segunda-feira, 6 de junho de 2011

A prisão dos franceses no Porto, o congresso convocado pelo General espanhol Belestá e a consequente decisão de se restabelecer o governo do legítimo soberano o Príncipe regente D. João (6 de Junho de 1808)




Segundo Acúrsio das Neves, os poucos franceses que guarneciam a cidade do Porto, alertados pelas revoltas na Espanha, espiavam "cuidadosamente os movimentos da Galiza, e recebendo, no dia 6 de Junho, notícias que os puseram em agonias, quiseram ver se ainda lhes valia desta vez a voz dos ministros da religião.
Celebrava-se nesse dia a festa das justiças na igreja de S. Domingos, e achando-se aí com os mais ministros o Corregedor da comarca e o Juiz do crime, receberam ordem do Corregedor mor Taboureau para lhe irem falar. Foram, e Taboureau lhes representou, em ar de suplicante, que tinham vindo más notícias da Galiza, e que bem sabiam eles quanto podiam para com os povos as autoridades eclesiásticas; que portanto fossem persuadir ao Bispo e mais superiores eclesiásticos, que fizessem pregar obediência e submissão, e usassem do seu ascendente para que os mesmos povos se conservassem tranquilos. Obedeceram os ministros, e enquanto o Corregedor se encaminhava ao palácio episcopal com esta missão, e o Juiz do crime ao Prior dos carmelitas, rompe a explosão. O Juiz estava dando o seu recado ao Prior, quando um seu oficial corre a dizer-lhe que Quesnel estava preso. Ele marcha apressadamente ao quartel deste Governador, e já não lhe pode falar: os espanhóis o tinham prendido e aos mais franceses*, à excepção de alguns que puderam fugir, sendo deste número o delegado da polícia Perron, um daqueles a quem os portuenses mais abominavam, pelas vexações e extorsões que tinha praticado com abuso do seu cargo. Este mesmo foi depois preso pelos paisanos das províncias. A prisão dos franceses causou um alvoroço geral em toda a cidade, e a revolução ficaria consumada desde este dia, se o negócio se deixasse entregue ao povo.
Dado este passo, resolveu Belestá fazer um congresso, composto das principais autoridades portuguesas, convocando para ele a Câmara, vários oficiais militares de maior patente, e ordenando ao Chanceler que avisasse seis Desembargadores da Relação de quem fizesse maior conceito. O Chanceler, que tinha dado parte de doente, transmitiu o aviso ao Desembargador Estanislau José Brandão, que fazia as suas vezes, mas quando este o recebeu foi já depois da hora aprazada para o congresso; sendo tão apertada a ordem, que se determinava que todos fossem de casacas ou como se achassem. Brandão pois não teve mais tempo que o de tomar um dos lugares para si, e andarem ele mesmo e outros de seu mando convocando os Desembargadores, que apareceram para preencherem os cinco restantes.
Celebrou-se pois o congresso já depois da noite, perante Belestá e seu Auditor de guerra, e assistiram a ele as pessoas seguintes: o Brigadeiro Luís de Oliveira da Costa, os Desembargadores Estanislau José Brandão, João de Carvalho Martins da Silva Ferrão, Vitorino José Cerveira Botelho do Amaral, João Bernardo Cardoso, Francisco Sabino Álvares da Costa Pinto, e António Pedro de Alcântara Sá Lopes; o Juiz de Fora Luís Barbosa e Mendonça; os vereadores Bernardo de Melo Vieira da Silva e Meneses, e Tomás da Silva Ferraz; o procurador da cidade, Manuel Félix Correia Maia; o Sargento-mor Raimundo José Pinheiro, e o Tenente Luís Paulino.
Levantou Belestá a voz, e expondo as circunstâncias ocorrentes, perguntou a todos em geral, se queriam ficar com o governo português, se com o espanhol, ou com o francês, dando ao mesmo tempo a entender que Junot deveria ter sido preso em Lisboa, como Quesnel e os seus o tinham sido no Porto**.
O vereador Tomás da Silva Ferraz foi o primeiro que respondeu, com entusiasmo, que ele, a Câmara e a cidade nada mais desejavam que o suspirado governo do nosso legítimo soberano; requerendo portanto que fosse logo restabelecido, e descobertas as Armas Reais. O Desembargador Ferrão adiantou-se a falar, dizendo entre outras coisas que a Relação não devia figurar naquele acto, porque não tinha representação por parte do povo, e somente lhe competia sentenciar as causas; que não tinham armas nem meios de resistir a um inimigo tão terrível; e que por isso seria melhor esperar-se a notícia do acontecido com Junot em Lisboa.
Foi muito mal recebida esta sua oposição pela maior parte dos assistentes, e pelo próprio Belestá; mas com especialidade por Ferraz, que levantou contra ele um grande reboliço; o que, fazendo-se público, foi causa de que o povo jamais perdoou a Ferrão este excesso de circunspecção ou de timidez, que foi caracterizado de traição nos primeiros movimentos deste povo irritado. [...]
Ficou pois decidido o restabelecimento do governo legítimo, e disso principiou a lavrar-se um auto; insistindo porém alguns dos do congresso em que deviam lavrar-se dois idênticos, um para os espanhóis levarem, outro para ficar, decidiu Belestá que era desnecessária esta solenidade e dispensou com o auto.
[...]
Desfeito o congresso, Raimundo partiu logo para a fortaleza de S. João da Foz, por ordem de Belestá, para que a governasse interinamente, por ser a sua patente a maior da guarnição, em falta do Governador proprietário D. Francisco d'Alencastre, que se tinha ausentado para Lisboa logo que entraram os espanhóis no Porto, e obtido a sua demissão. Convocou nessa mesma noite o seu Estado maior, e os oficiais das companhias fixas da guarnição da mesma fortaleza; e propondo-lhes o que premeditava obrar, em consequência do que se havia resolvido no congresso, um só não houve que, sem hesitar, não aprovasse tão nobres sentimentos e não se pusesse logo pronto para a execução". 



