Caldas [da Rainha], 16 de Agosto de 1808.
Meu Senhor:
Marchei de Lavos no dia 10, e no dia 12, em Leiria, reuniram-se comigo as tropas portuguesas comandadas pelo General Bernardim Freire, que consistem entre 5.000 a 6.000 homens. Contudo, lamento por ter de informar Vossa Senhoria que elas não me acompanharam para mais adiante. Desde que cheguei a este país, o General Bernardim Freire e outros oficiais portugueses declararam querer que o comissariado britânico, através dos seus abastecimentos, sustentasse as tropas portuguesas durante a campanha; particularmente num encontro que tive com eles no Porto, na noite de 24 de Julho, e noutro em Montemor-o-Velho, no passado dia 7; e em ambas estas ocasiões disse-lhes explicitamente que era impossível suprir as suas necessidades através dos abastecimentos britânicos; que estes abastecimentos foram preparados com o objectivo de serem somente para consumo dos britânicos, e apenas para pouco tempo; e que era uma proposição de natureza inédita requerer a um exército desembarcando dos seus navios para que não só suprisse o seu próprio consumo de pão, mas que igualmente suprisse o exército do Estado para cujo auxílio tinha sido enviado. Disse aos oficiais portugueses, no entanto, que julgava que não teria necessidade de pedir à região para me prover de pão durante a minha marcha em direcção a Lisboa; mas que deveria requerer carne, vinho e forragem, géneros que o Bispo do Porto se comprometera a suprir-me.
Antes de marchar para Leiria, os oficiais portugueses instaram-me a avançar sem demora, a fim de guardar um armazém que se tinha formado naquele lugar para uso, segundo entendi, das tropas britânicas, e é certo que a minha marcha evitou que o armazém caísse nas mãos do inimigo. Porém, não recebi quaisquer provimentos deste armazém, que permaneceu intacto para o uso do exército português. Ainda assim, na noite em que o exército português chegou a Leiria, recebi algumas mensagens muito extraordinárias, relativamente aos seus suprimentos; e numa conversação que tive com o General Freire durante essa noite, mostrou ele a sua ansiedade sobre este assunto.
O plano de marcha para a manhã seguinte foi-lhe comunicado, e fixou-se a hora de partida das tropas portuguesas. No entanto, em vez de fazer a marcha tal como se tinha acordado, recebi uma proposta do General Freire para um novo plano de operações, segundo o qual as tropas portuguesas marchariam a certa distância do exército inglês, por Tomar, em direcção a Santarém, a menos que eu consentisse alimentar todas elas; e o pretexto para a adopção deste plano era a provável falta de provisões no caminho que eu tinha proposto seguir, e a sua abundância no caminho agora proposto; e que as tropas portuguesas estariam em situação de cortar a retirada dos franceses de Lisboa.
Na minha resposta apontei a ineficácia e o perigo deste plano, e pedi ao General que me mandasse 1.000 homens de infantaria, toda a sua cavalaria e as suas tropas ligeiras, que eu me comprometia a alimentá-las; e recomendei-lhe que se juntasse a mim com o resto, ou que em todo o caso permanecesse em Leiria ou Alcobaça, ou noutro ponto na minha retaguarda, onde pelo menos as suas tropas estariam em segurança. Ele mandou-me as tropas que lhe pedi, na quantidade de 1.400 homens de infantaria e 260 de cavalaria; mas anunciou-me que tinha a intenção de manter o seu proposto plano de operações em relação ao resto do seu exército; não obstante ter-lhe informado que encontrei recursos no país que permitem alimentar adequadamente as suas tropas. Detalho a Vossa Senhoria desta forma particular as circunstâncias que ocorreram, porque estou certo que não foram elas que ocasionaram a separação do exército português do de Sua Majestade [Britânica]. Devia haver no armazém de Leiria pão para as tropas portuguesas para dois dias. Achei em Alcobaça uma quantidade suficiente para lhes alimentar durante um dia, e mais se podia ter obtido; e este lugar [Caldas da Rainha] poderia ter subministrado amplos provimentos.
