"Ainda que os franceses de Portugal continuavam no seu sistema (que cada vez se lhes fazia mais necessário) de encobrir, inverter e desfigurar os sucessos da Espanha, foi-lhes absolutamente impossível ocultar uma revolução que, rompendo com o estrondo do trovão, produzia os estragos do raio. [...]
A inquietação que [as tropas espanholas] causavam a Junot, também a temos visto; e é talvez em consequência das representações deste General, que seu amo [Napoleão] lhe tinha dado ordem para conservar somente 4.000 espanhóis na cidade do Porto, e despedir o resto; o que ele assim praticava, mandando retirar para Galiza as tropas que ainda restavam da divisão Taranco, e também, por insinuações de Murat, os dragões do regimentos de La Reina e Montezo, que faziam uns 400 homens e 500 cavalos, posto que pertencentes à divisão Carrafa. Foi pois somente esta divisão incompleta a que ficou em Portugal, e tão dispersa que dela se achavam apenas reunidos uns 3.500 homens no Porto, e os mais em destacamentos por Lisboa, Mafra, Santarém, Setúbal, Sesimbra e outros lugares.
Assim dispersos e afastados dos seus lares, e sem o apoio dos seus Generais, obrou neles o patriotismo que lhes inspiravam os gritos da sua pátria agonizante. Eram contínuas as desordens entre eles e os franceses, e a deserção foi imensa, principalmente dos que estavam em Setúbal e outros pontos além do Tejo, donde lhes era mais fácil a evasão para Espanha. De uma só vez desertaram daqueles sítios 130 voluntários de Valencia com a sua bandeira, seguindo-os com força maior o General Graindorge, e dando-se ordem à coluna que marchava sobre Elvas que os perseguisse, tudo foi inútil. Ao exemplo destes, o regimento de Múrcia se revoltou contra o seu próprio Coronel, que pretendeu detê-lo. Encontrou no caminho um destacamento francês, e resultou do encontro virem parar a Lisboa vários cavalos sem cavaleiros, arreios sem cavalos, barretinas sem cabeças, mochilas, espadas retorcidas e outros despojos, que o povo viu com extrema alegria desembarcar no Terreiro do Paço. Fugiu quase inteiro um esquadrão de María Luísa, e eram infinitos os soldados que escapavam avulsos".
Enquanto isso, "os espanhóis convidavam os portugueses a pegar em armas contra os usurpadores [...] por todos os pontos de contacto das duas monarquias, isto é, por toda a extensão das nossas fronteiras; e como a nação se achava com as melhores disposições, o espírito da revolução fazia progressos rápidos. Eram sementes bem granadas, que se lançavam numa terra fértil; mas que um braço malfazejo não cessava de revolver, para destruir a germinação.
Elas brotaram primeiro nas províncias do norte do que nas outras do reino; porque ali obrava menos o braço inimigo. À excepção da guarnição de Almeida, reforçada com a coluna de Loison, que se achava nesta praça e suas imediações, não havia mais tropa francesas na Beira, Trás-os-Montes, e Entre-Douro e Minho, que as pequenas brigadas que guarneciam a estrada militar e um destacamento de coisa de 50 homens em Coimbra. [...]
Junot conhecia bem o seu fraco; mas não podia acudir-lhe senão com palavras, vendo-se obrigado a conservar uma força considerável nos pontos de Peniche e Setúbal, para obstar a alguma tentativa dos ingleses, nas importantes praças de Elvas e Almeida, para fazer cara aos espanhóis, e ter ao menos estes pontos de apoio contra os movimentos intestinos; a sua mesma timidez o obrigava a concentrar o resto das suas forças em Lisboa e lugares comarcãos; de forma que em caso de precisão as pudesse reunir junto a si. Em lugar de tropas, ele não cessava de enviar às províncias, auxiliado pelos eficazes serviços de Lagarde, gazetas, proclamações, cartas, emissários; e eram estas as armas com que as pretendia manter tranquilas. De vez em quando recorria a triunfos imaginários dos franceses na Espanha, e chamava em seu socorro poderosos exércitos, só existentes na sua imaginação, como por exemplo o dos 60.000 invisíveis, comandados pelo invisível Marechal Lannes, que fez transportar às fronteiras da Espanha na Gazeta de 10 de Junho.
O General francês Quesnel achava-se encarregado por Junot do governo do Porto, ficando às suas ordens o General [espanhol] Belestá com a tropa do seu comando. Havia também na cidade setenta e tantos dragões e vários empregados civis e militares, todos franceses, e nada mais, de forma que a própria guarda de Quesnel era espanhola. É fácil de imaginar o embaraço de Quesnel e dos seus franceses, vendo-se rodeados de perigos que se avizinhavam, à medida que a revolução da Espanha tomava mais calor".
[Fonte: José Accursio das Neves, Historia Geral da Invasão dos Francezes em Portugal, e da Restauração deste Reino - Tomo III, Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1811, pp. 64-67 e pp. 76-79].