Lisboa, 28 de Junho de 1808.
Uma esquadra inimiga ameaça o porto e a cidade de Lisboa. Independentemente dos seus meios e das boas informações que dispõe, pelas quais obterá vantagens momentâneas, ela pode agir com a confiança que lhe deve inspirar a certeza de ser poderosamente secundada pelos socorros que não deixarão de multiplicar-se no meio da fermentação das ideias que os homens exaltados e corrompidos pelo ouro do inimigo disseminarão com o objectivo de levar o povo a todo tipo de excessos.
Deve-se assim pensar que a cidade e o porto de Lisboa podem ser atacados ao mesmo tempo por mar e por terra; pode-se mesmo adiantar que o momento do ataque não tardará muito, se dermos crédito às diferentes notícias dos postos mais afastados ocupados pelo exército [francês], notícias essas que, contudo, raramente inspiram muita confiança.
Perante este estado de circunstâncias, é urgente considerarmos quais são os ataques que mais se devem recear, bem como os meios pelos quais se podem repelir.
Perante este estado de circunstâncias, é urgente considerarmos quais são os ataques que mais se devem recear, bem como os meios pelos quais se podem repelir.
Considerar-se-á como ataques por mar apenas aqueles que se poderiam tentar investindo sobre o porto [de Lisboa] ou sobre aquela parte da costa que está compreendida entre Peniche e Setúbal; qualquer outra tentativa operada através de um desembarque será considerada na hipótese dos ataques por terra, os quais serão observados depois de se terem considerado os ataques por mar.
Suponhamos assim que o inimigo, informado acerca dos movimentos e dos desenvolvimentos de um ataque por terra, tenciona fazer uma diversão a favor de tal ataque, aproveitando-se do vento do momento, que provavelmente será de nordeste, para passar a estreita entrada [do Tejo], protegida de perto pelo forte de S. Julião, com o objectivo de arribar ao porto [de Lisboa]. Somente se pode esperar, num caso semelhante, que o forte de S. Julião trave a esquadra disparando à queima-roupa; devem alvejá-la apenas aquelas peças de artilharia que poderão estar bem servidas com carcaças, enquanto que todos os outros canhões devem ter como principal objectivo cortar as manobras das embarcações; as baterias altas do forte devem esforçar-se para danificarem e travarem os navios. A verdadeira vantagem que se obteria seria desacelerar o movimento dos navios, forçando-os talvez a afastarem-se, e como eles devem aproveitar o vento para entrar, não é de modo algum improvável que alguma embarcação poderia encalhar nos baixios a norte da passagem, o que seria a maior vantagem que podemos esperar.
É muito pouco provável que os atacantes ancorem diante do porto [de Lisboa], para aí tentarem o desembarque; se porém o ousarem, o General Travot, a quem está confiada a defesa da costa, obterá rapidamente assistência para repelir esta empresa, que não é nada provável, devido ao estado de armamento da margem norte [do Tejo].
Ainda assim, podemos pensar que o inimigo tentará passar as defesas de Belém e da Torre Velha [de Belém], as quais devem, portanto, ser tão reforçadas quanto possível, e isto sem demora; não há dúvidas que, no estado actual das circunstâncias, o inimigo encontrará dificuldades; mas é sobretudo da parte das embarcações russas que ele deve provar uma resistência imponente; a linha de navios, sustentada na direita pela bateria de Belém [=bateria do Bom Sucesso] e na sua esquerda pelo Arsenal da Marinha, posicionando-se o mais perto possível da margem norte do Tejo, apresentará a linha de defesa mais temível que se possa imaginar. Para auxiliar esta mesma linha, devem estabelecer-se baterias de morteiros, o mais rápido possível, no baluarte de Alcântara e na bateria de S. João de Deus; devido à sua localização, estes dois pontos podem receber peças de artilharia que não seriam tão úteis noutros sítios, pois supondo-se que o inimigo passa as nossas defesas e consegue ancorar no porto, gostava de poder manter o fogo multiplicado dos navios de guerra em linha e das baterias de morteiros de Alcântara, de S. João de Deus e do Arsenal da Marinha. Consequentemente, estas baterias de morteiros devem ser estabelecidas sem demora.
Não se devem detalhar aqui cada um dos movimentos e meios de defesa que devem ser utilizados no caso de que o inimigo desembarque tanto a sul como a norte do Tejo, entre Setúbal e Peniche; a defesa dessa parte da costa está confiada aos oficiais que conhecem profundamente o teatro das operações militares que deverão então ocorrer, sendo que as vantagens locais dão grande probabilidade de sucesso [aos franceses].
