Julgando-se conveniente fazer aprisionar as Brigadas francesas que se achavam em Pombal e Leiria, e fazer ali aclamar o nome do nosso Augusto Príncipe, se expediu para esse fim o nosso Destacamento composto de um Furriel e 15 companheiros Estudantes e soldados de Cavalo, o qual saindo de Coimbra no dia 28 de Junho, entrou às 7 horas em Condeixa, onde fomos recebidos pelo Povo com todos os aplausos e demonstrações de alegria e do maior valor, repicando os sinos, pondo à noite luminárias e lançando foguetes ao ar. Entre todos se distinguiu muito o Padre Regente do Hospício de S. António, pegando logo em armas, e acompanhando-nos a algumas diligências de que íamos incumbidos pelo nosso Excelentíssimo Governador.
No dia 29 de manhã continuámos a nossa marcha, cujos incómodos e fadigas eram suavizados com a briosa e agradável lembrança de sermos os primeiros a aclamar em todas as terras, por onde passávamos, o nome do nosso amado Príncipe; e chegando à Ega, aí foram despedaçados alguns editais do Governo intruso, descobertas as Armas Portuguesas entre vivas do Povo, e dadas ordens para o seu governo e segurança ao Capitão das Ordenanças desta vila, Manuel Moniz de Gouveia Rangel, honrado e fiel Patriota. No mesmo dia entrámos em Soure, e esta vila nos encheu da maior satisfação pela sua fidelidade. Nós conhecemos então que a memória dos Príncipes justos, como o nosso, não se extingue jamais, e que ele por isso, ainda que ausente, reinava nos corações de todos os bons portugueses. Músicas, descargas de mosquetaria e contínuos vivas inflamaram extraordinariamente nossos corações. Lágrimas de prazer banharam nossas faces, e as de todo aquele fiel e honrado povo, ouvindo a exortação que o zelo pelo bem da Pátria inspirou e fez publicamente sem meditação alguma pronunciar na praça daquela vila ao M. R. P. M. [Muito Reverendo Padre Mestre] Frei José de Santa Marta, Religioso de S. Francisco, o qual desde Coimbra nos havia acompanhado, e depois nos seguiu sempre. Ela é:
VALOROSOS PORTUGUESES
Quis finalmente a Providência libertar-nos do mais áspero e infame cativeiro. A Pátria dos Fenelons e dos Racines, inteiramente desfigurada, tem lançado o terror e o estrago em toda a Europa. Vítimas da sua perfídia, nós gememos há longo tempo, curvados debaixo do peso enorme do mais violento Despotismo. Abusando dos nomes os mais sagrados, dos Direitos mais caros ao nosso coração, sem natureza, sem humanidade, estes Godos do século décimo nono têm vindo proteger-nos, saqueando os nossos templos, profanando as nossas casas, atacando a nossa propriedade e a nossa independência. Nos dias de seu furor, o Inferno não tem jamais vomitado monstros iguais a estes monstros. Porém, graças aos Céus! já podemos respirar. Um Astro benigno parte do Norte, ponto da sua Aurora, para espalhar em todo o Portugal seu clarão brilhante. Coragem, bravos compatriotas. Nós temos à vista os filhos da Pátria, os verdadeiros heróis, encarregados de defender nossos mais prezados interesses. Marchemos a seu lado, Ah! Deus o manda, corramos a vingar a Pátria ofendida. A causa é da Religião, do Estado, do Género Humano. Caia em pedaços pelo nosso valor esse Colosso formidável que esmaga a liberdade de todos os Povos da terra. Vencer ou morrer seja a nossa divisa. Viva o Príncipe Regente Nosso Senhor. Vivam a Pátria, a Liberdade, a Honra. Viva o bravo Corpo Académico. Vivam os Leais Habitantes de Soure.
Nesta ocasião manifestaram o maior interesse pela causa comum o Dr. Juiz de Fora e o Juiz do Povo, assim como todos os outros moradores da dita vila; muitos dos quais nos acompanharam a Leiria e Nazaré.
