No dia 18 de Março de 1808, D. Pedro Cevallos, primeiro-ministro e Secretário de Estado de D. Carlos IV, comunicou a Eugenio Izquierdo que Godoy tinha sido demitido, depois dum motim ocorrido em Aranjuez nessa mesma madrugada:
Ex.mo Senhor:
Passo às mãos de V.ª Ex.ª, de acordo com as ordens do Rei [Carlos IV], uma cópia do Real Decreto que Sua Majestade me expediu na data de anteontem para os fins que nele se expressam [de tranquilizar o povo, declarando que a família Real não partiria de Aranjuez]; e outra cópia do ofício que me dirigiu o senhor Secretário dos assuntos da marinha, passando-me o Real Decreto onde Sua Majestade exonera o senhor Príncipe da Paz dos empregos de Generalíssimo e de Almirante, a fim de que V.ª Ex.ª seja informado deste sucesso, e de que esteja igualmente informado de que esta noite o povo e a tropa que havia neste Sítio [de Aranjuez] amotinaram-se pelo infundado motivo de que Suas Majestade ainda pensavam partir, o que jamais lhes tinha ocorrido.
Como V.ª Ex.ª se achava encarregado pelo senhor Príncipe da Paz de várias comissões, devo prevenir a V.ª Ex.ª, de acordo com as ordens do Rei, que me dirija os papéis relativos a elas e as exposições que tenha que dar, num subscrito reservado para Sua Majestade, a fim de que eu possa entregar-lhe sem o abrir*.
Deus Guarde V.ª Ex.ª muitos anos.
Aranjuez, 18 de Março de 1808.
Pedro Cevallos
P.S.: Devo advertir a V.ª Ex.ª, para evitar quaisquer equívocos, que o motim não foi dirigido contra Suas Majestades, mas sim contra o senhor Príncipe da Paz; bem pelo contrário, Suas Majestades receberam as maiores aclamações e aplausos de todo o povo; e também que, não tendo Sua Majestade querido entrar minimamente neste acontecimento na carta que dirige a Sua Majestade Imperial nesta data, por meio do Príncipe de Maserano [embaixador da Espanha na França, e aparentemente partidário de D. Fernando], a sua Real vontade é que V.ª Ex.ª entre em conversações com o Imperador, e que lhe informe do verdadeiro objecto que ocasionou o motim.
Cevallos
[Fonte: Juan Nellerto (pseudónimo de Juan Antonio Llorente), Memorias para la Historia de la Revolución Española - Tomo III, Paris, Imprenta de M. Plassan, 1816, pp. 63-65 (doc. CXXVIII)].
Recordemos que Izquierdo tinha estado em Aranjuez no início de Março (onde teve ocasião de conversar com Cevallos, como adiante se verá), conforme uma missão que Napoleão lhe tinha encarregado. Já em Paris, onde teria chegado por volta do dia 20 de Março, depois de novas conversações, Izquierdo escreveu no dia 24 do mesmo mês a Godoy (ignorando que entretanto este tinha sido preso) comunicando-lhe as novas propostas de Napoleão.
Dois dias depois de ter enviado esse correio, Izquierdo recebia a carta acima transcrita. Note-se que a mesma foi escrita antes dos segundos motins (na noite de 18), provocados pela descoberta e aprisionamento de Godoy, e que conduziriam à abdicação de D. Carlos IV em função do Príncipe das Astúrias D. Fernando (no dia 19).
A importante e reveladora resposta de Izquierdo, abaixo transcrita, só foi enviada no dia 10 de Abril, pelos motivos aí expostos, e já depois destes novos acontecimentos serem conhecidos em Paris:
Ex.mo Senhor:
Caro senhor, às sete da manhã do dia 26 do último mês, o correio de Sua Majestade, D. Alonso Mazorra, pôs nas minhas mãos o subscrito que no dia 18 V.ª Ex.ª enviou-me de Aranjuez.
Esta carta dizia, entre outras coisas, o que se segue: "Como V.ª Ex.ª se achava encarregado pelo senhor Príncipe da Paz de várias comissões, devo prevenir a V.ª Ex.ª, de acordo com as ordens do Rei, que me dirija os papéis relativos a elas e as exposições que tenha que dar, num subscrito reservado para Sua Majestade, a fim de que eu possa entregar-lhe sem o abrir"*.