Linha defensiva do norte do Tejo, segundo o presente relatório do Coronel Vicent
Os marcadores azuis assinalam, da esquerda para a direita: o forte de S. Julião da Barra, a bateria do Bom Sucesso, a torre de Belém, o baluarte de Alcântara (hoje desaparecido), a bateria de S. João de Deus (igualmente desaparecida), e o Arsenal Naval. A linha a azul indica a zona onde se recomendava que se dispusesse a esquadra russa, possivelmente combinada (apesar do Coronel Vicent não o referir) com 2 navios portugueses, o Princesa da Beira (incapaz de navegar e armado como bateria flutuante) e o Vasco da Gama (reparado desde meados de Março de 1808), e talvez ainda algumas fragatas portuguesas (no máximo 5). As linhas a amarelo marcam os limites aproximados dos escolhos e baixios (segundo um mapa de 1811), que tornavam a entrada do Tejo bastante perigosa, sobretudo em maré baixa. Indicámos finalmente com o marcador a amarelo o forte do Bugio, no qual não se encontrava nenhuma guarnição francesa (devido à sua posição demasiado exposta).
Depois desta visão global sobre os meios de resistência a um inimigo que tente forçar o porto com a ajuda da sua esquadra, iremos agora tomar em consideração os ataques por terra, que aparentemente são os que mais devem ser receados pelo porto e cidade de Lisboa.
Suponhamos (ainda que não seja nada provável) que multidões de insurgentes [algarvios] sem controlo, sem qualquer chefe com talento, sem meios de subsistência, e muito provavelmente sem unissonância, ousam penetrar no Alentejo, deixando para trás delas uma praça como Elvas (que nunca deve ter menos de 3.000 homens), para vir passar o Tejo diante dum corpo do exército [francês] que se poderia alcançar uns 6.000 homens. Não hesitamos nada em pensar que podemos passar para o outro lado do Tejo, para tomarmos como primeira linha de defesa o curso do Sor, a partir de Salvaterra, e subindo-o até Soverigno[sic], a partir donde a linha apoiar-se-ia sobre o rio; contudo, se a ponte sobre o Tejo não puder ser construída, e se a tranquilidade de Lisboa não permitir que daqui parta um grande destacamento, ficaremos com uma posição muito mais concentrada e muito mais forte na margem norte do rio. O centro desta posição será na confluência do Zêzere com o Tejo, estendendo-se pela sua direita até Lisboa; e se parecer que esta direita não pode ser forçada, os maiores meios do exército serão desenvolvidos sobre Tomar, Ourém e Leiria, onde provavelmente um oficial instruído encontrará posições defensivas excelentes, na própria geografia do terreno; admitindo no entanto que a esquerda pode ser forçada, o exército retirar-se-á então para entre Santarém e Peniche, onde o terreno, estudado e reconhecido previamente, proporcionará provavelmente meios potentes para repelir o ataque. Não longe dali também se encontra a boa posição de Alenquer e Torres Vedras, a partir donde a direita estender-se-ia até ao Tejo, e a esquerda até ao mar.
Chegando finalmente àquele desagradável estado de circunstâncias no qual o exército se visse reduzido à necessidade de abandonar a posição de Alenquer e Torres Vedras, a sua retirada somente pode ser para Lisboa. [Neste caso], o exército teria ainda antes da cidade uma boa posição, com a direita apoiada na ribeira de Sacavém, e a esquerda nas elevações de Belas. Esta posição, que em pouco tempo pode estar disposta em estado de defesa, impedirá que o inimigo consiga circundá-la ou que recorra a alguma diversão, obrigando-o forçosamente a investir com a sua força principal, operação esta bastante delicada, com escassas probabilidades de sucesso para as tropas verosimilmente pouco aguerridas que tentassem tal ataque.
Dado que os meios de defesa que acabámos de considerar deixam o Alentejo à disposição do inimigo, devemos sensatamente recear que ele dará ordens às suas tropas e artilharia para irem ocupar as colinas de Almada, donde poderá fazer infinitos danos à cidade [de Lisboa] e aos navios; é portanto indispensável que se impeça este perigo, assegurando uma boa posição para proteger Almada e garantir a sua boa defesa.
