Do Porto tinham saído as faíscas da revolução, que foram atear o fogo em Bragança e em toda a província Trás-os-Montes; de Bragança reverberaram as labaredas para o Porto. Sepúlveda escreveu ao General Gonçalo Pereira Caldas, que então governava as armas de Entre-Douro e Minho, convidando-o a seguir o seu exemplo, fazendo aclamar o legítimo Soberano; e Caldas, ainda que não foi o autor da revolução, a promovia debaixo de mão, como honrado português; era porém muito difícil levantar-se a província sem a concorrência da sua capital, onde o tímido Luís de Oliveira [Governador das armas do Porto] sustentava o nome francês, bem a pesar dos povos e das poucas tropas que lhe obedeciam. Para sustentar a sua autoridade vacilante, Oliveira viu-se precisado a recorrer às milícias desorganizadas dos Regimentos do Porto, Penafiel e Maia; mas os povos impacientavam-se cada vez mais com o jugo, e só os continha o medo de verem entrar a todo o momento tropas inimigas, segundo as ameaças de Junot, Hermann e Lagarde; o exemplo dos transmontanos acelerou o rompimento.
No dia de Corpo de Deus (16 de Junho), já se manifestaram os indícios. Queria o Governador [Luís de Oliveira] que as milícias que deviam acompanhar a procissão levassem as águias francesas em lugar da bandeira portuguesa; e elas o recusaram tão vigorosamente que, para sossegarem foi necessário mandarem-se ir neste acto somente algumas companhias, sem bandeira, nem portuguesa, nem francesa. O povo andava já em magotes, e apareceu afixada uma proclamação anónima, que se dirigia a estimular a sua fidelidade e patriotismo; e depois se soube que tinha sido posta por um filho do Desembargador José Feliciano da Rocha Gameiro.
Em Guimarães também houveram algumas disposições no dia 17; mas tanto nesta vila como na do Porto, efectuou-se a revolução a 18. Os de Guimarães pretendem a primazia, porque levantaram a voz da aclamação pelas 4 horas da tarde, e no Porto somente pelas 7*. Não sei se houve esta diferença de horas, mas é certo que todos se ilustraram e que a verdadeira primazia consiste na melhor disposição dos espíritos, nos maiores e mais relevantes serviços.
O Corregedor António Manuel Borges e Monsenhor Miranda foram os principais agentes desta grande obra em Guimarães, agregando-se-lhes imediatamente os outros magistrados, o clero e nobreza; o povo estava sempre pronto.
No Porto brotou a revolução como por si mesma, sendo o resultado da vontade geral do povo, que a autoridade pública mais depressa impedia do que auxiliava, e que tinha de romper na primeira aberta que achasse, independentemente de planos e de chefes. Eu quisera fazer uma descrição exacta e circunstanciada dos memoráveis sucessos do Porto nos dias 18 e 19; mas isso será apenas dado a quem os presenciasse: informações não bastam. Conhecer a índole do coração humano, seguir e analisar o desenvolvimento das suas paixões, é um dos objectos mais úteis em que a filosofia se tem empregado; mas não é menos útil, e tem maiores dificuldades, conhecer a índole dos ajuntamentos populares e seguir a marcha dos seus movimentos, porque interessa em grande ao género humano; e sendo um objecto muito variado, apresenta-se menos vezes à contemplação do observador. Se os filósofos tivessem aprofundado tanto este estudo como a do coração do homem em particular, talvez que não se derramasse tanto sangue como tem corrido nos últimos 20 anos.
Espalhou-se a notícia de que um corpo de tropa francesa marchava para o Porto pela estrada de Coimbra, e estava já muito perto de Oliveira de Azeméis. Eram então muito frequentes por todo o reino os boatos de tropa inimiga, espalhados maliciosamente para conter os povos; e este podia ter o fim particular de divertir os portuenses por aquele lado, enquanto pelo outro marchava de Almeida o General Loison com a sua coluna; contudo ainda não é líquido se Junot teria destinado alguma força para seguir aquela estrada e ir reunir-se no Porto a Loison. Parece que o Juiz de Fora de Oliveira de Azeméis teve ordem para lhe aprontar rações; e é certo que este ministro, por lhe faltarem os meios no seu distrito, recorreu a Luís de Oliveira, que lhe mandou aprontar pão do assento do Porto para municiar aquele corpo, verdadeiro ou fantástico.