No mesmo dia 26, Sua Majestade Imperial, recebendo a carta do Rei Nosso Senhor [Carlos IV], teve por bem mandar chamar-me ao sítio de S. Cloud, admitir-me à sua presença, sentar-se comigo no seu gabinete (sem que nele houvesse príncipe, ministros, pessoas da criadagem do palácio, ou guarda alguma) e ter a sós comigo um colóquio que durou, sem interrupção, desde antes das três até depois das cinco da tarde.
Tinha eu escrito a carta em que dava conta ao Rei Nosso Senhor deste evento, quando no dia 28 pela manhã o Príncipe de Maserano chamou-me à sua casa, e leu-me uma carta de V.ª Ex.ª para que lhe entregasse, com inventário, todos os papéis relativos às negociações de que estava encarregado nesta capital pelo senhor Príncipe da Paz. Respondi que não tinha nenhuma, e respondi a verdade.
Era a minha intenção escrever isto mesmo a V.ª Ex.ª com o primeiro correio extraordinário que saísse; e também evidenciá-lo com explicações e provas irrefutáveis; mas o Príncipe Maserano despachou naquela mesma noite um correio do Rei (o mesmo que tinha vindo às minhas ordens) e mandou que me fosse ocultada a sua saída; despachou depois outro correio, ocultando-mo também; e este proceder tão seu retirou-me todo o meio de comunicação com V.ª Ex.ª. E fez mais: olhou-me e tratou-me desde aquele momento (e conforme o seu exemplo, todos os da embaixada) como um homem já proscrito pela sua nação.
Ontem passou-me o ofício de que é cópia o papel adjunto n.º 1; respondi o n.º 2; e contestou-me o n.º 3, que adjunto. [Estes documentos não se encontram publicados].
Tendo isto assente, Ex.mo senhor, receba V.ª Ex.ª de mim, homem honrado, verídico e livre no seu modo de pensar, amante até ao entusiasmo da honra, esplendor e glória da sua pátria, zeloso sustentador da sua independência e posses, fiel servidor do Rei e do Estado (cuja fortaleza de alma e rectidão de coração jamais se rebaixarão, nem sequer para evitar uma morte afrontosa, não digo a negar, mas sim a deturpar a verdade): receba V.ª Ex.ª deste homem (cuja conduta política deve por justiça tornar-se pública a toda a Espanha e a toda a Europa) uma franca, espontânea e verdadeira manifestação de todas as suas relações com o senhor Príncipe da Paz, e de tudo quanto fez em Paris, referente ao que se denomina num ofício comissões, e noutro negociações encarregadas pelo dito senhor Príncipe.
Primeiro ponto: Eu era conhecido na Espanha e no meu Governo por ter feito bons serviços ao Estado (os documentos que comprovam estes serviços conservam-se nas várias secretarias do Estado e em meu poder) antes de ter visto, escrito ou falado com o senhor Príncipe da Paz; antes mesmo de ter notícia da sua existência.
II. O Rei resolveu [entregar-me] a direcção do gabinete de História Natural durante o ministério do Marquês de Grimaldi. Várias comissões do Governo, umas públicas, outras reservadas, foram-me confiadas durante os ministérios do senhor Conde de Floridablanca, do senhor Conde de Lerena e do senhor Baylio D. Antóio Valdez: todas elas anteriores ao ano de 1789.
III. A primeira vez que falei na minha vida com o senhor Príncipe da Paz foi no ano de 1797.
IV. Nunca houve qualquer fundamento para me que apresentasse ao público com um dos seus amigos, ou um dos que gozava do seu tratamento familiar. Fui meramente um fiel servidor do Rei que trabalhou às suas ordens [i.e., de Godoy], como o fiz sem interrupção às de muitos predecessores seus nos ministérios do nosso superior Governo.
V. Assim, não foi o favor, nem a amizade, nem a protecção do senhor Príncipe da Paz o que me conduziu aos negócios do Estado; foram os negócios do Estado e o meu desempenho neles que me valeram toda a amizade de Sua Alteza [Godoy], todo o seu favor e confiança; e esta circunstância (tão verdadeira como digna de se notar) aumentou em Sua Majestade (quando ultimamente me ouviu) o bom conceito que sempre me foi devido pela minha leal conduta a Sua Majestade.
