terça-feira, 17 de maio de 2011

Carta de Geoffroy Saint-Hilaire a Georges Cuvier, Director do Museu de História Natural de Paris (17 de Maio de 1808)



Lisboa, 17 de Maio*.




Meu digno amigo:


Ia informar-vos da minha chegada a este país quando recebi a carta que me haveis dado o prazer de me escreverdes para Madrid. Os conselhos que me nela me dais sobre as dificuldades que teria nesta última cidade permitir-me-iam conhecer, se não tivesse já milhares de outras provas, toda a previdência do vosso espírito e toda a vossa amizade para comigo. Dado que estou em Lisboa, devo dizer-vos que tinha considerado perfeitamente o meu terreno.  
Já estive aqui com o Excelentíssimo Governador-Geral [Junot], que me recebeu da forma mais gentil. Ainda não sei se vos poderei servir relativamente à relação das massas**; tenho exactamente as mesmas ideias que vós e podeis estar seguro que farei o meu melhor.
Ainda não tive tempo para ver as colecções; assim, não tenho nada para vos dizer sobre este ponto.
Encontrei aqui um dos meus amigos, o General Loison, que desempenha o papel de segunda personalidade do exército; ele está intimamente ligado ao General Comandante em Chefe [Junot]. Quando saí da casa deste último, Loison foi visitar um amigo seu que estava doente, em cuja casa me encontrava. A conversa tornou-se mais íntima, e aproveitei algumas disposições que eu via que eram favoráveis para o nosso caro Correia, a fim de lhe preparar o restabelecimento da sua pensão; pedi-lhe que cresse que tem aqui um correspondente cheio de zelo e devoção, e pedi-lhe a graça de não ser parcimonioso comigo. 
Haveis-me dado um grande prazer ao me anunciardes um trabalho sobre as aves da colecção: tentarei retribuir [com um trabalho sobre os] moluscos o que haveis feito sobre aquela parte da minha administração.
Não foi sem trabalhos, meu caro amigo, que aqui cheguei: o que bem vejo pelos termos da vossa carta, que haveis receado por mim, acabou por me acontecer!
No dia 2 de Maio, foi dado um correctivo à populaça em Madrid. Um alcaide, a três léguas, exagerando esses acontecimentos, espalhou falsas notícias, alarmes e gritos de vingança por todo o reino (parte oeste e sul), através de mensageiros enviados por todas as estradas: num instante, o reino sublevou-se. Eu estava então a meio caminho entre Madrid e Lisboa. Ao receber tais notícias, vi-me rodeado, assim como o meu companheiro Lalande, por uma populaça em efervescência. Pronto para fugir à noite por caminhos desviados, a fim de evitar um grupo que vinha ao nosso encontro para nos desfazer aos bocados, fui preso pelos magistrados de Mérida, os quais tinham destacado cavaleiros que nos alcançaram em San Pedro. O povo esperava-nos às sete horas da tarde, porém foi enganado pelo nosso plano de fugir mais tarde: chegámos perto da uma da madrugada, mas encontrámos ainda bastante povo para provarmos todas as angústias e os combates mais penosos. Apedrejado por duas vezes, foi um milagre que tenha podido escapar [com vida] nessa ocasião. Entrei por fim num asilo que se tornou para mim num porto de salvação: era a prisão dos criminosos de Mérida. Fomos aí misturados com eles. Fomos severamente revistados e despojados. Encontrámos-nos na situação de invejar os miseráveis cujo alojamento partilhávamos, os farrapos sobre os quais repousavam a sua cabeça; os grilhões de um deles foram a minha almofada. 
Para cúmulo da desgraça, esses prisioneiros partilhavam o patriotismo dos homens livres; tínhamos assim inimigos nesse lugar, embora depressa os tenhamos conquistado pela nossa liberalidade. Ainda que seguros no interior [da prisão], estávamos bastante preocupados em relação ao seu exterior. No dia seguinte, um grupo mais numeroso de populares tentou por duas vezes assaltar a prisão, para invadi-la ou para nos extrair dela. Por fim, o objectivo foi tentado através dum incêndio. A guarda repeliu com bastante energia os nossos inimigos, mas um só homem fez mais do que todos, o alguazil mayor [sic(chefe dos oficiais de justiça), homem extremamente forte, o qual nos tinha também maltratado enquanto o pôde fazer dentro [da prisão], mas que ainda que estivesse confiante de ter bem servido a causa dos espanhóis nesse ponto, defendeu-nos corajosamente no exterior. O seu bastão, que golpeava a cada momento, teve mais efeito que as baionetas.
Assim que soube da nossa aventura, o General de Badajoz ordenou que fossemos libertados. Essa ordem chegou no quarto dia [cerca de 8 de Maio]. O que ganhámos com isso foi irmos ocupar a cela das mulheres ou o primeiro andar da prisão, cuja porta era vigiada pelo povo, bem como as estradas por onde poderíamos fugir: foi preciso continuarmos presos mais quatro dias.
Toda esta efervescência derivava duma notícia falsa, e tudo cessou quando se soube melhor o que tinha acontecido. O receio sucede hoje ao furor; a vergonha está em todos os espíritos. Lança-se sobre o alcaide, autor da notícia, a causa de tantas desgraças; ele é acusado pelos seus com um encarniçamento que demonstra o seu arrependimento. Como o que aconteceu não voltará certamente a acontecer, pude contar-vos a nossa aventura.
O pior foi o rombo na minha carteira; foi preciso pagar todos os serviços que me foram prestados, os guardas, os carcereiros, os prisioneiros, as notícias verdadeiras ou falsas que nos vinham trazer, as mulas da carruagem que havíamos alugado a 100 francos por dia, outras mulas que se mantinham prontas para fugir por caminhos desviados, e os nossos víveres a preços 20 vezes superiores ao seu valor habitual. Encontrei-me assim na situação de ter que pedir emprestado a Lalande o seu pouco dinheiro e depois a dois outros companheiros*** que, como iam na nossa viatura, partilharam a nossa detenção.
Aqui [em Lisboa] não passo necessidades. As bolsas de Loison e Margaron abriram-se para mim, e Loison acaba de pôr à minha disposição os bens dum homem que teria uma fortuna de 40 milhões. Ou seja, vou viver em casa dum banqueiro que  dispôs toda a casa ao serviço do seu hóspede.
Contudo, caro amigo, peço-vos que queirais pedir ao Sr. Thouin para continuar a reembolsar as minhas despesas de viagem, que são contabilizadas na base de 308 postos a partir de Paris, dado que cada légua do país conta como um posto no serviço militar. Enviei de Madrid um pedido para [pagamento das despesas] de Paris a Madrid visado pelo Inspector dos Correios e pelo Intendente-Geral sob o ponto de vista da distância; vou enviar um outro para o resto do caminho.
O General Margaron empenhou-se para ter perto dele o vosso enteado, a título de Ajudante de Campo****; ele fez diligências nesse sentido que devem ter sido seguidas pelo nosso amigo o Sr. Lebreton. Se ele estava prestes a partir, que venha até aqui sem receio. A Espanha e Portugal estão na mais profunda paz: um homem sozinho pode atravessar sem riscos agora esses dois países. Ademais, ambos países estão perfeitamente observados. 
Como receio que não haveis recebido os pedidos do General Margaron, vou fazer com ele façum duplicado, que vos remeterei sem demora. 
[Espero que] queirais, meu caro amigo, continuar a dar-me notícias vossas; não podeis ter uma ideia do prazer que elas me deram.
Apresentai os meus respeitos às vossas senhoras e recordai-me também à lembrança dos nossos colegas, tanto do Museu de História Natural [de Paris] como da sociedade do chá*****.
O vosso todo dedicado e eterno amigo,