Aprontar o pão para os franceses no meio de uma cidade populosa já em princípios de revolução contra eles era o mesmo que atear o fogo; muito principalmente quando os artilheiros portugueses se queixavam de que se lhes faltava com ele. O povo alterou-se junto ao assento na tarde do dia 18, quando se estavam carregando os carros; e misturando-se no ajuntamento alguns dos artilheiros, um deles levantou a voz, e disse que só para os portugueses não havia pão; ao que um dos franceses que trabalhavam no assento (eram dos que tinham escapado à caçada do dia 6) respondeu com insolência, e o artilheiro respondeu-lhe com uma grande pancada de coronha na cara. Correram mais artilheiros portugueses, correu povo, e no meio deste reboliço os franceses foram presos e conduzidos à guarda da Ribeira, que os recebeu sem saber para que fim, nem com que ordem.
A este tempo já o Capitão de artilharia João Manuel de Mariz se achava com alguma gente do seu partido nos quartéis de Santo Ovídio, onde era o depósito principal de artilharia, movendo as peças, e tinha ali concorrido maior ajuntamento de povo, que estava em suspensão por ignorar o motivo e o fim destes movimentos. Cessou de repente a expectação e a dúvida, ouvindo-se um viva ao Príncipe Regente, que foi respondido com mil vivas deste povo entusiasmado, e vendo-se arvorada uma bandeira portuguesa, conduzida por um armador chamado Joaquim. Abrem-se os arsenais e dão-se armas e cartuchos a quem se apresenta; dispõem-se quatro peças de campanha, que Mariz já tinha prontas a darem fogo, e repartem-se no serviço delas 30 artilheiros, cobrindo a frente e a retaguarda de dois pelotões que restavam, de 10 homens cada um, para prevenirem toda a oposição; e com este aparato respeitável, marcham pelas ruas da cidade em direcção à Ribeira, fazendo retinir incessantemente o nome de Sua Alteza Real e as vozes da aclamação. Os oficiais de linha que se encontram, vão-se reunindo e prestando mutuamente juramentos que excitam fogo e ternura; alguns corpos de milícias, irresolutos ao princípio pela novidade dos acontecimentos, determinaram-se enfim, e não há uma só voz que encontre as vozes da restauração.
Junto ao convento de S. Domingos aparece o famoso Raimundo José Pinheiro, que se tinha conservado oculto numa quinta, distante do Porto meia légua, e aumenta o reboliço com 19 espanhóis que conduzia armados, como ele, de clavinas, com mantas às costas e cobertos de poeira, como quem vinha de uma grande jornada, dando novos vivas e gritando que aí vinha o exército. Com efeito, nos dias seguintes entraram mais uns poucos de espanhóis estropiados, que, como os primeiros, tinham ficado escondidos em Portugal, e indo em retirada para Espanha, voltaram com a notícia dos novos sucessos. Conheceu-se então que o exército espanhol de Raimundo não era mais que um estratagema para mover os povos e dar princípio à revolução.
Era quase sol posto quando a comitiva chegou à Ribeira. Cuidou-se logo em colocar a bandeira e assestar artilharia na ponte, em se guarnecerem as estradas por onde o inimigo podia vir e [em] se mandarem algumas peças para as alturas de Vila Nova [de Gaia]. Esta última operação era difícil, mas venceu-se à custa de muito trabalho. Um frade dominicano, que saíra do seu convento com a espada no punho, hábito levantado e mangas arregaçadas, investe aos tirantes, outros frades, clérigos e mulheres o imitam, e as peças são conduzidas e colocadas, servindo de princípio ao campo de Santo Ovídio, de que Raimundo era o comandante. Foi nesta obra que melhor se manifestou o ardor e patriotismo dos povos; não deixarei esquecido o abade de S. Cristóvão, D. João de Nossa Senhora do Pilar, que para ela aprontou logo nessa noite mais de cem carros, e no dia seguinte mandou uma grande quantidade de pão para municiamento da tropa.
Contudo, nem todos se ocuparam nestes objectos. Alguns ajuntamentos de povos corriam as ruas com gritarias, batendo às portas dos conventos e das igrejas, para fazerem tocar os sinos, disparando tiros, tocando caixas e outros instrumentos bélicos; e entrando pelas casas que lhes eram suspeitas, ou onde suponham algum francês. Principiava a manifestar-se o espírito de vertigem, que raras vezes deixa de encontrar-se nos grandes ajuntamentos, e a conhecer-se o perigo de armar indistintamente o povo; mas é assim que de ordinário se fazem as revoluções, e felizmente naquele dia não houve sangue. Saciou-se o povo em fazer prisões, de que algumas foram depois desaprovadas pelo governo.