VI. Se servi nos negócios do Estado ao lado do Príncipe da Paz, foi pela expressa vontade e ordem do Rei Nosso Senhor, recebida da própria boca de Sua Majestade várias vezes. No Escorial, antes da minha primeira vinda diplomática a Paris, falando comigo o meu Soberano, em presença de Sua Majestade a Rainha, dignou-se dizer-me: «Trabalha ao lado de Manuel [Godoy]; é o teu protector; faz quanto te diga; através dele deves servir-me». Suas Majestades confirmarão esta verdade.
VII. Durante toda a minha missão secreta em Paris, não houve correspondência minha com o senhor Príncipe da Paz que não tenha sido lida pelos Reis. Suas Majestades asseguraram-mo pessoalmente, e Suas Majestades assegurarão-lho agora. Nem poderia ter existido, porque não teria tido fundamento; pois jamais tratei de assuntos aqui que não tenham obedecido ao bem geral da monarquia e ao bem estar de toda a família real.
VIII. Se no menoscabo de um ou de outro, ou às custas ou com sacrifício de um ou de outro, isto é, do bem do Estado ou do da família real, eu tivesse dado um só passo com este Governo [francês] em utilidade e proveito do senhor Príncipe da Paz, eu (que jamais desceria ao ponto de cobrir este facto desculpando-me por ter agido a mando do ministro do Rei, a quem o próprio Rei me tinha mandado obedecer) considerar-me-ia como delinquente, e como principal cúmplice nos projectos do senhor Príncipe da Paz; mas é necessária toda a baixeza de um coração falso e abrigador de traições, e toda a perversidade duma alma atroz que as promove, para supor no senhor Príncipe da Paz tão horrível deslealdade, e na minha pessoa tão louca e tão infrutífera cumplicidade. Eu, ao fim de tantos anos de estudos e de serviços consagrados em utilidade da minha pátria, cúmplice de um traidor! Eu mesmo um traidor, com inteira certeza de não poder tirar em tempo nenhum fruto ou vantagem alguma de tão perigosa maldade! E isto eu, que nunca adulei o senhor Príncipe da Paz enquanto privado do Rei, e que nunca o vi nem servi senão como ministro do meu Soberano!
IX. Assim, em presença do Todo-Poderoso e perante todo o universo, declaro que durante a minha estadia diplomática em Paris, jamais me foi inspirada ou comunicada pelo senhor Príncipe da Paz, até ao dia de hoje, ideia oposta ao bem geral do Estado, nem ao da real família, nem ideia alguma dirigida em seu proveito, actual ou futuro.
X. A minha missão foi para que ambos os Governos se comunicassem por um conduto fiel, seguro, secreto, e de tal lealdade que jamais misturasse os seus interesses pessoais com os do Estado, como o fizeram quase todos os embaixadores de ambas as Potências nestes últimos tempos, com graves e incalculáveis prejuízos para a nossa infeliz pátria.
XI. Em Paris não tive outra missão política do Rei Nosso Senhor ou do senhor Príncipe da Paz senão comunicar directamente a Sua Majestade o Imperador tudo quanto me era dito de Madrid, e de comunicar a Madrid tudo quanto me encarregava Sua Majestade Imperial e Real.
XII. Com ninguém na França, com ninguém (esta proposição é de rigor) tratei pública ou particularmente de assunto político algum; nem sequer de uma mera notícia, senão com as pessoas que me foram designadas pelo mesmo Imperador. Jamais vi um ministro sem ordem sua ou sem o seu beneplácito.
XIII. Tampouco dei passo algum neste país em assuntos da Espanha, sem prévia comunicação à pessoa de Sua Majestade Imperial e sem a sua explícita anuência. Nada fiz durante a minha missão em Paris; jamais se encontrará ponto algum de que os Reis Nossos Senhores não tenham tido conhecimento.
XIV. E quais foram os resultados e o fruto da minha missão em Paris? Não me disse ultimamente V.ª Ex.ª em Aranjuez, na sua própria Secretaria, que os acordos assinados a 27 de Outubro último pelo Grão-Marechal do Palácio Imperial, o General Duroc, e por mim, ratificados imediatamente por Sua Majestade o Imperador e pelo Rei Nosso Senhor, eram os mais vantajosos que alguma vez tinha feito a Espanha? E não me disse também que eu tinha conseguido neles o que em dois séculos a França tinha negado constantemente até à sua própria dinastia reinante na Espanha?**
XV. A culpa é do negociador? Deve-se por acaso diminuir o serviço que fez na negociação, porque causas independentes dela impediram a execução dos tratados assinados e ratificados?
