segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Proclamação do Conde da Ega aos magistrados e empregados na administração judicial (1 de Agosto de 1808 )



O Conde da Ega, Conselheiro do Governo, Encarregado da Repartição da Justiça, aos magistrados e empregados na administração judicial.

Os deveres do Ministério que me unem convosco, sábios e respeitáveis magistrados, obrigam-me a dirigir-vos, nas actuais circunstâncias, expressões que serão sem dúvida acordes com os vossos mesmos sentimentos. Nós tínhamos esperanças bem fundadas de sermos felizes. As nossas leis, os nossos privilégios e os nossos costumes se guardavam e mantinham. Alguns defeitos e abusos que seria indispensável emendar, se iriam pouco a pouco destruindo, até que um novo Código, que o sistema seguido por toda a Europa tem feito necessário, e no qual vós mesmos há anos trabalháveis, acabasse de aperfeiçoar a nossa legislação. As leis seriam então respeitadas, a justiça administrada sem suborno, os magistrados, sendo dignos, gozariam da consideração pública; e se alguns não o fossem, as mesmas leis os privariam das suas funções. 
Tal era o brilhante quadro da nossa futura existência, se porventura, depois de termos dirigido os nossos votos ao trono augusto de Napoleão o Grande, esperássemos sossegados a sorte que o seu génio sublime nos preparava e nos havia prometido! Vós todos, respeitáveis membros da magistratura, os firmastes em testemunho autêntico de vossos sentimentos. Dissestes comigo ao Imperador que tomasse a nação portuguesa debaixo da sua poderosa protecção, que a regenerasse, que nos desse a Constituição e o Soberano que na sua alta compreensão julgasse mais adequada à nossa felicidade e à dos nossos vindouros. Rogámos-lhe, e este foi o sentimento mais expressivo dos nossos votos, que não permitisse que fossemos confundidos com outra nação, atribulados nossos ânimos com a horrível lembrança de que poderíamos fazer parte daquela que já nos havia agrilhoado. 
Que é pois o que nos acontece? Trocam-se em amargura as mais bem fundadas esperanças! A persuasão dos nossos vizinhos foi bastante para que uma parte das nossas províncias seguisse desacordada o pernicioso exemplo da rebelião, que vai sepultá-las na sua total ruína. Vós, magistrados territoriais, que, convocando a nobreza e povo dos vossos distritos, fizestes ressoar na presença do Chefe que nos governa as mais enérgicas expressões de gratidão e reconhecimento às benéficas intenções do Imperador para com Portugal, dizei que motivos vos constrangeram a excitar e promover a discórdia e a rebelião desses desgraçados povos, subindo o vosso indiscreto fanatismo ao enorme crime de saciardes o vosso particular rancor, fundados em princípios errados do interesse público? Vemos em Beja a desolação que semelhante perfídia produziu, e vemos em muitas outras partes horrores e crueldades pouco próprias de uma nação que se presava de generosa. Qual será o resultado deste desvario? Tremo quando o considero. 
O Imperador, assim que lhe conste que a nação portuguesa, faltando a si própria e aos votos que dirigiu à sua augusta presença, levantou o estandarte da rebelião, tornará aquela benevolência com que se havia proposto acolher-nos e que o nosso primeiro procedimento merecera, no desprezo e abandono. Portugal precipitado no abismo, lastimará sem remédio a sua destruição; a nação toda verá os seus lares reduzidos a cinzas e ruínas; os proprietários dispersos não possuirão os seus bens, e perderão o património dos seus antepassados, que contavam transmitir a seus descendentes; os pais chorarão a morte de seus filhos, as esposas a de seus esposos. Este país, tão agradável e tão interessante pelo seu clima e situação, será convertido num deserto pelo ferro e fogo, pela fome e miséria. Estes são, compatriotas meus, os terríveis males que uma porção de insensatos têm, por nossa desgraça, atraído sobre uma nação que se lisonjeava de esperar melhor e mais ditosa sorte. Nós, porém, guiados pela razão e pelo verdadeiro patriotismo, trabalhemos a toda a força por atalhar, enquanto é tempo, o precipício em que vamos despenhar-nos. 
Eia, pois, ainda temos remédio, porque Napoleão, sempre grande nos projectos desde que lançou as suas vistas para arrancar a nação portuguesa da escravidão da Inglaterra, escolheu por seu delegado nesta empresa a um dos seus mais distintos capitães, de que conhecia os talentos e os apreciava, e que havendo ao seu lado sustentado a glória das armas do seu Império, se havia igualmente moldado com todos aqueles sentimentos generosos que formam o carácter nobre dos homens grandes. O perdoar é certamente a mais grata disposição da alma elevada do respeitável chefe que nos rege com mão benfeitora. Ele, crede-me, ainda se consola com a esperança, [se] bem que remota, de embainhar a sua espada justiceira, e de poder conseguir para Portugal os bens que lhe havia procurado. 
A vós, magistrados desta capital, não tenho que recomendar-vos senão que sustenteis firmes e constantes o que há pouco firmastes na presença do mais distinto ajuntamento da nação, num acto que supria as Cortes do Reino, antiga constituição que o nosso chefe quis respeitar. É portanto a vós, outra vez repito, magistrados territoriais, que vos achais perto ou incluídos naquelas províncias onde a revolta se tem manifestado, que eu particularmente me dirijo, e a quem devo mais persuadir. Lembrai-vos que não há muito tempo concorri para chegardes ao pé do trono, solicitardes e conseguirdes alguns dos lugares que ocupais, e que sempre em mim encontrastes todo o acolhimento possível. Recobrai, pois, essa mesma confiança, e atendei aos que vos digo: 
Se os vossos cuidados foram e são, como espero, persuadir e recomendar a tranquilidade e obediência ao Governo que todos vós reconhecestes e declarastes em actos solenes e voluntários, justamente persuadidos do direito que a nação havia reassumido, e que conspícuos magistrados sustentaram em diferentes ocasiões nos estado do Reino, vós sereis premiados; se, porém, seguirdes os absurdos que vos alucinam, sereis punidos, mas punidos se persistires no vosso delírio. Implorai, portanto, o perdão, e sereis perdoado; e eu, cooperando para ele, terei suma consolação vendo entrar nos seus deveres uma parte distinta da nação, e após ela a outra, e todas ficarão tranquilas. 
Os exércitos que nos defendem vão marchando contra essas povoações rebeladas, e levam ordem de sacudir delas aqueles indivíduos malévolos da nação vizinha que nos perturbou, e que é a causa do estado de convulsão em que nos vemos, e de oferecer aos bons portugueses o auxílio de que necessitarem. Animai-vos, portugueses! Paz aos bons e paz também aos maus, são as palavras da ordem. 
Lisboa, no 1.º de Agosto de 1808. 

Conde da Ega 

[Fonte: 2.º Supplemento à Gazeta de Lisboa, n.º 30, 17 de Agosto de 1808; Simão José da Luz Soriano, História da Guerra Civil e do Estabelecimento do Governo Parlamentar em Portugal. Compreendendo a História Diplomática, Militar e Política deste Reino, desde 1777 até 1834 – Segunda Época - Tomo V – Parte I, Lisboa, Imprensa Nacional, 1893, pp. 64-67. Raul Brandão, ao publicar um excerto desta "Arenga do Conde da Ega", na sua obra El-Rei Junot, inseriu igualmente uma "tradução" truncada (ao jeito de réplica) do mesmo discurso, extraída muito provavelmente dum folheto da época. Cf. El-Rei Junot, Lisboa, IN-CM, s.d., pp. 166-167].