Geoffroy Saint-Hilaire


[Fonte: E.-T. Hamy, "La mission de Geoffroy Saint-Hilaire en Espagne et en Portugal (1808). Histoire et documents", in Nouvelles Archives du Muséum d'Histoire Naturelle, Quatrième série - Tome dixième, Paris, Masson et C. Éditeurs, 1908, pp. 1-66, pp. 41-43].

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Notas:


* Esta carta foi lida a 15 de Junho de 1808 em sessão do Museu de História Natural de Paris.


** O termo francês masses (em itálico no texto original), que traduzimos literalmente, é demasiado ambíguo (tanto em francês como em português) para podermos determinar com precisão a que se referia Geoffroy Saint-Hilaire.


**Alusão aos dois soldados franceses que tinham passado (aparentemente em Madrid) a acompanhar Geoffroy Saint-Hilaire e o seu assistente Lalande na sua viagem até Portugal. Ver a este respeito a carta de Saint-Hilaire ao seu sogro, datada de 29 de Abril de1808.


**** Tratava-se de Thélème Duvaucel, um dos quatro filhos das primeiras núpcias de Madame Duvacel, a qual enviuvara e casara por segunda vez em 1804 com Georges Cuvier, que naturalmente adoptara os seus filhos. Depois de regressar à França na sequência da Convenção chamada de Sintra, Thélème voltaria a Portugal e aí acabaria por morrer, em 1809, durante a retirada do exército francês do norte do país. Curiosamente, um dos irmãos de Thélème era Alfred Duvaucel, que além de naturalista como o seu padrasto, foi também um reconhecido explorador. [Cf. Mrs. R. Lee, Memoirs of Baron Cuvier, London, Printed for Longman et al., 1833, pp. 29-30; trad. francesa: Mémoires du Baron Georges Cuvier, Paris, H. Fournier Libraire, 1833p. 31].


****Denominação duma sociedade, promovida por Georges Cuvier, que se reunia aos Sábados