Luís Cândido Cordeiro Pinheiro Furtado, Tenente-Coronel do Real corpo dos Engenheiros, era um dos que o povo olhava mal, porque tinha estado no serviço francês junto a Quesnel, e depois às ordens de Luís de Oliveira [Governador das Armas do Porto]. Ele se tinha agregado a Mariz, logo desde os primeiros momentos da restauração, fazendo causa comum com este e com os mais aclamadores; o que não foi bastante para que o povo não se conspirasse contra ele, prendendo-o, insultando-o e dispondo-se para o assassinar. Houve quem o livrasse de tão arriscado lance, representando que era um homem muito útil, pelos seus talentos e perícia militar.
Nessa mesma noite [de 18 de Junho] tratou-se já, na casinha da ponte, do estabelecimento de um governo que pudesse sujeitar a um plano regular o que até ali não tinham sido senão movimentos tumultuários; e chegaram mesmo a fazer-se relações dos vogais que nele haviam de entrar; mas enquanto se agitava este importantíssimo objecto, e o Juiz de Fora com os dois vereadores que tinham concorrido ao congresso do dia 6 se achavam juntos no paço do concelho, animando a revolução e procurando meter as coisas na ordem, recebem-se avisos de que os franceses já estavam em Grijó, a 3 léguas do Porto. Propôs-se se seria mais conveniente ir ali mesmo atacá-los, se esperá-los nas alturas de Vila Nova [de Gaia]; e resolveu-se que era melhor ir atacá-los, sendo provável que, fatigados da jornada e apanhados de improviso, poderiam fazer menos resistência. Um troço de gente põe-se a caminho, e franqueando aquelas três léguas com uma velocidade incrível, não achou em Grijó senão alguns passageiros que lhes deram a notícia de que em toda a estrada desde Coimbra, donde tinham vindo, não havia rumor de que se aproximassem inimigos.
Era isto sobre a madrugada do dia 19, e a essa hora voltaram os nossos guerreiros para o campo de Santo Ovídio, tão contentes como se tivessem ganhado uma grande vitória. Os militares aí juraram sobre as espadas defenderem a nossa independência, a religião e o Soberano; e formou-se depois um novo e mais luzido ajuntamento, composto de pessoas de todas as classes, convocadas a toque do sino da Câmara, e por magotes de gente que vagava pelas ruas; os guerreiros saíram daquele campo com duas peças carregadas e prontas a dar fogo; muito povo os seguia, e encaminharam-se ao paço episcopal, onde deviam organizar o novo governo. Pararam à porta, e fazendo anunciar ao Bispo o fim para que iam, este apareceu depois de uma pequena demora, lançou a bênção ao povo, desceu, beijou as bandeiras, e se fez seguir de toda aquela comitiva até à igreja catedral, onde primeiro se implorou o auxílio do Omnipotente, e depois se voltou para o paço a tratar do mais.
Foram examinadas e apuradas as nomeações vagas dos que iam de antemão designados para o Governo, e aprovaram-se alguns, ficando excluídos outros, por parecer grande o número; e por esta forma se estabeleceu a Junta denominada Provisional do Supremo Governo, de que o Bispo ficou sendo cabeça, com o título de Presidente Governador; e membros por parte do corpo eclesiástico o provisor do bispado Manuel Lopes Loureiro e o vigário geral José Dias de Oliveira; do corpo da magistratura o desembargador juiz da Coroa José de Melo Freire e o desembargador dos agravos Luís de Sequeira da Gama Ayala; do corpo militar o Sargento mor António Manuel de Mariz; do corpo dos cidadãos António Mateus Freire de Andrade e António Ribeiro Braga.
Nesta ocasião principiou o descontentamento de Luís Cândido, recebendo como uma afronta o não ser contemplado no governo supremo; e muito mais quando viu que se entregou o das armas a José Cardoso de Meneses Souto-Maior, Coronel agregado ao 1.º regimento do Porto. Luís Cândido o ambicionou, querendo fazer valer os seus talentos e os serviços do dia precedente; mas foi repelida a sua pretensão, com o fundamento de que quando se tratava de se restituírem o governo legítimo às leis, uso e costumes do reino, não se devia principiar por uma violação das mesmas leis: José Cardoso era o oficial da patente maior e mais antiga entre os que se achavam presentes; e era portanto a quem de direito se devolvia o governo interino das armas. Ficou pois Luís Cândido sem comandância alguma autorizada pelo governo, mas com bastante poder para vingar-se desta suposta injúria, porque conservou uma grande influência para com o aclamador Mariz, a quem foi encarregado o comandar a artilharia. Veremos a seu tempo os resultados que daqui saíram.