O General Freire foi informado deste estado dos recursos, mas contudo persiste no seu plano; e reconheço que não posso atribuir essa persistência unicamente aos seus receios (que contudo nunca mos manifestou) de que nós não somos suficientemente fortes para o inimigo. Estou convencido que ele não pode ter motivos pessoais para a sua conduta, pois tenho sido sempre o mais cordial possível; forneci-lhe armas, munições e pederneiras, e tenho feito tudo quanto está ao meu alcance a favor do seu exército; e um dia antes de me ter comunicado a alteração do seu plano para a marcha do seu exército, colocou-se voluntariamente a si próprio, bem como as suas tropas, debaixo do meu comando.
Se soubesse que os recursos do país eram mais amplos do que esperava, teria certamente encarregado-me de alimentar o seu exército, de acordo com a sua vontade; pois considero ser importante, mais por motivos políticos do que militares, que as tropas portuguesas acompanhassem a nossa marcha; mas achei que o Comissariado britânico estava tão mal composto e incapaz de distribuir às próprias tropas britânicas os amplos provimentos que se lhes conseguiram obter, que não quis sobrecarregá-lo com a responsabilidade adicional de providenciar e distribuir provimentos ao exército português. Além do mais, como acima expliquei a Vossa Senhoria, não creio que o motivo alegado causou a determinação que referi.
O General Freire foi informado deste estado dos recursos, mas contudo persiste no seu plano; e reconheço que não posso atribuir essa persistência unicamente aos seus receios (que contudo nunca mos manifestou) de que nós não somos suficientemente fortes para o inimigo. Estou convencido que ele não pode ter motivos pessoais para a sua conduta, pois tenho sido sempre o mais cordial possível; forneci-lhe armas, munições e pederneiras, e tenho feito tudo quanto está ao meu alcance a favor do seu exército; e um dia antes de me ter comunicado a alteração do seu plano para a marcha do seu exército, colocou-se voluntariamente a si próprio, bem como as suas tropas, debaixo do meu comando.
Se soubesse que os recursos do país eram mais amplos do que esperava, teria certamente encarregado-me de alimentar o seu exército, de acordo com a sua vontade; pois considero ser importante, mais por motivos políticos do que militares, que as tropas portuguesas acompanhassem a nossa marcha; mas achei que o Comissariado britânico estava tão mal composto e incapaz de distribuir às próprias tropas britânicas os amplos provimentos que se lhes conseguiram obter, que não quis sobrecarregá-lo com a responsabilidade adicional de providenciar e distribuir provimentos ao exército português. Além do mais, como acima expliquei a Vossa Senhoria, não creio que o motivo alegado causou a determinação que referi.
Marchei de Leiria no dia 13 e cheguei a Alcobaça no dia 14, cujo lugar tinha sido abandonado pelo inimigo na noite anterior; e aqui cheguei ontem. O inimigo, em número de cerca de 4.000 homens, estava postado a cerca de 10 milhas daqui, em Roliça; e tinha ocupado Óbidos, a 3 milhas daqui, com a sua guarda avançada. Como a posse desta última vila era importante para as nossas futuras operações, determinei ocupá-la, e logo que a infantaria britânica chegou ao terreno, ordenei que fosse ocupada por um destacamento que consistia em quatro companhias de caçadores dos Regimentos n.os 60 e 95.
O inimigo, que consistia num pequeno piquete de infantaria e em pouca cavalaria, fez uma resistência insignificante e retirou-se; mas foi seguido por um destacamento dos nossos caçadores até à distância de 3 milhas de Óbidos. Os caçadores foram então atacados por um corpo superior do inimigo, que tentou cortá-los do corpo principal a que pertenciam, o qual tinha então avançado para sustentá-los; em ambos os flancos do destacamento apareceram corpos maiores do inimigo, e foi com dificuldade que o Major General Spencer, que tinha partido para Óbidos quando soube que os caçadores tinham avançado em perseguição do inimigo, conseguiu efectuar a sua retirada para esta vila [das Caldas]. Eles ficaram desde então em posse dela, e o inimigo retirou-se completamente dos arredores.
