quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Carta do Major Aires Pinto de Sousa ao General Bernardim Freire de Andrade (24 de Agosto de 1808).




Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor:

Logo que cheguei a este Quartel-General, tive uma larga conferência com o General em Chefe, de quem fui recebido do modo que na minha antecedente expliquei a Vossa Excelência. A primeira coisa que consegui do General inglês foi que ele requeresse de ofício a Vossa Excelência a suspensão das hostilidades, ao que ele se prestou do melhor modo, até pondo antedata na carta; passei a expor-lhe as circunstâncias da nossa posição na Lourinhã, o risco que corriam as nossas subsistências, que éramos obrigados a tirar desde Leiria pelas Caldas, Óbidos, etc. Respondeu que não havia razão para o mínimo receio, porque o Exército que Vossa Excelência comandava tinha sido considerado como unido ao Exército Auxiliar britânico; que o artigo dizia unicamente respeito ao Exército da Beira, que os franceses reputavam como um ajuntamento de paisanos. Expliquei-lhe o negócio e acrescentei que era muito natural que esse Exército, que não era de paisanos mas de tropa regular, estivesse actualmente de posse de Santarém; porém, que entretanto Vossa Excelência, ainda antes de requerido oficialmente pela conservação da boa inteligência, mandara suspender as operações daquele Exército, que contudo não parecia decente que retrogadasse [sic]; respondeu-me que a inteligência do Armistício era sem dúvida que os Exércitos ocupassem as posições em que se achassem ao tempo da sua conclusão. Quanto ao ponto de fazer figurar o Governo do Porto, além de várias instâncias que me fez, respondeu-me com muita franqueza o seguinte: A minha comissão é puramente militar; não estipulei nem podia estipular coisa alguma sobre assuntos políticos com o General Junot, porque para isso não tinha instruções algumas do meu Governo. Fiz-lhe várias outras instâncias para mostrar-lhe quanto era bem fundada a autoridade do nosso Governo segundo as nossas Leis; respondeu-me que ele não entrava em discussão sobre semelhante assunto, e concluiu dizendo-me que não era o seu fim tratar assuntos políticos com Mr. Junot, porém tão somente militares; e instando eu ainda terceira vez sobre o negócio, finalizou o assunto com uma pergunta, a que julguei não poder responder, e foi: Como quereis vós que Junot trate com o Governo do Porto, quando ele seguramente não o reconhece, nem realmente o pode reconhecer sem expressa ordem do seu Governo; porventura quereis vós que por semelhante motivo se entre em discussões morosas? Respondi com efeito que me parecia que Sua Excelência tinha razão, e acrescentei o muito que toda a nação confiava da Lealdade inglesa, etc.
Respondeu que estava certo que merecia a confiança da nação portuguesa, e que podia [as]segurar-me que as suas intenções, segundo as ordens da sua Corte, não tendiam a outra coisa senão ao restabelecimento da Regência estabelecida por Sua Alteza Real, o que teria lugar imediatamente à saída dos franceses. Fiz-lhe notar as considerações que era necessário fazer sobre este assunto, bem como pelo que respeitava à amnistia; respondeu-me que decerto aqueles membros ainda mesmo da Regência contra quem a opinião pública se decidisse, seguramente não deveriam mais ser contemplados como tais, e que nesse caso a substituição deles se devia regular pelo que Sua Alteza Real mesmo tinha determinado; concluindo mesmo que era muito mais útil à causa pública que estas e outras pessoas de facção francesa se deixassem sair para onde não fossem mais prejudiciais ao público, não insistindo mais sobre este assunto por não arriscar a demora prejudicial.
Não esqueceu o ponto da concessão da bagagem, e a esse respeito asseverou-me o General que nunca se entendera na conferência que houvera [entre o próprio Dalrymple e Kellermann na tarde de 22 de Agosto], senão a propriedade particular, e que podia [as]segurar-me que quanto às pratas das igrejas e jóias, nunca se entendera a concessão a semelhante ponto, nem mesmo a respeito dos fundos públicos; ainda que a respeito deste último ponto via ele suma dificuldade para verificar a sua existência, e que este ponto poderiam eles iludir talvez sem remédio. Enfim, de tudo deu-me muitas desculpas de não se ter feito aviso a Vossa Excelência destes preliminares do Armistício, em razão da grande pressa que se dera o General Kellermann; porém, que para mostrar a Vossa Excelência que desejava tudo quanto pudesse ser a bem dos interesses de Portugal, que seria muito do seu gosto que Vossa Excelência quisesse pôr por escrito todas as reflexões e modificações que lhe parecessem necessárias para o bem de Portugal; porque da sua parte, dele General, ficava o propô-las na primeira conferência, e trabalhar quanto pudesse para que se fizesse tudo o mais que pudesse ser a nosso favor. Eis [que] aqui tem Vossa Excelência quanto pude fazer. Estimarei que Vossa Excelência com isto fique mais sossegado, e espero que Vossa Excelência mande as observações que o General lembra e tudo o mais que Vossa Excelência julgar a propósito para eu mesmo lhe apresentar; em consequência do Vossa Excelência verá que não fiz uso do protesto, nem tampouco das observações que vinham preparadas; porque sendo a maior parte relativas a pontos em que não há dúvida, parece escusado propô-las. Quanto ao ponto de intervir na capitulação o Governo do Porto, parece-me prudente não insistir à vista das razões do General, que eu apenas substanciei; ainda quando não houvessem os motivos que Vossa Excelência me anunciou no bilhete desta tarde*
Tenha Vossa Excelência a saúde que eu lhe desejo, e acredite que tudo quanto pelo crédito de Vossa Excelência e do nosso Exército foi preciso trabalhar, o fará com gosto este que tem a honra de ser de Vossa Excelência súbdito o mais atento e obrigado.

Aires Pinto de Sousa

[Fonte: Luís Henrique Pacheco Simões (org.), "Serie chronologica da correspondencia diplomatica militar mais importante do General Bernardim Freire de Andrade, Commandante em Chefe do Exercito Portuguez destinado ao resgate de Lisboa com a Junta Provisional do Governo Supremo estabelecido na cidade do Porto e o Quartel General do Exercito Auxiliar de S. Magestade Britanica em Portugal", in Boletim do Arquivo Histórico Militar - Vol. I, Lisboa, 1930, pp. 153-227, p. 209-210 (doc. 38)].


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Nota: 

* Ignoramos que bilhete fosse este.