Ao meio-dia [do dia 19] anunciou-se o estabelecimento do governo por repiques de sinos, e de tarde por um bando majestoso, que correu as ruas da cidade, e por um manifesto, que se publicou por editais e se remeteu em forma circular às autoridades de todas as terras do reino que estavam ao alcance da Junta. Este manifesto é digno de se perpetuar na memória pela sua moderação, desmentindo as arguições mal intencionadas de alguns que têm querido persuadir que a mesma Junta arrogara de tal forma o poder absoluto que queria fazer-se independente do governo estabelecido pelo Soberano na capital do reino; quando pelo contrário ela declarou que exercitaria a Real Autoridade do nosso legítimo Soberano plena e independentemente, enquanto não fosse restituído o governo instituído neste reino por Sua Alteza Real.
[...]
No mesmo instante em que a Junta provisional do governo supremo foi organizada, começou a dar as suas providências, ampliando e aperfeiçoando as disposições do dia precedente, e dando à revolução uma forma regular. O Presidente escreveu uma carta a Sepúlveda, em que lhe participava estes sucessos e lhe pedia em nome da mesma Junta e de todos os fiéis vassalos do Príncipe Regente, que lhes mandasse os socorros possíveis, principalmente a cavalaria que pudesse dispensar, e um oficial da sua escolha e confidência para dirigir as operações de ataque e defesa. Expediu-se o Visconde Balsemão ao brigue de Sua Majestade Britânica o Eclipse, que ainda cruzava diante da barra, para participar ao seu comandante que o porto ficava aberto aos ingleses; ao que ele respondeu com todas as demonstrações de alegria, oferecendo os socorros que estivessem em seu poder.
Dados estes primeiros passos e os mais que as circunstâncias exigiam, passou o novo governo a lançar as suas vistas sobre um teatro mais extenso, projectando desde logo a restauração do reino inteiro. Chamou junto a si os ministros e oficiais militares de maior distinção, e começou uma carreira tão laboriosa como difícil, a que o Estado deve a salvação.
[...]
No mesmo instante em que a Junta provisional do governo supremo foi organizada, começou a dar as suas providências, ampliando e aperfeiçoando as disposições do dia precedente, e dando à revolução uma forma regular. O Presidente escreveu uma carta a Sepúlveda, em que lhe participava estes sucessos e lhe pedia em nome da mesma Junta e de todos os fiéis vassalos do Príncipe Regente, que lhes mandasse os socorros possíveis, principalmente a cavalaria que pudesse dispensar, e um oficial da sua escolha e confidência para dirigir as operações de ataque e defesa. Expediu-se o Visconde Balsemão ao brigue de Sua Majestade Britânica o Eclipse, que ainda cruzava diante da barra, para participar ao seu comandante que o porto ficava aberto aos ingleses; ao que ele respondeu com todas as demonstrações de alegria, oferecendo os socorros que estivessem em seu poder.
Dados estes primeiros passos e os mais que as circunstâncias exigiam, passou o novo governo a lançar as suas vistas sobre um teatro mais extenso, projectando desde logo a restauração do reino inteiro. Chamou junto a si os ministros e oficiais militares de maior distinção, e começou uma carreira tão laboriosa como difícil, a que o Estado deve a salvação.
José Cardoso, da sua parte, apenas instalado no comando das armas, cuidou em preencher as obrigações deste cargo. Mandava ele logo na tarde do dia 19 algumas ordens secretas, a bem da causa geral, aos Juízes de Fora de Oliveira de Azeméis e de Recardães, determinando ao portador que não declarasse a pessoa alguma onde ia, nem por que ordem, o que assim era necessário por estarem ainda aquelas terras na obediência aos franceses; mas não deu as providências para que o seu trânsito não fosse embaraçado pelas guardas que já se achavam estabelecidas na ponte e em todas as saídas da cidade, com determinação positiva de não deixarem passar pessoa alguma sem um bilhete do governo assinado pelo seu Presidente. Sucedeu-lhe consequentemente o que ele devia esperar: o portador foi embaraçado pelas guardas da ponte e guardou tão bem o segredo, que não quis declarar onde ia e quem o mandava, por mais que o inquirissem. Deram-lhe uma busca exacta e lhe acharam as duas cartas para os Juízes de Fora; e estando a pontos de ser descoberta uma outra, que levava mais escondida, pegou nela e despedaçando-a rapidamente com os dentes, atirou com os fragmentos ao rio. Ainda se apanharam alguns; porém não se entendeu por eles o que continha a carta.