Mas, Ex.mo senhor, mais que ouvir-me falar da conduta particular do senhor Príncipe da Paz e da minha, desejará V.ª Ex.ª receber a resposta categórica ao que na data de 27 de Março último comunicou V.ª Ex.ª ao Príncipe de Maserano, a saber, que eu lhe entregasse imediatamente as instruções reservadas que me foram dadas, segundo consta por escritos do Príncipe da Paz, quando saí de Madrid, na minha última viagem.
Assegura a minha lealdade que, ao sair de Madrid nos últimos tempos, bem como durante a minha última estadia tanto naquela capital como em Aranjuez, não me foram dadas instruções reservadas; e também afirmo que tal coisa não pode constar por escritos do senhor Príncipe da Paz no sentido em que entre nós tem a palavra instruções.
Direi com sinceridade e simplicidade tudo quanto sei nesta matéria. Fiz a minha última viagem a Madrid por disposição particular de Sua Majestade Imperial e Real. Levei ideias e questões por escrito, que me foram dadas em Paris. Li-as a Suas Majestade, estando presente o senhor Príncipe da Paz. Suas Majestade mandaram-me chamar; ouviram-me cheios de bondade; responderam-me; e o senhor Príncipe mal se misturou nos colóquios.
O senhor Príncipe nada me disse em particular que alterasse ou se opusesse ao que me disseram Suas Majestades na sua presença. Nada me deu por escrito.
Na noite da minha partida (a 10 de Março último), manifestou-me Sua Alteza [Godoy] uma carta que tinha escrita para o Imperador, a qual me ia entregar. Acerca dela fiz-lhe algumas observações, e pela pressa com que estávamos, disse-me: «Leve Vossa Mercê a carta; reflexionarei sobre o que falámos e avisar-lhe-ei se a há de entregar ou não». Este é o único escrito que me deu; e que devolvi a Sua Alteza na ponte de Miranda de Ebro, onde me encontrou o enviado que veio buscá-la.
A carta do senhor Príncipe a Sua Majestade Imperial continha algumas ideias sobre o modo de conciliar os interesses políticos entre a Espanha e a França; ideias completamente favoráveis aos Reis e à Real família; nenhuma para a pessoa do senhor Príncipe ou para os seus interesses. Lida por mim, recaiu a minha observação que fiz ao senhor Príncipe, sobre toda a nossa anterior conduta diplomática, da qual nunca nos separámos; a saber, não propor nada em momento algum; observando, como um princípio de sã e prudente política, que compete ao mais forte propor e ao menos forte limitar-se a aceitar***.
Se a esta carta (o que não posso crer) chamou o senhor Príncipe por escrito (seja naquela noite ao escrever de Madrid aos Reis, seja noutra ocasião ao escrever a outra pessoa) instruções reservadas, seria porque em vista das minhas observações acordámos que antes de eu a apresentar ao Imperador, poderia consultar com o Príncipe de Bénévent e com o Marechal Duroc, se seria conveniente ou não pô-la nas mãos de Sua Majestade Imperial; e a isto poderia fazer alusão a palavra reservadas, que neste sentido quererá dizer não ostensíveis.
A verdade de tudo quanto exponho, a minha conduta política, o meu patriotismo, a minha lealdade e amor aos meus Soberanos, a minha perseverança em não consentir que se diminua o nosso antigo poderio nacional, a minha oposição a assinar um tratado que não seja glorioso para a Espanha; tudo isto está assente para sempre na minha carta enviada a 24 de Março último, através de Rossi, correio de Sua Majestade, ao senhor Príncipe da Paz, numa altura em que eu devia estar persuadido de que as minhas cartas não chegariam a outras mãos que não fossem as suas.
Esta carta (já sei que o correio Rossi entregou-a a V.ª Ex.ª) continha as bases propostas por este Governo para conclusão de um acordo definitivo que compreendesse todos os interesses políticos hoje existentes entre a Espanha e a França; e V.ª Ex.ª terá visto já na dita carta que tudo quanto se ia estipular era em utilidade do Estado, em esplendor da Real família, e nada em favor do senhor Príncipe da Paz, em recompensa dos seus importantes serviços, e sobretudo da sua admirável conduta política.
