sábado, 11 de junho de 2011

Restauração de Bragança (11 de Junho de 1808)


Um General português põe-se à frente da revolução, expede ordens, proclama aos povos, convida outros Generais a se lhe unirem, abre correspondências com Espanha, principia a organizar um exército, procura os meios de o sustentar e de levantar o estandarte português até o centro da dominação intrusa. É o General Sepúlveda, e é em Bragança, título antigo da Real Casa reinante, que se concebem e executam estes projectos. 
O abade de Carrazedo, Manuel António de Sousa e Madureira Cirne, tendo em sua casa a administração do correio, foi o primeiro que, a 11 de Junho pelas 5 horas e meia da tarde, recebeu por uma carta a notícia da prisão dos franceses no Porto. A carta é lida em voz alta a várias pessoas que se achavam presentes; aparecem mais cartas que confirmam esta notícia, acrescentando algumas que Junot devia também ter sido preso em Lisboa, e principiam imediatamente os vivas, de que foram autores o abade, o cónego Bento José de Figueiredo Sarmento, o bacharel Pedro Álvares Gato, e o médico António Afonso Dias Veneiros, e a que responderam todos os assistentes e o povo que se foi ajuntando com um entusiasmo inexplicável. De casa do abade saíram todos a procurar o General, que se achava na igreja de São Vicente assistindo à trezena de Santo António; e com ele voltaram, para darem as providências oportunas ao seu Quartel-General. Já o povo se encontrava aos montes, repetindo os vivas; já repicavam os sinos da catedral, por ordem do cónego Bento José de Figueiredo, e lhes respondiam os das outras igrejas da cidade; não se divisando senão alegria, desde o General até o último indivíduo do baixo povo.
Mas nem todas as autoridades se decidiram logo pela restauração, posto que nenhuma a impugnou abertamente. Houveram funcionários públicos que, apenas informados deste grande reboliço, foram procurar o General com os semblantes amarelos, a perguntar-lhe que novidade era aquela; ao que ele respondeu, conduzindo-os a uma janela e mostrando-lhes as ruas cobertas de povo, que clamava em altas vozes: viva o nosso Príncipe e a Real Casa de Bragança; morram os franceses; e também se ouvia: viva o nosso General. Ali têm o que é, lhes disse Sepúlveda; vejam se se atrevem a acomodar todo este povo. Não houve réplica, porque esta resposta não a admitia.
Sancionado com prazer pelo General este glorioso acto, seguiram-se salvas Reais, e nessa noite e nas seguintes se iluminou toda a cidade; sem outra alguma ordem ou insinuação, que o exemplo do mesmo General e dos outros patriotas que com ele se tinham posto à frente. Começou também desde logo a cuidar-se no essencial, que era procurar armas e soldados, providenciar os meios de sustentar a tropa e consolidar a revolução.
O General pois fez trabalhar incessantemente no concerto de uma porção de armamento velho que havia na cidade, enquanto não se podia conduzir de Chaves o que ali se achava. Publicou um edital datado do mesmo dia 11, por onde chamava às armas todos os transmontanos, e principalmente os militares que tinham obtido baixas no tempo do governo intruso, obrigando-os a se reunirem aos seus corpos, e perdoava, em nome do Príncipe Regente, o crime de deserção simples a todos os que nele se achassem compreendidos, contanto que se apresentassem no termo de 15 dias. Expediu ordens aos Governadores e Capitães mores da província para fazerem a aclamação nos seus respectivos territórios, e para que toda a paisanagem se pusesse pronta a combater o inimigo, se intentasse invasão. Ordenou também com particular cuidado que se cortasse a comunicação das barcas do Douro, para embaraçar ao inimigo a sua passagem, se a tentasse da parte de Almeida.
O dia 12 principiou pelas cerimónias religiosas, assistindo o General com o seu Estado-Maior, a Câmara, nobreza e povo à acção de graças que se celebrou na catedral, em que orou o Governador do Bispado Paulo Miguel Rodrigues de Moraes, um dos homens que trabalharam com grande zelo nesta empresa, e com muita utilidade, inflamando os povos e especialmente o corpo do clero com a sua autoridade e persuasões, e por meio de ordens que expediu a todos os párocos do Bispado. Aí mesmo se ornaram todos com o tope nacional, os eclesiásticcos sobre o peito, os seculares no chapéu.
Voltaram depois a continuar as suas fadigas militares, de que o objecto principal consistia então em reorganizar e armar os regimentos de linha e milícias da província. Começou-se pelo de infantaria n.º 24, debaixo do comando do Capitão Bernardo de Figueiredo Sarmento, que pelo seu comportamento e trabalhos merece uma memória honrosa, e pelo de cavalaria n.º 12, debaixo do comando do seu Coronel Amaro Vicente Pavão de Sousa. A necessidade aumenta prodigiosamente as forças do homem; Sepúlveda, velho e doente, trabalhava como faria um moço robusto; mas ele se achava rodeado de um grande número de fiéis portugueses, que o ajudavam com todas as suas forças; e devem contar-se neste número seus filhos, seus genros, e numa palavra toda a sua família.
Tal era o estado das coisas em Bragança, quando chegou novo correio do Porto, que em lugar de notícias lisonjeiras que se esperavam com alvoroço, trouxe as ameaçadoras cartas de Hermann e Lagarde*, e a certeza de que em Lisboa não tinha havido novidade, e o Porto tinha reentrado nos ferros. O terror produziu prontamente os seus efeitos, um dos quais é aumentar extraordinariamente a ideia do perigo: reflectiu-se sobre a insuficiência dos meios de defesa contra os exércitos do conquistador, nas vinganças de Junot, e no abandono em que se consideravam aqueles povos, tendo dado um passo tão arriscado que não constava que outros imitassem; olhava-se para Almeida e imaginava-se a todo o instante que a divisão de Loison caía sobre Bragança; e para maior desgraça, corriam notícias confusas do exército de Bessières, o qual por esse tempo assolava a alta Castela, que eram bem capazes de produzirem novos sustos. 