Partindo quase à noite para Pombal com o desígnio de atacarmos as Brigadas francesas de Condeixa e Pombal, as quais se dizia [que] estavam ali reunidas, nós tivemos a mágoa de não ver ainda realizados nossos vivos desejos, pois que aquela vil tropa de insolentes espiões se pôs em fugida logo que chegámos àquela terra, onde depois de termos novamente aclamado o nosso Augusto Príncipe, descobrimos as suas Reais Armas e restabelecemos o Governo Português. Marchámos depois a cumprir as ordens do nosso Excelentíssimo Governador, pondo em cautela e segurança os pérfidos e vis partidistas franceses, que tanto ofuscam a glória da Nação Portuguesa, cujo nome desmerecem pelo enormíssimo crime de traidores à Pátria: monstros! Seduzidos por um falso e sórdido interesse, eles sacrificam à mais horrível tirania a sua Religião, o seu Príncipe e os seus Concidadãos. Por impedimento da autoridade legítima e vontade do Povo, nós entregámos o Governo Civil ao Vereador mais velho, o Dr. Luís António, e o [Governo] Militar ao Capitão de Milícias de Leiria, Francisco Peregrino de Meneses, para que guarnecesse a vila, examinasse os passageiros e prendesse os suspeitos. Cantou-se com toda a solenidade pelo Clero Secular e Regular o Te Deum em acção de graças pelo grande benefício de termos sacudido o jugo dos Usurpadores, que tanto nos oprimia; e no meio de tantos cuidados não esqueceu mandarmos espiar a estrada por onde devíamos marchar, procurando sempre ter notícias do inimigo; e sabendo que ele estava em Leiria, partimos a procurá-lo.
Perto de Leiria mandámos dois camaradas nossos a descobrir campo. Imediatamente foram cercados pelo inimigo e atacados, mas estes dois bravos portugueses dispararam suas pistolas e fizeram recuar vinte e dois franceses. Informados por eles, e temendo [que] nos escapasse a presa, deixámos as Ordenanças de Pombal, que nos seguiam, e partimos a todo o galope para Leiria. Estavam os franceses postados em linha na ponte desta cidade com ânimo de resistir. Nós os vemos, voamos a eles, e tudo foge. Metemos à estrada real em seu seguimento, mas os cavalos cansam[-se] e não podem avançar. Seis camaradas somente puderam seguir vinte franceses fugitivos; seus nomes devem passar à mais remota idade: José Joaquim de Sá, João Pedro Correia, Gonçalo Velêz Zuzarte, Joaquim Monge, Manuel José Soares da Cunha Paixão, Caetano Rodrigues de Macedo afugentam com terror vinte soldados velhos e aguerridos. Seis moços sem experiência fazem tremer vinte heróis de Marengo e de Jena! Quatro Dragões franceses de Cavalaria foram aprisionados. Um, por irmos já quatro somente, foi desarmado e dando sua palavra de honra de não arredar pé, não a cumpriu, escapando-se. Não é de admirar em tais soldados um tal procedimento!
Dos quatro camaradas, dois se demoraram com um francês que resistia; e dois partiram até os Carvalhos, perseguindo o resto. Estes dois bravos homens devem ser imortais na História. Seus nomes são José Joaquim de Sá e João Pedro Correia. O primeiro, arrebentando o seu cavalo nas alturas da Batalha, correu animosamente a pé com a espada numa mão, e a pistola na outra, em seguimento do inimigo; o segundo encarou só com três inimigos, dos quais feriu perigosamente um Gens d'armes [sic]. Os resultados deste brilhante combate foram quatro prisioneiros, cinco cavalos, três doentes que se achavam no Hospital, e quatro feridos, que ainda puderam fugir. Da nossa parte não houve o mais pequeno perigo.
Voltámos para Leiria recebendo os maiores aplausos de todo aquele Povo, que tinha sido testemunha da nossa coragem, e dirigindo-nos à praça, onde se achavam já postados os nossos camaradas e a Ordenança de Pombal, aí com o maior gosto pela vitória e risco que corremos, tivemos a honra e a satisfação de aclamar o nosso Príncipe; e partindo à Casa da Câmara um dos camaradas Gonçalo Veléz Zuzarte a buscar o Estandarte Real, a Bandeira Portuguesa foi arvorada em todas as ruas da cidade, manifestando-se em toda ela um regozijo universal.
No dia seguinte falámos a Sua Excelência Reverendíssima, e lhe rogámos [que] quisesse aceitar o Governo Civil da cidade o que ele por justas razões recusou, oferecendo-se como leal português para tudo, excepto para mandar. Consultámos também a vontade do Povo para a eleição do Governador militar, e unanimemente elegeram a Miguel Luís de Ataíde e Silva, o qual, vendo a absoluta falta que havia de pólvora e bala, e que mesmo os paisanos estavam mal armados, partiu para Coimbra a pedir socorro e alcançar inteligências[=informações].