Este misterioso sucesso fez presumir traição: o homem foi imediatamente preso e conduzido ao Governador [José Cardoso], que, não querendo revelar o segredo, pensou tirar-se do negócio dizendo ao povo (já era muito o que o rodeava) que lhe deixassem o preso, que responderia por ele. Era ignorar com quem lidava. O povo não esteve pela proposta, e para o sossegar foi necessário que o Governador lhe patenteasse as cartas que escrevia aos Juízes de Fora; como porém não soubesse explicar o mistério da outra que foi rasgada, ficou ainda em pior figura, porque o povo não só teimou em levar o preso contra a sua expressa determinação, mas incorreu ele mesmo Governador nas suspeitas de traidor.
O primeiro passo que deu o povo foi conduzir o preso à cadeia, o segundo foi voltar amotinado à porta do Governador, para também o prender. Em vão saiu seu irmão Gaspar Cardoso para sossegar o tumulto: às suas expressões persuasivas da inocência da vítima que se queria imolar, o povo só respondia que não era nada com ele, que lhe entregasse seu irmão para ser conduzido ao senhor Bispo, a fim de responder por aquela carta que não se entendia. Era quase sol posto, mais de 400 homens armados gritavam cada vez mais contra o Governador, e não haveria remédio senão entregar-lho, pois o tumulto crescia ainda, quando de repente começaram os sinos das igrejas a tocar a rebate, e o povo, ouvindo que o inimigo se avizinhava, correu para se arrostar com ele, e deixou em paz a José Cardoso. Continuou o rebate toda a noite, e o povo, depois de ter corrido inutilmente montes e vales, voltou fatigado, mas contente por não encontrar nem sombras de inimigos. Supôs-se que este rebate foi um estratagema dos irmãos de José Cardoso para o salvarem; e o certo é que produziu o seu efeito, pois José Cardoso teve tempo de ir ao paço e justificar-se perante o Bispo da imputação que se lhe fazia, concordando com ele as declarações do portador das cartas.
Da que este tinha rasgado não sabia ele dar razão alguma, e o mesmo portador declarou que, tendo estado em Lisboa, lha dera um francês para a levar a outro francês residente no Porto, devendo receber deste último a paga; e que não o achando já, por ser do número dos que foram presos por ordem de Belestá, a tinha conservado em seu poder para a entregar, quando voltasse a Lisboa, ao mesmo de quem a recebera; que a tinha rasgado no momento em que lho deram a busca, por temer que o povo o reputasse partidista francês, se lha achasse em seu poder. Não sei se o mistério ficou bem resolvido, mas não me atrevo a criminar José Cardoso, vendo-o purificado perante um governo vigilante, que pesquisava com a maior escrupulosidade todos os indivíduos e todas as acções que admitiam suspeita. Em abono do seu patriotismo tem ele um bom testemunho, e bem recente, no valor com que se arrostou ao inimigo na batalha do Buçaco, merecendo por isso o elogio público do Marechal comandante do exército português.
Este misterioso sucesso fez presumir traição: o homem foi imediatamente preso e conduzido ao Governador [José Cardoso], que, não querendo revelar o segredo, pensou tirar-se do negócio dizendo ao povo (já era muito o que o rodeava) que lhe deixassem o preso, que responderia por ele. Era ignorar com quem lidava. O povo não esteve pela proposta, e para o sossegar foi necessário que o Governador lhe patenteasse as cartas que escrevia aos Juízes de Fora; como porém não soubesse explicar o mistério da outra que foi rasgada, ficou ainda em pior figura, porque o povo não só teimou em levar o preso contra a sua expressa determinação, mas incorreu ele mesmo Governador nas suspeitas de traidor.
