terça-feira, 23 de novembro de 2010

Pastoral do Bispo do Porto favorável à ocupação espanhola e francesa









Depois do Cardeal Patriarca de Lisboa e do Inquisidor Geral terem feito as suas pastorais favoráveis aos franceses, foi a vez do Bispo do Porto se dirigir ao seu rebanho com idêntico fim. O documento que abaixo se transcreve é obra, segundo as palavras de Simão Luz Soriano, de um "homem hipócrita e sanguinário, porque ou dizia o que não sentia, quando proclamava a favor dos franceses, ou quando mais tarde proclamou também contra eles"... [in História da Guerra Civil... - Segunda Epocha. Tomo I, Lisboa, Imprensa Nacional, 1870, pp. 40-41].
No momento oportuno serão aqui publicados alguns dos documentos que originaram aquele juízo de Luz Soriano. Por agora, fiquemos com a pastoral de D. António de S. José de Castro datada de 18 de Janeiro de 1808:









Dom António de S. José de Castro, por mercê de Deus e da Santa Sé Apostólica, 
Bispo do Porto, do Conselho de Sua Majestade.

A todos os nossos amados Diocesanos, saúde e paz em Jesus Cristo Nosso Senhor.

Se o Ofício Pastoral nos obriga a vigiar sobre a guarda e sossego das ovelhas que nos foram confiadas pela Divina Providência, quanto mais nas actuais circunstâncias, em que as consideramos tímidas e vacilantes, deveremos ser em sua companhia ao menos por meio desta Carta Pastoral, para excitarmos no íntimo dos seu corações sentimentos de paz e de tranquilidade, a fim de se conservarem quietas e pacíficas?
Sim, amados diocesanos: nós vos consideramos assustados e solícitos, vendo entrar no vosso país numerosos Exércitos, não sabendo o seu destino. Talvez aumente os vossos receios a recordação do que praticaram noutro tempo, nesta nossa pátria, os bárbaros do norte e os cruéis africanos, quando vieram arrasar os nossos templos, violar os direitos mais sagrados, e derramar sobre a terra o sangue de inocentes vítimas. Não, amados filhos, não é esta a nossa sorte. Estas tropas, que aqui vedes entrar, são nossas aliadas e pacíficas; e quem as manda entrar tem sido prevenido, armado por Deus de poder e de sabedoria para as fazer entrar, e para as saber dirigir ao fim da nossa felicidade; e devemos seguramente confiar no mesmo Senhor, que não seja outro o seu destino. 
Sim: o Imperador dos franceses e Rei de Itália, o Grande Napoleãonão poderia de outro modo servir-se de nós para aumentar a sua verdadeira glória, senão fazendo-nos felizes. Nem é crível que na grandeza sem igual do seu coração, no ardente desejo de sua glória, pudesse entrar em Portugal para outro fim. Este grande Imperador elevado sobre o Trono dos seus Triunfos tem unido a eles a glória de fazer dominar a nossa Sagrada Religião nos seus Estados. Sua Majestade Católica [o rei espanhol D. Carlos IV], ao mesmo tempo, que no constante desempenho deste título tem feito a sua glória imortal, igualmente nos dá também toda a segurança da permanência do Sagrado Culto em que fomos educados. Os poderosos Exércitos destes grandes monarcas são precedidos de proclamações de segurança, de paz e de justiça; e a experiência nos está mostrando estas mesmas proclamações realizadas todos os dias. Nós estamos vendo esta grande cidade cheia de tropas estrangeiras em tanto sossego e boa disciplina que mais não se poderia esperar das nossas tropas nacionais. A segurança e o sossego nesta cidade são iguais em todas as horas do dia e da noite. O Il.mo e Ex.mo General D. Francisco de Taranco, digníssimo Chefe do Exército espanhol, a quem se deve toda a boa ordem e sossego desta cidade, além do ensino que lhes dá com o bom exemplo das suas relevantes virtudes, é ao mesmo tempo um observador vigilante sobre as mais ligeiras faltas de disciplina dos seus súbditos; e estes, debaixo das suas sábias providências, toleram com edificação os incómodos que andam anexos a semelhantes conflitos. Os templos estão cheios destes militares que edificam e que por tudo isto nos põem interiormente na necessidade de os amarmos como próprios filhos; e exteriormente, na obrigação de darmos este testemunho público da nossa satisfação e do seu merecimento. E esperamos que este testemunho, fundado já na experiência e conhecimento destas tropas religiosas, pacíficas e bem disciplinadas, vá servir não só para desvanecer nos vossos ânimos qualquer receio que vos pudesse causar a sua entrada; mas também para mostrar a obrigação em que estamos todos de praticar com elas todos os bons ofícios de caridade e de hospitalidade, como se fossem nossas próprias, e ainda mais por se acharem fora do seu país.
Por outra parte, nossos amados filhos, nós não somos insensíveis aos vossos indispensáveis incómodos, e não podemos deixar de louvar o exemplo edificante que nas actuais circunstâncias tendes dado no desempenho de todas as obrigações da honra e da virtude; a actividade, o zelo e a prudência das pessoas encarregadas de prevenir e aprontar tudo quanto podia ser necessário para o bom aquartelamento das tropas aliadas; a religião, a resignação e a hospitalidade de todas as corporações religiosas, que sem faltarem a uma só obrigação dos seus institutos, ao mesmo tempo cederam prontamente dos seus cómodos e dos seus pobres aposentos para hospedagem destas tropas estrangeiras; a prontíssima vontade com que todos os nossos diocesanos se têm prestado a concorrer com que todos os nossos diocesanos se têm prestado a concorrer com tudo quanto lhes foi pedido para o aquartelamento das mesmas tropas; tudo isto conhecemos, tudo isto louvamos e agradecemos; e assim resta só pedir-vos que continueis como tendes principiado, e exortar-vos a quem com o maior desvelo procureis obedecer aos sublimes poderes instituídos e ordenados por Deus para nos regerem e governarem, na certeza de que todos aqueles que lhes não obedecem, resistem à Ordenação Divina. E finalmente, sendo certo que os trabalhos são inseparáveis da vida presente e que poucos duram, pois com ela se acabam, procurai fazer deles um uso digno da vossa piedade, para merecerdes assim a bênção do Altíssimo, a qual venha sobre vós, e permaneça convosco para sempre.
E para que esta nossa Carta Pastoral possa chegar à notícia de todos os nossos diocesanos, mandamos que esta seja remetida a todos os reverendos párocos deste Bispado, para que a leiam à estação da missa conventual; e assim aos mesmos reverendos párocos, como a todos os mais ministros do santuário, mandamos que no exercício dos ministérios sagrados inspirem nos ânimos dos povos estes nossos sentimentos, como já lhes insinuámos na primeira exortação que lhes fizemos dirigir a este respeito, em data de cinco de Dezembro do ano [...] passado.
Dada nesta cidade do Porto, no Paço da nossa residência, sob o nosso sinal e selo das nossas armas, aos 18 de Janeiro de 1808.


A. Bispo do Porto



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[Fonte do texto: Arquivo Histórico Militar, 1.ª div., 14.ª sec., cx. 252, doc. 36, fls. 1-4;
Fonte da gravura: René Chartrand / Bill Younghusband, The Portuguese Army of the Napoleonic Wars (I), Osprey Publishing, Oxford, 2000, p. 8].