Os espíritos pois vacilaram de tal modo que alguns daqueles mesmos que ao princípio se haviam mostrado mais resolutos, caíram na fraqueza de proporem ao General que se humilhasse perante o governo intruso. E quando estes assim pensavam, que fariam os outros que desde os primeiros momentos tinham manifestado a sua timidez? Formaram uma conspiração contra o General e contra os outros motores da revolução; e como alguns deles se achavam armados com a jurisdição, abriram uma devassa contra os mesmos General e mais patriotas, projectando nada menos que o criminá-los e prendê-los, para se livrarem a si próprios. A crise era arriscada, e o General se tirou dela por um lance de prudência; tendo chegado a pontos de dar algumas providências para se refugiar na Espanha, se tanto fosse necessário.
Congregou-se na sua presença um ajuntamento das pessoas principais que tinham figurado na acção, para se deliberar o que devia obrar-se; e falando cada um segundo o seu modo de pensar, Francisco de Figueiredo Sarmento (um dos genros do General) representou com energia a alternativa em que se achavam, de morrerem às mãos dos franceses com ignomínia, ou sustentarem a revolução com uma resistência heróica; e apoiou intrepidamente este último partido, como o único que convinha adoptar. O General, pensando como ele, e sustentando que não tinham outro meio de salvar as vidas senão resistindo, contemporizou destramente com os autores da contra-revolução, subscrevendo à proposta que importunamente lhe faziam como meio conciliatório de escreverem cartas ao governo intruso, humilhando-se-lhe e dando-lhe por desculpa que todos os actos até ali praticados tinham sido de absoluta necessidade, para suspender os movimentos do povo em tumulto; que as salvas e luminárias não tiveram outro objecto que a festividade de Santo António.
Disse-lhe pois o General que escrevessem e lhe fizessem também o borrão para a sua carta, o que eles praticaram; e ajuntando-se à noite em casa do mesmo General, este lha apresentou já posta em limpo. Era tal a precipitação em que eles se achavam, que depois de a lerem, passaram a fechá-la, sem advertirem que estava ainda por assinar; fecharam também as suas, e quiseram deixá-las ao General, para que as mandasse lançar no correio, ao que este não anuiu, dizendo-lhes muito a propósito que as levassem todas e as lançassem no correio, pois que tinham de passar-lhe pela porta para se recolherem a sua casas; mas por baixo de capa mandou ordem ao administrador para que não remetesse a sua, não obstante faltar-lhe a assinatura. Digo que esta lhe faltava por fé do próprio General, que o atesta; e eu acredito, não só pela persuasão em que estou da sua honra e verdade, mas também porque se assim não fosse, a mesma carta o desmentiria, pois existe, e ele o sabe, em poder de um homem que lhe disputa vivamente as honras da primazia na restauração, sendo na verdade um dos que mais se distinguiram nesta obra.
É o abade de Carrazedo, em cuja casa estava, como disse, a administração do correio, quem conserva a carta, e não há muito tempo que a vi nas suas mãos cerrada e lacrada com sobrescrito do General para o ministério da guerra do tempo do governo intruso. Para dizer que é a própria carta da questão, tenho, além dos outros fundamentos, o testemunho do mesmo abade, que acredito sem repugnância; porque por isso mesmo que ele disputa a primazia ao General, mais lhe convinha ocultar do que produzir este documento, em que muito se tem falado; porque produzindo-o, ratifica a ideia de que não chegou a ter efeito; e ocultando-o deixaria sempre em dúvida se o teve, e se o General retrocede nos seus honrados projectos**.
Que não retrocedeu, é uma verdade demonstrada pelos factos; pois não houve intermitência na expedição das suas ordens e [na] execução dos planos que se haviam traçado. Animem-me, ajudem-me, dizia este honrado velho aos honrados patriotas que o rodeava; eles o animaram e ajudaram, e a revolução fez progressos, não só por toda a província transmontana, mas também nas de Entre-Douro e Minho, e Beira Alta, correndo muito para este fim não só o exemplo mas também as participações e convites de Sepúlveda aos respectivos Generais e Governadores.

[Fonte: José Accursio das Neves, Historia Geral da Invasão dos Francezes em Portugal, e da Restauração deste Reino - Tomo III, Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1811, pp. 136-148].


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* O teor da carta que Lagarde enviou ao Corregedor do Porto não devia deferir muito do daquela que enviou ao Juiz de Fora de Chaves, datada de 10 de Junho.

** [Nota original de Acúrsio das Neves] A controvérsia entre o General e o abade parece-me uma questão sem sujeito. O abade, recebendo primeiro as notícias do Porto, teve também ocasião de levantar primeiro a voz; mas ele mesmo reconheceu a necessidade ou pelo menos a importância da autoridade do General, indo logo procurá-lo com as mais pessoas que o acompanharam. O General principiou imediatamente a expedir ordens, e foi reconhecido por todos como chefe da revolução (qual outro o poderia ser na sua presença?); mas os actos foram tão seguidos e continuados, tão uniformes os sentimentos, e propagaram-se com tanta rapidez as vozes da restauração que se pode dizer que não houve senão um aclamador, que foi o povo de Bragança.