Mas tudo ficou já transtornado pelos últimos eventos desse país; e a minha desgraçada pátria irá ver que as causas que nenhuma conexão têm com os assuntos políticos entre a Espanha e a França influenciaram este transtorno. Irá ver também que não se pôde derrubar o homem sem derrubar ao mesmo tempo tudo quanto manejava, e que as ideias erróneas espalhadas e derramadas nesse solo acerca do actual estado político das coisas, do rumo que numa tão crítica situação se seguia, e do que devia seguir-se, produziram outras, e que (segundo prevejo) vão ser completamente funestas à pátria.
Finalizarei esta exposição, fazendo saber a V.ª Ex.ª que o senhor Príncipe da Paz comunicou-me na última noite da minha estadia em Madrid, e na sua última conversação, que um agente do Governo francês que passava a Portugal [Pierre Lagarde], tinha dito a certo ministro estrangeiro residente nessa Corte [Strogonoff, embaixador da Rússia na Espanha], que em Paris se suspeitava que o senhor Príncipe tinha uma porção do seu dinheiro colocado na Inglaterra, e outra muito maior a caminho para fora da Espanha, e que esta suspeita se desvaneceria se enviasse alguns fundos à França para comprar bens imóveis. O senhor Príncipe acrescentou-me: «Tenho em letras de câmbio na América a importância da casa que me cedeu o Rei para o Almirantado; não me encontro com outra coisa disponível; assim, se Vossa Mercê vê em Paris que as suspeitas do Imperador são efectivas (o que não creio) e que se desvanecerão se eu comprasse fazendas na França, proponha-o a Sua Majestade Imperial; receba a sua anuência, e em tal caso poder-se-ão negociar as letras de câmbio, e com o seu produto comprarei fazendas para dois filhos não legítimos que tenho, de cuja existência (assim como das minhas vistas relativas a eles) estão conscientes Suas Majestades os Reis Nossos Senhores.
Se esta pedido particular (puramente doméstico, e que nenhuma conexão tem com os negócios políticos do Estado), feito verbalmente e em mera conversa, se denominou em algum escrito pelo senhor Príncipe como instruções reservadas, isto poderia dar lugar a crer que eu as teria recebido de Sua Alteza na minha última viagem; mas a verdade é que não me deu nenhumas, excepto o que consta na minha carta citada de 24 de Março último; carta que, sozinha, basta para a inteira justificação tanto do senhor Príncipe da Paz como de mim.
À simples exposição que acabo de fazer, acrescentarei um ponto, que diz respeito à minha pessoa. Um papel original que existe no processo formado no Sítio de S. Lorenzo e que li em Aranjuez (escrito por uma mão superior para ser dirigido ao Rei Nosso Senhor), falando de mim, qualificava-me de criação do Príncipe da Paz. Não me desdenharia de sê-lo; certamente que não; mas a justiça e a verdade exigem que combata esta falsa asserção.
Desde que conheço o senhor Príncipe da Paz que não me foi dado pelo Governo qualquer emprego, salário ou gratificação. Não recebi do Soberano mercê alguma. Ainda me é devido tudo quanto gastei durante a minha longa estadia em Paris, e nas diferentes viagens empreendidas por assuntos do Estado. Desempenhei o [trabalho] mais árduo desta embaixada, e outros desfrutaram dos salários, emolumentos, honras e prerrogativas dela. Conferiram-me as honras do conselho de Estado; mas não as vejo nem como mercê, nem como recompensa. Foi necessário darem-mas; era preciso distinguir-me com uma condecoração, para que tratasse sem desvantagem com os que aqui tinha tantas; e sobretudo para que pudesse assinar de um modo decoroso à Espanha os tratados e acordos que estava entendendo. Por esta razão observei sempre tais honras como um capuchinho observa a rica casula que veste para celebrar num dia solene, e que, acabada a missa, a retira, ficando com o seu saial; e estou pronto a executar o mesmo, porque para dizer a verdade, já me são de todo inúteis.
A minha intenção não é queixar-me de que não tenham recompensado os meus serviços; muito menos censurar a conduta que teve comigo aquele que o próprio Rei chamava meu protector; mas sim fazer patente que não pode dizer-se de mim com verdade que sou criação sua; ainda que tenha sido a pessoa que mais distinguiu; à que deu o mais que podia dar, isto é, a sua inteira e ilimitada confiança.