Supondo-se que fica bem estabelecida a primeira linha acima mencionada, cuja direita se estende da foz do Zêzere até Lisboa, será pouco provável que o inimigo consiga passar para a margem norte do rio por esta parte do seu curso; talvez tente passá-lo acima da boca do Zêzere, mas seremos informados disso, e, movendo-nos ao longo da margem norte desse rio, podemos disputar a sua passagem pelo menos até Pedrogão, elevação considerável, na qual podemos tentar impedir que o inimigo se reúna com os corpos que poderão vir da Beira Alta, do Porto e de Coimbra; contudo, supondo-se que se efectua esta junção, a defesa seria precisamente a mesma que antes abordámos, e não se esperariam novas combinações de defesa.
A força de dois ou três mil homens que supomos estar entre Leiria e Mafra poderá facilmente concertar as suas operações com os seis mil homens encarregados da defesa da margem norte do Tejo e da linha de Tomar a Leiria; estas forças serão provavelmente suficientes para enfrentar as aproximações à capital, enquanto que as tropas deixadas no interior estarão ocupadas no importante dever de manter a tranquilidade.
A força de dois ou três mil homens que supomos estar entre Leiria e Mafra poderá facilmente concertar as suas operações com os seis mil homens encarregados da defesa da margem norte do Tejo e da linha de Tomar a Leiria; estas forças serão provavelmente suficientes para enfrentar as aproximações à capital, enquanto que as tropas deixadas no interior estarão ocupadas no importante dever de manter a tranquilidade.
Contudo, com o objectivo de compreender todas as hipóteses mais ou menos verosímeis e as mais funestas para o exército [francês] – um dever que devemos impor, mesmo que o raciocínio se recuse a submeter-se – suponhamos que o exército é forçado a evacuar Lisboa. A divisão de Travot aproximaria-se para Belém, preservando as colinas da Memória e das Necessidades, para ajudar a garantir a tranquilidade na cidade. Todos os tipos de depósitos do exército serão removidos para a margem norte do rio, onde não possam ser atacados. Sacavém será o ponto de reunião, e o exército, caso se veja forçado a retirar, começará a fazê-lo a partir deste ponto, passando por Santarém até Tomar, a partir donde passará o Zêzere em Vila de Rei, continuando então a subir até Belmonte, Guarda e Almeida, passando por Sertã, Monte Gordo e Atalaia.
Itinerário da retirada do exército francês pela Estremadura e Beira
Ao alcançar Almeida, o exército conservará provavelmente forças suficientes para atravessar a Espanha, ou o que ainda é mais provável, para efectuar a sua reunião com os corpos de tropas que estiverem mais perto.
Supomos que a retirada que se deve fazer pela província da Beira e até Almeida é a única retirada possível, se o rio [Tejo] cair no poder do inimigo; mas é muito mais provável que, em caso contrário, a retirada seja encaminhada por Elvas.
Itinerário da retirada do exército francês através da "melhor estrada de Portugal".
A passagem do rio, tal como foi prevista antes, não apresentará provavelmente dificuldades algumas, estando reunido um grande número de barcos na ribeira de Sacavém e ocupando o exército a extensão da margem norte [do Tejo]; as tropas entrincheiradas em Almeida retirar-se-ão para proteger o desembarque na margem esquerda; e o exército poderá fazer a retirada pela melhor estrada de Portugal, o que dá toda a esperança que será realizada na melhor ordem, vantagem esta temos todo o direito de esperar que nunca ambicionaremos.
O Coronel de Engenheiros,
Vincent.
[Fonte: "Colonel Vicent's Report upon the Defence of Portugal", in Supplementary Despatches and Memoranda of Field Marshal Arthur, Duke of Wellington, K.G. - Vol. VI, London, John Murray, 1860, pp. 145-148 (texto original francês); uma tradução em inglês, deturpada nalguns trechos, tinha sido previamente publicada com o título de "Translation of the Plan of Defensive Operations for the French Army in Portugal", in Correspondence, Despaches, and other papers, of Viscount Castlereagh – Vol. VI, London, William Shoberl Publisher, 1851, pp. 376-381. Existe uma outra cópia do original francês, in Luís Henrique Pacheco Simões (org.), "Serie chronologica da correspondencia diplomatica militar mais importante do General Bernardim Freire de Andrade, Commandante em Chefe do Exercito Portuguez destinado ao resgate de Lisboa com a Junta Provisional do Governo Supremo estabelecido na cidade do Porto e o Quartel General do Exercito Auxiliar de S. Magestade Britanica em Portugal", in Boletim do Arquivo Histórico Militar - Vol. I, Lisboa, 1930, pp. 153-227, pp. 74-77 (doc. 117)].