Lamento acrescentar que neste pequeno confronto dos postos avançados, que foi ocasionado somente pela ansiedade das tropas em perseguir o inimigo, foi morto o Tenente Bunburry, do 2.º Batalhão do Regimento n.º 95, e foi ferido o Capitão Pakenham, embora sem gravidade; e perdemos alguns homens, sobre cujo número ainda não recebi o relatório.
Para além do corpo de cerca de 4.000 homens, comandado pelos Generais Laborde e Thomières, que se está retirando diante do exército [britânico] pela estrada costeira a caminho de Lisboa, existe um outro corpo, de cerca de 5.000 homens, reunido em Rio Maior, debaixo das ordens do General Loison, que deduzo que retirar-se-á pela estrada real de Lisboa; corpos estes que provavelmente reunir-se-ão perto de Lisboa com quaisquer tropas de reserva das defesas das fortificações.
O corpo de Loison foi ultimamente utilizado no Alentejo contra um destacamento espanhol de cerca de 1.000 homens e contra os insurgentes portugueses naquela região, com o objectivo de socorrer Elvas. Entendo que tal corpo sofreu muito na expedição, quer pela fadiga das marchas que fez, quer pela resistência que sofreu.
Quando estava em Alcobaça, comuniquei com o Capitão Bligh, do Alfred, que se encontrava na costa da Nazaré com um comboio de provisões e navios com material de artilharia, e ele desembarcou um abastecimento [de pão e aveia], que espero receber esta tarde; ele encontra-se agora na costa de Peniche, para onde tenciono, se possível, escrever-lhe amanhã de manhã.
Tenho a honra de ser, etc.
Arthur Wellesley
[Fonte: Lieut. Colonel Gurwood (org.), The Dispatches of Field Marshal the Duke of Wellington, K. G. during his various campaigns in India, Denmark, Portugal, Spain, the Low Countries, and France, from 1799 to 1818 – Volume Fourth, London, John Murray, 1835, pp. 76-80; encontra-se outra tradução disponível na obra de Simão José da Luz Soriano, História da Guerra Civil e do Estabelecimento do Governo Parlamentar em Portugal. Compreendendo a História Diplomática, Militar e Política deste Reino, desde 1777 até 1834 – Segunda Época - Tomo V – Parte I, Lisboa, Imprensa Nacional, 1893, pp. 95-99].
___________________________________________________________
Nota:
A 3 de Setembro de 1808, um excerto desta carta seria publicado no n.º 16177 do periódico The London Gazette [excerto esse traduzido no mesmo mês no Correio Braziliense], embora com os topónimos portugueses deformados (facto normalíssimo nos documentos da época, tanto ingleses como franceses). Se algumas destas gralhas podiam e podem ser facilmente perceptíveis e corrigidas para um português (como Lyria = Leiria; Ahobaça = Alcobaça; Boriça = Roliça), uma outra gralha, menos inteligível, deu azo a posteriores confusões sobre a localização dos primeiros confrontos entre britânicos e franceses em território português, travados a 15 de Agosto. Tratava-se do suposto topónimo Brilos [sic], que, apesar de inexistente na região, foi e tem sido sucessivamente reproduzido em bastantes obras sobre as guerras peninsulares, tanto de autores britânicos como de portugueses (por sucessivas cópias da fonte original), e isto apesar de logo no ano de 1835 (senão antes, embora não tenhamos conhecimento) ter sido publicada integralmente a carta acima transcrita (na obra que utilizámos para a traduzirmos), com os topónimos perfeitamente correctos. Segundo esta fonte, tal como acima se transcreveu, Brilos corresponde a nada mais do que Óbidos, que curiosamente também aparecia no referido excerto com o nome de Œbidos [sic].
A contribuir para uma maior confusão, o citado número do jornal The London Gazette também publicara, a seguir ao excerto desta carta, o relatório dos mortos, feridos e desaparecidos da acção da Lourinha [sic], apesar da narração de Wellesley indicar que tais baixas teriam ocorrido entre Óbidos e a Roliça (mais precisamente até à distância de 3 milhas - quase cinco quilómetros - de Óbidos), ou seja, ainda longe da Lourinhã, onde os ingleses só chegariam no dia 18 de Agosto, e onde provavelmente o General Tucker concluiu o referido relatório.