Concluo esta carta pedindo a V.ª Ex.ª que para justificação do senhor Príncipe da Paz e para a minha própria, comunique-a e publique-a. Assim não me verei na triste necessidade de eu próprio publicar a defesa de Sua Alteza [Godoy] e a minha apologia.
Saber que [Godoy] está oprimido! Saber que é vítima do ódio de muitos, da preocupação de todos! Saber que é inocente (pelo menos a respeito das relações políticas com este país, das que tive completo conhecimento)! Saber que foi o mais fiel apoio de toda a dinastia reinante; o que viu mais além dos demais! Isto não há de excitar a minha honradez e a minha lealdade, para que, apoiadas na verdade e na justiça, defendam a honra do que acaba de ser tão ignominiosamente ultrajado na sua pessoa, à vista e com o pesar do seu Rei, com opróbrio do Governo e desonra da minha pátria?
Nosso Senhor guarde a pessoa de V.ª Ex.ª muitos anos.
Paris, 10 de Abril de 1808.
Eugenio Izquierdo
[Fonte: Juan Nellerto (pseudónimo de Juan Antonio Llorente), Memorias para la Historia de la Revolución Española - Tomo III, Paris, Imprenta de M. Plassan, 1816, pp. 66-82 (doc. CXXX)].
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Notas:
Apesar do que pedia Eugenio Izquierdo, esta carta só viria a ser publicada em 1816, já depois da sua morte, nas Memorias para la Historia de la Revolución Española, obra de Juan Llorente já aqui várias vezes citada (onde se encontram, entre centenas de outros documentos, diversos ofícios herdados pelos testamentários de Izquierdo e alusivos à sua missão em Paris). Segundo Godoy, que também inseriu esta carta nas suas memórias apologéticas, "nenhum dos meus inimigos, nem muito menos D. Pedro Cevallos, que assim fica com o carimbo do opróbrio, se atreveram a publicar esta carta ou a responder-lhe. O próprio conde de Toreno, que cita por diversas vezes na sua História vários documentos daquela colecção [publicada por Llorente], faltando-lhe a devida imparcialidade de todo o historiador, calou-se sobre esta carta" [Fonte: Cuenta dada de su vida política por Don Manuel Godoy, Príncipe de la Paz - Tomo V, Madrid, Imprenta de I. Sancha, 1838, p. 505].
* Segundo Godoy, "esta ordem foi arrancada a Carlos IV, no meio da angústia e turbação em que se encontrava, por D. Pedro Cevallos, seu primeiro-ministro, o mesmo que, dois dias depois, já como primeiro-ministro de Fernando, expediu, em nome do seu novo senhor, a segunda ordem de que fala Izquierdo mais adiante, e que deu ocasião a esta carta. Qual foi o motivo de ansiar tanto para se apoderar daqueles papéis? Fernando tinha sido instruído pelo seu augusto e bondoso pai dos termos trazidos por Izquierdo, entre os quais se encontrava aquele em que Bonaparte propunha fixar a sucessão da coroa do modo que fosse mais conveniente para a tranquilidade do Rei e para a conservação da amizade entre a Espanha e a França; por mais que os maus amigos daquele Príncipe lhe tivessem querido fazer duvidar da verdade daquela proposta, nem eles nem Fernando deixaram de recear que fosse verdadeira. Daí a ânsia para saber a realidade exacta, e o dolo e a precipitação com que Cevallos arrancou a Carlos IV, no próprio dia 18, a referida ordem, que, supondo-se que continuaria reinando (como era a sua intenção e como a manifestou, reassumindo na sua pessoa o comando do exército e da marinha), não somente não tinha motivo para dá-la, como que ademais era contrária ao objecto das conversações pendentes entre Carlos IV e o Imperador dos franceses. Os instantes pareciam séculos aos conspiradores, para saberem o que pudesse haver naquele assunto, pois aqueles ímpios não acreditavam na resposta tão favorável a Fernando que tinha dado Carlos IV, e a qual lhe tinha instruído. Rei já este Príncipe vinte e quatro horas depois, foi apertar Cevallos com uma segunda ordem e com injúrias e ameaças para recolher todos os papéis de Izquierdo. Deste modo manejou este homem de cem caras, que logo alcançou ser ministro de cinco governos diferentes e contrários: infiel a Carlos IV, infiel a Fernando, infiel ao jurado Rei intruso José, e finalmente infiel ao regime jurado do tempo da Regência e das Cortes" [Fonte: Cuenta dada de su vida política por Don Manuel Godoy, Príncipe de la Paz - Tomo V, Madrid, Imprenta de I. Sancha, 1838, pp. 506-507].