Enquanto esperávamos novas ordens, chegou um ofício levado pelo Juiz do Povo de Tomar, para que lhe prestássemos o pequeno auxílio que estava em nosso poder. Tratando de pôr esta ordem em execução, o Juiz dos Povos da Pederneira e Nazaré nos veio representar a urgente necessidade que havia de os socorrer; que aqueles povos já tinham sofrido um saque de víveres, que os franceses levaram para o Forte; que actualmente andavam já em combate com eles, porque queriam prender os principais daquelas terras, e levá-los para o Forte, onde seriam os primeiros que morressem, se eles franceses tivessem algum perigo. Estas apertadas circunstâncias juntas às vozes do povo de Leiria, que nos instava a dar o socorro pedido, nos determinaram a marchar pelas 2 da tarde, levando connosco 60 homens da Ordenança de Leiria ou Pombal, e outros tantos de Pataias, e às 9 da noite chegámos a Nazaré. No Forte deste nome, no de S. Gião e S. Martinho, que ficam vizinhos, havia 150 soldados franceses, e era além disso muito fácil chegar socorro do corpo aquartelado em Peniche. Tantas dificuldades não bastaram a enfrear o nosso ardente espírito. Fizemos a 80 passos de distância um reduto de areia e faxina, de altura de um homem, e por cima lhe pusemos algum mato, que nos encobrisse da pontaria do inimigo, e aí assentámos as nossas quinze espingardas. O reduto ficava muito superior ao Forte, e como os franceses tinham posto a sua artilharia sobre o terraço, era preciso descobrirem-se para lhe darem fogo, o que não podiam fazer sem grande risco, e morte quase certa. E por isso se serviam do estratagema de porem as barretinas sobre paus, para ver se se nos acabaria a pólvora, o que certamente sucederia, a não ser o seguinte.
Nestas circunstâncias nos chega a notícia de terem os franceses do Forte de S. Gião fugido vergonhosamente, sem verem de quê, desamparando-o e deixando a artilharia encravada. Corremos ao Forte com o intento de desencravar as peças, o que conseguimos, tão mal encravadas estavam! E um rapaz que assistira à sua fugida nos certificou que tinham enterrado dois barris de pólvora, muita bala e metralha; e procedendo a desenterrar este tesouro, achámos tudo verdadeiro.
Levámos duas peças, e assentámos uma em lugar vantajoso, sem que fossemos percebidos pelo inimigo. Começamos a fazer fogo com o intento de arrasar o Forte, o que o povo nos pedia com muita instância, para que os franceses não se tornassem lá a estabelecer. Então nos veio a notícia de ter chegado a Olidos (vila que só dista 4 léguas) o General Thomiers com parte da guarnição de Peniche. O povo se intimidou, mas nós não soçobrámos; cortámos as duas pontes por onde o inimigo havia de passar, e assestamos uma peça de 18 carregada de metralha na direcção da estrada. Entretanto, o dito General perguntou ao Juiz de Fora de Óbidos que força seria a do corpo inimigo, e dizendo-lhe este que o ignorava, mas que se dizia ser um Exército composto de portugueses e espanhóis, e que traziam artilharia; esta última asserção se achou confirmada porque o mesmo Thomiers ouviu os tiros que disparávamos não foi preciso mais para ele fugir para Peniche, temendo ser cortado, e tivemos notícia verídica de ter mandado apear a artilharia e embarcar a pólvora. Talvez seus receios se realizassem, e que o fossemos atacar, se os inimigos vindos de Lisboa não tivessem ocupado Leiria por traição, segundo se afirma, de pessoas da mesma cidade. Até se diz que mandaram o plano da nossa marcha, número e intentos, para que pudéssemos ser presos e remetidos para Lisboa. Porém, uma favorável estrela nos acompanhava, e tínhamos de fazer aquela conquista.