O primeiro passo que deu o povo foi conduzir o preso à cadeia, o segundo foi voltar amotinado à porta do Governador, para também o prender. Em vão saiu seu irmão Gaspar Cardoso para sossegar o tumulto: às suas expressões persuasivas da inocência da vítima que se queria imolar, o povo só respondia que não era nada com ele, que lhe entregasse seu irmão para ser conduzido ao senhor Bispo, a fim de responder por aquela carta que não se entendia. Era quase sol posto, mais de 400 homens armados gritavam cada vez mais contra o Governador, e não haveria remédio senão entregar-lho, pois o tumulto crescia ainda, quando de repente começaram os sinos das igrejas a tocar a rebate, e o povo, ouvindo que o inimigo se avizinhava, correu para se arrostar com ele, e deixou em paz a José Cardoso. Continuou o rebate toda a noite, e o povo, depois de ter corrido inutilmente montes e vales, voltou fatigado, mas contente por não encontrar nem sombras de inimigos. Supôs-se que este rebate foi um estratagema dos irmãos de José Cardoso para o salvarem; e o certo é que produziu o seu efeito, pois José Cardoso teve tempo de ir ao paço e justificar-se perante o Bispo da imputação que se lhe fazia, concordando com ele as declarações do portador das cartas.
Da que este tinha rasgado não sabia ele dar razão alguma, e o mesmo portador declarou que, tendo estado em Lisboa, lha dera um francês para a levar a outro francês residente no Porto, devendo receber deste último a paga; e que não o achando já, por ser do número dos que foram presos por ordem de Belestá, a tinha conservado em seu poder para a entregar, quando voltasse a Lisboa, ao mesmo de quem a recebera; que a tinha rasgado no momento em que lho deram a busca, por temer que o povo o reputasse partidista francês, se lha achasse em seu poder. Não sei se o mistério ficou bem resolvido, mas não me atrevo a criminar José Cardoso, vendo-o purificado perante um governo vigilante, que pesquisava com a maior escrupulosidade todos os indivíduos e todas as acções que admitiam suspeita. Em abono do seu patriotismo tem ele um bom testemunho, e bem recente, no valor com que se arrostou ao inimigo na batalha do Buçaco, merecendo por isso o elogio público do Marechal comandante do exército português.
Foi José Cardoso conservado no governo, mas sempre o Bispo lhe aconselhou que não aparecesse em público enquanto o povo não sossegasse mais a seu respeito. Um Governador que é preciso encerrar-se em casa para não excitar tumultos, não serve em caso algum, e muito menos para governar um povo em fermentação; mui breve o mostraram os sucessos.
Continuava a Junta nas providências de defesa e de organização; o povo, no seu entusiasmo e também na sua efervescência. A 20, depois do meio-dia, os sinos começaram novamente a tocar, e o povo a ajuntar-se com tanta presteza ao som de instrumentos bélicos, que o Porto parecia um campo de batalha. Era a consequência de se ter espalhado uma voz falsa de que o inimigo se achava nos Carvalhos, a 2 léguas da cidade. Procurou-se depois a origem desta voz, e se achou que procedia de ter o Juiz de Fora de Oliveira de Azeméis mandado embargar todo o pão cozido desta vila e aldeias vizinhas para os franceses que esperava, em razão de lhe ter faltado o que tinha pedido a Luís de Oliveira do assento do Porto.
O certo é que tudo se armou prontamente do modo possível. Os eclesiásticos seculares e regulares, que pouco depois começaram a formar um corpo separado, debaixo do comando do Deão da Sé, Luís Pedro de Andrade Brederode, com o título de Coronel, para fazerem a guarnição da cidade, enquanto as outras tropas marchassem contra o inimigo, já neste dia deram provas manifestas do seu zelo pela justa causa que defendiam. Correram às armas, como os mais cidadãos, distinguindo-se entre eles os religiosos de S. Domingos, que se agregaram aos milicianos da Maia, submetendo-se ao Coronel respectivo. Um dos mesmos religiosos, vendo que o Coronel levava duas bandeiras sem haste, lançou mão de uma delas, e arvorando-a sobre um pau, a foi conduzindo até o campo de Santo Ovídio, para onde marchou a multidão com um grande aparato marcial, esperando ali o inimigo; algumas partidas se adiantaram por diferentes pontos, até à distância de uma légua ou légua e meia da cidade.
O primeiro golpe de badalo nesta ocasião foi o sinal da desgraça de José Cardoso: saindo de casa, ele se expunha aos insultos populares; não saindo, confirmava contra si as suspeitas de traidor. Ele se conservou recolhido até mais de meia tarde, e saindo a essa hora, por se persuadir que era do seu dever, encontrou-se com um preso, conduzido por uma escolta de ordenanças, o qual implorou o seu patrocínio, por o conhecer, para conseguir a soltura. Examinou o Governador os motivos da prisão, e parecendo-lhe que eram de pouco momento, determinou que o preso fosse solto. A escolta não quis obedecer, e fazendo o Governador acção com a espada para o povo, como quem queria fazer executar a sua ordem por força, ouviu instantaneamente sobre si a voz de traidor, viu-se rodeado e preso. Se o negócio se decidisse pela pluralidade de votos, ele era ali morto sem remédio; porém, o menor número, que era o dos mais moderados, conteve o maior, decidindo que fosse José Cardoso conduzido à presença do Bispo, para ser posto à disposição do governo.