** Deve aqui notar-se que em Setembro de 1808 (ou seja, em circunstâncias bastante diversas das que aqui fazemos menção), D. Pedro Cevallos publicaria a sua Exposición de los hechos y maquinaciones que han preparado la Usurpación de la Corona de España, y los medios que el Emperador de los Franceses ha puesto en obra para realizarla. Logo nas primeiras linhas, Cevallos declarava que queria com esta obra "manifestar à Espanha e ao mundo inteiro os torpes meios que o Imperador dos franceses se serviu para aprisionar o nosso Rei Fernando VII e avassalar esta nação grande e generosa". Esta obra, que tem a particularidade de ter revelado pela primeira vez o tratado de Fontainebleau, teve uma rápida e ampla difusão: até ao fim de 1808, houve pelo menos as edições de Madrid, Cádis, Sevilla e Valência; em Lisboa houve pelo menos mais duas, uma pela Oficina de Simão Tadeu Ferreira e outra pela Oficina de João Rodrigues Neves; também apareceram traduções na Inglaterra e na Alemanha. Nos anos seguintes seria ainda traduzida para italiano (cf. tomo I e tomo II) e para francês, e ainda publicada nos Estados Unidos.
Apesar de ter o crédito de ter sido escrita por um homem que tanto foi primeiro-ministro de D. Carlos IV como de D. Fernando, e como tal certamente melhor informado do que o comum dos mortais, esta obra foi precisamente uma das que mais contribuíram para o falseamento da história da assim chamada Guerra de la Independencia, conforme já tivemos ocasião de aludir aqui. De facto, Cevallos omitiu e deturpou diversos factos, contribuindo não só para se prejudicar ainda mais a imagem já bastante manchada de Godoy, como por outro lado para espalhar o mito do aprisionamento de D. Fernando, visto naquela época como o Rei Desejado e cuja esperança de libertação servia de fundamento à luta dos espanhóis contra os franceses.
Releia-se agora o trecho da carta de Izquierdo que conduziu a esta nota, e confronte-se com o que escreveu Cevallos na página 8 da edição de Madrid, depois de anunciar a chegada ao Escorial do tratado de Fontainebleau, assinado pelo Marechal Duroc e por Eugenio Izquierdo: "É muito digno de se notar que de nenhum dos passos dados por D. Eugenio Izquierdo em Paris, bem como da sua nomeação, correspondências, instruções e demais direcções se tinha a menor notícia no ministério de Estado a meu cargo".
Note-se ainda que foi D. Pedro Cevallos (na qualidade de conselheiro de Estado, primeiro-ministro e secretário de Estado) quem tinha subscrito os plenos poderes dados pelo Rei Carlos IV a Izquierdo, em Maio de 1806, e posteriormente renovados a 8 de Outubro de 1807, para que este assinasse um tratado com a França [Cf. Juan Nellerto (pseudónimo de Juan Antonio Llorente), Memorias para la Historia de la Revolución Española - Tomo III, Paris, Imprenta de M. Plassan, 1816, pp. 1-3 (doc. CXVI)].
*** Segundo Godoy, "o verdadeiro fundamento daquela regra de conduta nas transacções que eu dirigi através do conselheiro Izquierdo, não está aqui bem expressado, como ele e eu o entendíamos, talvez pelo temor que Izquierdo teria que esta carta pudesse ser interceptada na França. Eu não queria que se fizessem propostas, em 1.º lugar, para evitar que, aceitando-as Napoleão, quisesse que para boa correspondência aceitássemos as suas, por mais que nos fossem prejudiciais; em 2.º lugar, para que a sua diplomacia, saciando ilações, justas ou não justas, daquilo que propuséssemos, não tentasse enredar-nos nas suas pretensões com as nossas próprias; em 3.º, porque a aceitação de uma proposta feita pelo mais forte e admitida em circunstâncias difíceis, não obriga com tanta força como aquilo que proposto ou insinuado pelo menos forte se concedeu pela outra. Nenhuma precaução me pareceu suficiente para evitar toda a espécie de compromissos deste género". [Fonte: Cuenta dada de su vida política por Don Manuel Godoy, Príncipe de la Paz - Tomo V, Madrid, Imprenta de I. Sancha, 1838, p. 515].