Verificada a marcha retrógrada do inimigo, apertámos o cerco do Forte, e temendo que ele nos fugisse de noite, dispusemos sentinelas de 20 em 20 passos, dando vozes para se vigiar toda a noite; mandámos fazer diferentes fogos pelo campo, e o piquete andou a correr pelos outeiros de um para outro lado, para fingirmos ordens de um Corpo principal. Na madrugada os inimigos intentaram sair, fazendo um ataque de baioneta calada (como ao depois afirmaram); mas como nós o esperávamos e tínhamos dado as providências para o repelir, recolheram-se com mais pressa do que saíram. Ao amanhecer disparam dois tiros de peça, a que nós respondemos com outros dois; o primeiro tiro nosso levou a porta do Forte; o segundo, entrando pela mesma porta, derribou a abóbada da casa onde dormia o Comandante Miron; continuou o fogo, até que das onze para o meio-dia nos fizeram sinal para que o parássemos, e que descesse lá alguém. Mandámos um homem que foi conduzido com um lenço nos olhos para dentro do Forte, e levado à presença do Governador; este lhe perguntou de que nação éramos, e por ordem de quem combatíamos; respondemos que éramos portugueses e que combatíamos por ordem de Sua Alteza Real o Príncipe Nosso Senhor. E como víssemos que pretendia ganhar tempo com frívolas negociações, intimámos à guarnição que, a não se entregar logo, a passaríamos à espada; a que o dito Miron respondeu que fizessem os portugueses o que quisessem, que ele faria igualmente o que lhe parecesse. Continuámos o fogo, mas logo depois arrearam a bandeira, ficando prisioneiros de guerra, e custou-nos muito a livrá-los, principalmente ao Governador, das iras do povo, ao qual ele tinha tratado com suma insolência. Durante o certo tínhamos morto cinco franceses.
Inventariámos o que havia no Forte, e deixámos ao povo coisa de 100 armas e o cartuchame, porque as pedia, e com razão, em altas vozes, para estarem em defesa contra o insulto, ao menos de algum Destacamento inimigo. Determinámos que a artilharia e dois mil e tantos arráteis de pólvora se pusessem em caminho para fortificar Leiria.
Depois nos reunimos aos nossos camaradas, e com 50 prisioneiros marchámos para Leiria na tarde do dia 5 de Julho, por ignorarmos que nesse mesmo dia tinham os franceses entrado naquela cidade. Porém, pelo caminho fomos ouvindo rumores vagos a este respeito, até que em Pataias achámos o facto mais verificado; mandámos dois camaradas fazer de tudo um rigoroso exame, e este na distância de légua e meia de Leiria nos aclararam toda a verdade. Então um militar de Pombal, prático naquelas estradas, nos fez marchar em direitura à Marinha[-Grande]; porém, universalmente se asseverava que estávamos cortados e que o inimigo nos procurava. Chegando à Marinha, achámos tudo fechado, e a muito custo um homem, vendo que falávamos português, nos disse que já alguns franceses tinham passado adiante. Vendo-nos em tanto risco, separámo-nos, e fizemos marchar os prisioneiros para a praia do mar, com 20 Ordenanças, e a maior parte da Cavalaria se meteu ao Pinhal Real, onde em partes o mato nos impedia os passos; os prisioneiros, para mais desembaraço da marcha, vinham soltos. Tantos incómodos foram bem compensados por chegarmos à Figueira [da Foz] sãos e salvos, com todos os prisioneiros e a bandeira inimiga depois de marcharmos treze léguas por toda a noite, sem descansar.
Nós omitimos muitas pequenas circunstâncias, que tornavam sumamente extensa esta relação; mas não podemos deixar de admirar a grande intrepidez e presença de espírito destes Voluntários no meio de tantos riscos, sempre renascente. Os valorosos guerreiros do Forte de S. Gião fizeram uma fugida tão fora de propósito, que a todos causa espanto, e nos deixaram artilharia e muitas munições de guerra, sem as quais era impossível continuar o cerco. A fugida de Thomiers, que trazia 300 homens, é ainda mais extraordinária. A nossa boa retirada, enfim, não pode ser devida senão ao susto do inimigo, que se fiou em vozes vagas da nossa suposta força, e não teve ânimo para nos mandar reconhecer. A mesma acção da Figueira mostra grande cobardia da parte dos franceses, porque cem homens muito bem providos de pólvora e bala, ainda não usando da artilharia, se saíssem do Forte e atacassem os nossos 30 Voluntários, e um pouco de povo mal armado, tornariam pelo menos muito incerta a vitória. Porém nada fizeram; deixaram-se ficar e entregaram-se como cordeiros.
Assinado: o Comandante Vitorino de Barros Carvalhais.
[Fonte: Minerva Lusitana, Coimbra, n.º 10, 23 de Julho de 1808; Minerva Lusitana, Coimbra, n.º 11, 26 de Julho de 1808; Minerva Lusitana, Coimbra, n.º 12, 27 de Julho de 1808; Minerva Lusitana, Coimbra, n.º 13, 28 de Julho de 1808].