Entretanto se amontoava mais povo à roda dele; diziam-lhe mil injúrias, apontavam-lhe as armas, e ouvia-se em gritarias morra o traidor. Quando se encontrava algum clérigo, diziam-lhe que absolvesse aquele ladrão, que ia a morrer, e o infeliz tinha mesmo o cuidado de pedir absolvição, porque não dava um passo [em] que não visse a morte diante dos olhos. Com este horrível tumulto chegaram ao paço, e pararam com a vítima à porta denominada de Vendome [sic], enquanto um Capitão se adiantou a informar o Bispo. Bem quis este valer-lhe, mas o povo achava-se tão enfurecido que, para evitar maiores excessos, não houve remédio senão conduzi-lo à cadeia e metê-lo numa enxovia das mais horrorosas. Duvidando ele entrar, o introduziram por força, despedaçando-lhe a barretina, a farda, a banda, e correndo a sua vida novos riscos; ali foi conservado enquanto durou o calor revolucionário. É preciso, eu o direi sempre, conhecer o povo; depois de amotinado, raras vezes cede sem passarem os seus primeiros ímpetos; depois de acostumado a dar a lei, não reconhece mais limites nas suas empresas.
Não se tendo encontrado o inimigo, vários ajuntamentos de povo andaram nessa noite pelas ruas da cidade, repetindo os gritos de Viva Portugal, viva o Príncipe Regente, mas cometendo entretanto alguns excessos e atroando tudo com tiros e alaridos, que além do prejuízo que causavam com o desperdício de cartuxame, ameaçavam a segurança pública. Conheceu o governo a necessidade de coibir tantos desvarios, e conseguida na manhã seguinte a certeza de que não havia franceses que se encaminhassem para o Porto, por meio de exploradores que se haviam mandado a diversos sítios, cuidou seriamente na quietação interna da cidade.
Mandou-se recolher o povo a suas casas, com ordem de não se fazerem mais ajuntamentos, senão quando se tocasse a rebate; e determinou-se que em nenhuma parte se desse este sinal sem primeiro se ter dado na catedral; bem entendido que devia ser acompanhado de uma bandeira na torre, sendo de dia, e de um farol aceso, sendo de noite; porque o toque dos sinos sem este sinal deveria entender-se para acudir a fogo. O Bispo publicou duas proclamações sobre este assunto [a primeira no dia 21 de Junho e a segunda no dia seguinte]; e apareceram mais uma outra proclamação e um edital do Desembargador José Feliciano da Rocha Gameiro, que o governo nomeou Juiz da Inconfidência e Intendente Geral da Polícia; por meio destas e doutras providências análogas, se conseguiu enfim tranquilizar o povo por algum tempo.
[Fonte: José Accursio das Neves, Historia Geral da Invasão dos Francezes em Portugal, e da Restauração deste Reino - Tomo III, Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1811, pp. 163-198].
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Continuava a Junta nas providências de defesa e de organização; o povo, no seu entusiasmo e também na sua efervescência. A 20, depois do meio-dia, os sinos começaram novamente a tocar, e o povo a ajuntar-se com tanta presteza ao som de instrumentos bélicos, que o Porto parecia um campo de batalha. Era a consequência de se ter espalhado uma voz falsa de que o inimigo se achava nos Carvalhos, a 2 léguas da cidade. Procurou-se depois a origem desta voz, e se achou que procedia de ter o Juiz de Fora de Oliveira de Azeméis mandado embargar todo o pão cozido desta vila e aldeias vizinhas para os franceses que esperava, em razão de lhe ter faltado o que tinha pedido a Luís de Oliveira do assento do Porto.
