quarta-feira, 9 de março de 2011

O avivamento do sebastianismo através de um ovo que ficou para a história



No dia 9 de Março de Março de 1808, Eusébio Gomes anotou no seu diário que “apareceu em Lisboa um ovo que tinha visivelmente as letras V. D. S. R. P., e fazendo-se experiência, não se pôde igualar. Correu isto mas não creio” [apud Raul Brandão, El-Rei Junot, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, s.d. p. 152-153].

Algumas das versões sobre este curioso episódio omitem a letra V. De qualquer forma, segundo os mais crédulos, aquelas letras significavam (Viva) Dom Sebastião Rei de Portugal. Mais de 230 anos depois do desaparecimento de D. Sebastião em Alcácer Quibir, este ovo dava novo alento às esperanças dos sebastianistas. Ainda que não pretendamos aprofundar aqui a génese e evolução do messianismo sebastianista (os interessados podem consultar uma obra fundamental sobre o assunto, da autoria de João Lúcio de Azevedo e intitulada A Evolução do Sebastianismo), resulta interessante ver o índice de um volume, compilado em 1809, de algumas das inúmeras fontes utilizadas pelos sebastianistas:



[Fonte: J. Lucio d'Azevedo, A Evolução do Sebastianismo, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1918, pp. 237-239].


Ao mesmo tempo que ganhava força, o sebastianismo virava motivo de paródia. Ainda sobre o "famoso" ovo, a jocosa Gazeta do Rocio [sic] viria a indicar que "Junot teria enviado ao Museu Napoleão [actual Museu do Louvre] um ovo achado nos entulhos ao pé da muralha de S. Pedro de Alcântara, tendo algumas letras esculpidas na casca, mas, pouco crédulo em milagres, o general atribuiu o fenómeno à bruxaria, na qual piamente acreditava, e desdobrou a sigla – V. D. S. R. P. – através do significado Viemos (a Portugal) Danificar, Saquear, Roubar e Pilhar". [Cf. Collecção das celebres Gazetas do Rocio que para seu desenfado compoz certo Patusca, o qual andava à pesca de todas as imposturas, que o intruso ministerio francez fazia imprimir no Diario Portuguez, n.º 7, Lisboa, Tip. Lacerdina, 1808; apud Lúcia Maria Bastos P. Neves, "Portugal durante a ausência do rei", in Revista USP, São Paulo, n.º 79, Set.-Nov. 2008, pp. 10-21, p. 18 (dispusemos em itálicos as citações do próprio jornal, o restante é da autora do artigo)].


De facto, a partir da expulsão dos franceses de Portugal (em Setembro de 1808), as críticas, réplicas e contra-réplicas entre sebastianistas, moderados ou anti-sebastianistas, viriam a fazer correr bastante tinta, com aval e prazer do Governo, pois as receitas revertiam para as despesas de guerra. Para se ter uma noção mínima da quantidade de opúsculos publicados apenas entre finais de 1808 e 1811, veja-se a seguinte relação reunida por Inocêncio da Silva:

[Fonte: Diccionario Bibliographico Portuguez - Tomo Sexto, Lisboa, Imprensa Nacional, 1862, pp. 320-324].




Para além destas fontes devem mencionar-se ainda as reedições das trovas de Bandarra (algumas das quais inéditas), uma das principais fontes do sebastianismo, publicadas fora do país para escaparem à censura da Inquisição:










Gravura sebastianista (c. 1809) 



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Um parêntesis: É possível que este sebastianismo novamente emergente tenha de alguma forma influenciado a escritora britânica Anna Maria Porter (irmã de Robert Ker Porter, um oficial do exército britânico que passou por Portugal em 1808 e que no ano seguinte publicou a obra Letters from Portugal and Spain, written during the march of the British Troops under Sir John Moore, com gravuras da sua autoria). Esta escritora, dizíamos, publicou em 1809 um romance histórico que teve algum sucesso (conhecendo-se várias edições posteriores) intitulado precisamente Don Sebastian; or, the House of Braganza. An Historical Romance (os quatro volumes da primeira edição encontram-se disponíveis on-line: Vol. 1; Vol. 2; Vol. 3; Vol. 4). 

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Depois da polémica inicial, o sebastianismo "decaiu em remate na galhofa popular quando, em 1813, perambulava as ruas de Lisboa certo original, vestido de mouro, que se dizia ser enviado de D. Sebastião, e o vinha anunciar aos portugueses. Ao pescoaço trazia um letreiro com as palavras terra, verdade, poder, honra, santidade, formosura, a que devia ligar algum sentido cabalístico. Chamavam-lhe o último sebastianista. Atrás dele ia em gáudio o rapazio, admirando-lhe o trajo desusado, ouvindo-lhe o discursar extravagante. Podia ser um folião. Era um convencido, porventura algum dos de 1808, que perdera de todo o senso. Para sossego das ruas interveio a polícia, que o sequestrou por demente.
O caso fez arruído, e tanto interessou o público que se propagou pela gravura, e em seguida se apossou dele o oleiro, artista ingénuo, cuja obra tantas vezes é o reflexo da alma popular. Foi copiada a gravura num prato ornado, que mostra o sebastianista levado à prisão por um façanhudo militar. Em trabalho mais cuidado se lavrou uma estatueta, modelada igualmente da gravura. Assim teve consagração perene, na arte singela do povo, este episódio, esquecido dos letrados, visto que nenhum livro o menciona [a gravura, que vem reproduzida num artigo do sr. Emanuel Ribeiro, na revista Límia, de Viana do Castelo, Série 2.ª, Tomo 1.º, pág. 121, tem uma legenda que diz ser o Retrato do suposto Enviado d'El-Rei D. Sebastião preso por um Furriel da Polícia de Lisboa no dia 1.º de Agosto de 1813, e remetido para o Hospital dos doidos]" [Fonte: J. Lucio d'Azevedo, A Evolução do Sebastianismo, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1918, pp. 154-155].



Prato de faiança do princípio do séc. XIX,
representando o "último sebastianista".



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Já em 1816, José Daniel Rodrigues da Costa recordará desta forma a "batalha" que tinha havido entre sebastianistas e anti-sebastianistas: "na contenda dos sebastianistas também meti a minha colherada; a uma obra de certo autor imprimi uma crítica refinada; ele respondeu-me com azedume, e eu derramei todo o meu fel naquela em que lhe respondi. Saíram-me então mais dois a campo a favor dele; e eu a todos sacudi a fato". [Fonte: José Daniel Rodrigues da Costa, Tribunal da Razão, onde he arguido o dinheiro pelos queixosos da sua falta: obra critica, alegre, e moral - Parte I, Lisboa, Officina de J. F. Monteiro de Campos, 1816, p. 28]. 
Finalmente, em 1818, o mesmo autor publicava o seguinte soneto:

[Fonte: José Daniel Rodrigues da Costa, Roda da Fortuna, onde gira toda a qualidade de gente bem, ou mal segura. Obra critica, moral, e muito divertida - Folheto II, Lisboa, Impressão de J. F. M. de Campos, 1818, p. 29]. 



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Algumas obras da "guerra sebástica" disponíveis on-line:


- Jacqueline Hermann, "Dom Sebastião contra Napoleão: a guerra sebástica contra as tropas francesas", in Topoi, Rio de Janeiro, Dez. 2002, pp. 108-133. 
- Dulce Alexandra de Oliveira Lopes Delgado, Transcrição e análise de uma colectânea sebastianista do século XIX [tese de mestrado em Estudos Portugueses Interdisciplinares], Lisboa, Universidade Aberta, 2005.