos males, ora que a desesperação nos fornecerá meios de quebrar as cadeias que nos lançam; porém, grande números de habitantes de Lisboa não pensam nem sentem como eu; às nossas presentes misérias opõem ideadas próximas venturas, e às vexações dos duros inimigos que nos regem, a vingança de um Rei há mais de dois séculos falecido. D. Sebastião, que mal aconselhado e temerário passou na idade de 24 anos à África, onde se perdeu na infausta batalha de Alcácer, aos 4 de Agosto de 1578, é o herói que muitas cabeças esquentadas esperam para a restauração de Portugal. Profecias atribuídas arbitrariamente a santos e homens virtuosos, contos e anedotas singularmente extravagantes, prognósticos de crianças e visões de freiras, são os sólidos fundamentos das suas altas esperanças.
Ninguém (dizem os sebastianistas) viu morrer D. Sebastião; e muitas pessoas afirmaram que depois o viram e com ele conversaram neste Reino; logo, não morreu na batalha.
Os sectários de tão risível opinião não reparam que aviltam o Rei, que chamam sisudo e religioso, supondo-o capaz, se vivo fora, de vir ao Reino por ele desamparado, só para fazer foscas e jogar às escondidas com os vassalos.
D. Diogo de Sousa, continuam eles, Capitão-Mor da Armada que levou El-Rei a África, fez-se à vela, concluída a batalha, logo que entraram nas naus quatro homens rebuçados, um dos quais devia ser D. Sebastião, que depois não quis descobrir-se. É certo que Fr. Pantaleão o confessou em Jerusalém; em França, Fr. João Craveiro; que na Índia foi visto por visto por muitas pessoas, no tempo que a governava D. Duarte de Meneses; e que falou em Veneza com altas personagens, em cujo tempo a Abadessa da Esperança (que por este facto mostrou o seu abalizado juízo, e que só cria o que devia crer), desejando saber se D. Sebastião andava na dita cidade, ordenou à Madre Marta que o perguntasse a Deus, a qual efectivamente fez a pergunta, e ouviu da boca de Deus um sim. Serve também para reforçar estes argumentos ser voz constante em Portugal: 1.º, que nunca um canteiro pôde acabar a pedra que se destinava para cobertura do sepulcro do Rei; 2.º, que no dia em que chegou o corpo a Belém, correu grande quantidade de sangue da sepultura do Príncipe D. João, seu pai; 3.º que no incêndio do Hospital de Lisboa, que até fundiu metais, só ficou ileso o seu retrato. Acresce a isto o testemunho (sem réplica) da Madre Maria, que moribunda prometeu a uma sobrinha que do outro mundo tornaria a este para lhe dizer se D. Sebastião era vivo ou morto, e voltando, passados alguns dias, bateu na cabeceira do leito em que dormia a sobrinha, e bradou é vivo, é vivo. Portanto, concluem eles, D. Sebastião viveu muitos anos depois da batalha; e só morreu nela para os corações obstinados, que resistem aos testemunhos de tantas pessoas autorizadas e virtuosas.
Não era pouco ter provado com tão rijos raciocínios a existência de um Rei, depois de enterrado em Belém; mas para a restauração da monarquia seriam inúteis tantas fadigas mentais, não se mostrando a sua conservação até à idade presente. Para destruir todas as dúvidas, argumentam os sebastianistas na forma seguinte:
Nos livros de S. Cirilo, S. Ângelo, S. Metódio, S. Isidoro, S. Gil, e outros, lêem-se profecias relativas à vinda de um Rei que há de dilatar a religião cristã e o Império português, as quais só podem cumprir-se em D. Sebastião. Só nele se verifica a promessa do famoso ermitão do tempo de D. Afonso Henriques, que segurou àquele Rei que a sua descendência, na décima sexta geração, [se] bem que apoquentada, de novo se ilustraria, e mereceria auxílios divinos para propagação da fé. Com estes prognósticos concordam... caso maravilhoso! os que houveram no tempo dos Filipes, e depois da aclamação de D. João IV. São conformes também as revelações de Santa Teresa, do Irmão Pedro de Basto, e das Madres Marta, Leocádia e Brízida; e os discursos dum pedreiro, por antonomásia o Profeta dos murrões, muito acreditado dos rapazes; e que antes quis morrer no [presídio do] Limoeiro, do que deixar de predizer a vinda do seu amado Rei. A estas provas infalíveis ajuntam eles as autoridades de mudos, que só falaram para a profetizar, e de meninos que, tendo apenas um ano, claramente o mesmo afirmaram; e o prodígio com que um rústico do nosso século, por alcunha o Botas, confundiu alguns incrédulos, pois dizendo-lhe estes que era tão impossível tornar D. Sebastião como florescer o bordão a que se encostava, ele o cravou na terra cheio de fé, e rebentou subitamente uma amoreira. Metamorfose bem digna de ser cantada por Ovídio, e tão verdadeira que ainda hoje existem pessoas a quem outras o contam por certo.
Ignoro, meu amigo, qual seja a resposta destrutiva de tantos factos e razões; mas se o teu sagaz engenho ainda pudesse achar fio para sair do labirinto, eu te embaraçaria de novo com três Bulas pontifícias, expedidas (dizem eles) aos Filipes para largarem este Reino por ser vivo D. Sebastião; e com mil passagens da Escritura, que torcidas e forçadas levam esta celebrada opinião ao último grau da evidência.
Ousarás tu, depois de leres o que te escrevo, chamar fátuos aos que esperam D. Sebastião com mais fé do que os judeus o Messias, e louco ao povo de Lisboa, porque há poucos dias correu alvoraçado a ver um ovo em que estavam gravadas as letras D. S. R. P.? Não é semelhante aos antigos este facto moderno, que talvez servirá ainda para a inteira convicção de algum prosélito? Incriminarás os que em dias de névoa sobem aos montes mais elevados da cidade para descobrirem se já vem cortando as ondas o suspirado defensor? Eu não me atrevo a tanto na sua presença; porque temo, sobre todos os homens, os fanáticos, sejam quais forem as ideias exaltadas que os dominem; porém, como penso que nenhum lerá o que te exponho, declaro-te que não contesto seus argumentos, porque é muito mais difícil, senão impossível, responder adequadamente a disparates do que a raciocínios intrincados; e quando o conseguisse, seria infrutífero o meu trabalho. Se averiguasse a autenticidade das profecias, era para eles maligno e perigoso subtilizador; se não cresse nas revelações dos Beatos e das Madres, seria, pelo menos, um insolente, que não dava a justa veneração à virtude; se duvidasse dos prodígios, tinha coração de Faraó.
Dizem que um dos mais aferrados a esta famosa seita, tendo lido um pequeno bilhete que às suas mãos chegara por ardis de certos malévolos, e criado ser de D. Sebastião, que o convidava a que o fosse esperar de noite numa das praias do Tejo, correu ao sítio indicado, onde em lugar do abraço do Rei levou dos autores da trama uma terrível maçada; depois dela infere-se por indícios certos que tem afrouxado na fé.
Para a enfermidade dos sebastianistas julgo mais eficaz este medicamento do que o heléboro das Anticiras, tão celebrado dos antigos.



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* [Nota do autor:] Por Decreto de 15 de Fevereiro de 1808. Por outro se tornou a proibir o uso de armas de fogo




[Fonte: Cartas Americanas. Publicadas por Theodoro José Biancardi [1.ª ed., 1809], Lisboa, Impressão de Alcobia, 1820, pp. 154-161].