O certo é que tudo se armou prontamente do modo possível. Os eclesiásticos seculares e regulares, que pouco depois começaram a formar um corpo separado, debaixo do comando do Deão da Sé, Luís Pedro de Andrade Brederode, com o título de Coronel, para fazerem a guarnição da cidade, enquanto as outras tropas marchassem contra o inimigo, já neste dia deram provas manifestas do seu zelo pela justa causa que defendiam. Correram às armas, como os mais cidadãos, distinguindo-se entre eles os religiosos de S. Domingos, que se agregaram aos milicianos da Maia, submetendo-se ao Coronel respectivo. Um dos mesmos religiosos, vendo que o Coronel levava duas bandeiras sem haste, lançou mão de uma delas, e arvorando-a sobre um pau, a foi conduzindo até o campo de Santo Ovídio, para onde marchou a multidão com um grande aparato marcial, esperando ali o inimigo; algumas partidas se adiantaram por diferentes pontos, até à distância de uma légua ou légua e meia da cidade.
O primeiro golpe de badalo nesta ocasião foi o sinal da desgraça de José Cardoso: saindo de casa, ele se expunha aos insultos populares; não saindo, confirmava contra si as suspeitas de traidor. Ele se conservou recolhido até mais de meia tarde, e saindo a essa hora, por se persuadir que era do seu dever, encontrou-se com um preso, conduzido por uma escolta de ordenanças, o qual implorou o seu patrocínio, por o conhecer, para conseguir a soltura. Examinou o Governador os motivos da prisão, e parecendo-lhe que eram de pouco momento, determinou que o preso fosse solto. A escolta não quis obedecer, e fazendo o Governador acção com a espada para o povo, como quem queria fazer executar a sua ordem por força, ouviu instantaneamente sobre si a voz de traidor, viu-se rodeado e preso. Se o negócio se decidisse pela pluralidade de votos, ele era ali morto sem remédio; porém, o menor número, que era o dos mais moderados, conteve o maior, decidindo que fosse José Cardoso conduzido à presença do Bispo, para ser posto à disposição do governo.
Entretanto se amontoava mais povo à roda dele; diziam-lhe mil injúrias, apontavam-lhe as armas, e ouvia-se em gritarias morra o traidor. Quando se encontrava algum clérigo, diziam-lhe que absolvesse aquele ladrão, que ia a morrer, e o infeliz tinha mesmo o cuidado de pedir absolvição, porque não dava um passo [em] que não visse a morte diante dos olhos. Com este horrível tumulto chegaram ao paço, e pararam com a vítima à porta denominada de Vendome [sic], enquanto um Capitão se adiantou a informar o Bispo. Bem quis este valer-lhe, mas o povo achava-se tão enfurecido que, para evitar maiores excessos, não houve remédio senão conduzi-lo à cadeia e metê-lo numa enxovia das mais horrorosas. Duvidando ele entrar, o introduziram por força, despedaçando-lhe a barretina, a farda, a banda, e correndo a sua vida novos riscos; ali foi conservado enquanto durou o calor revolucionário. É preciso, eu o direi sempre, conhecer o povo; depois de amotinado, raras vezes cede sem passarem os seus primeiros ímpetos; depois de acostumado a dar a lei, não reconhece mais limites nas suas empresas.
Não se tendo encontrado o inimigo, vários ajuntamentos de povo andaram nessa noite pelas ruas da cidade, repetindo os gritos de Viva Portugal, viva o Príncipe Regente, mas cometendo entretanto alguns excessos e atroando tudo com tiros e alaridos, que além do prejuízo que causavam com o desperdício de cartuxame, ameaçavam a segurança pública. Conheceu o governo a necessidade de coibir tantos desvarios, e conseguida na manhã seguinte a certeza de que não havia franceses que se encaminhassem para o Porto, por meio de exploradores que se haviam mandado a diversos sítios, cuidou seriamente na quietação interna da cidade.
Mandou-se recolher o povo a suas casas, com ordem de não se fazerem mais ajuntamentos, senão quando se tocasse a rebate; e determinou-se que em nenhuma parte se desse este sinal sem primeiro se ter dado na catedral; bem entendido que devia ser acompanhado de uma bandeira na torre, sendo de dia, e de um farol aceso, sendo de noite; porque o toque dos sinos sem este sinal deveria entender-se para acudir a fogo. O Bispo publicou duas proclamações sobre este assunto [a primeira no dia 21 de Junho e a segunda no dia seguinte]; e apareceram mais uma outra proclamação e um edital do Desembargador José Feliciano da Rocha Gameiro, que o governo nomeou Juiz da Inconfidência e Intendente Geral da Polícia; por meio destas e doutras providências análogas, se conseguiu enfim tranquilizar o povo por algum tempo.
[Fonte: José Accursio das Neves, Historia Geral da Invasão dos Francezes em Portugal, e da Restauração deste Reino - Tomo III, Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1811, pp. 163-198].
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