[Fonte: José Accursio das Neves, Historia Geral da Invasão dos Francezes em Portugal, e da Restauração deste Reino - Tomo III, Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1811, pp. 79-85].
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Notas:

* Frei Joaquim Soares, no seu Compendio historico... [Coimbra, Real Imprensa da Universidade, 1808, p. 24], confirma a versão de Acúrsio das Neves, embora seja de se notar que Manuel Mendes, baseando-se num manuscrito inédito de Frei António Pacheco, intitulado Histórica crítica dos franceses em Portugal durantes os anos de 1807-1808 e 1809, apresenta uma versão ligeiramente diferente relativa à prisão dos franceses: "No dia 6 de Junho, o general comandante do exército francês [no Porto], Quesnel, quis assistir à romaria do Bom Jesus de Bouças, que se realizava em Matosinhos, para onde se dirigiu a meio da tarde. O General D. Domingo Belestá, com o pretexto de uns exercícios militares, dividiu as suas tropas pelos diversos pontos da cidade, colocando propositadamente algumas nas proximidades do Quartel-general francês. Quando Quesnel se dirigia à sede do comando, Bellesta, cercando imediatamente o edifício, deu-lhe voz de prisão. Detido o comandante, com o seu Estado Maior, ficou imobilizada a guarnição militar francesa do Porto e os espanhóis senhores de toda a cidade" [Cf. Manuel Mendes, “Guimarães e a Aclamação de D. João VI num códice inédito do Arquivo Histórico Militar”, in Revista de Guimarães, n.º 69 (1-2), Janeiro-Junho de 1959, pp. 19-66, p. 28].


** [Nota original de Acúrsio das Neves] Este facto apoia uma voz, que correu pública e geralmente, de que não afianço nem impugno a verdade. Disse-se que os espanhóis do Porto enviaram um emissário a Carrafa, para fazer prender os franceses em Lisboa. O projecto não cabia, por certo, nas forças de Carrafa; mas a sua falta de execução não deixou de lhe granjear a opinião de traidor; opinião que mais se ratificou quando se viu o desarmamento das tropas espanholas, que se supuseram entregues por ele.