Senhor:
Nós abaixo assinados deste Real Compromisso do Lugar de Olhão vamos fazer patente a Vossa Alteza Real a glória que temos até hoje recebido de sermos os mais valorosos portugueses, e todo este povo.
É certo, Real Senhor, que Vossa Alteza Real, por julgar conveniente e querer sempre amparar os seus fiéis vassalos, olhando para eles com olhos de piedade e ternura, se quis retirar para o Rio de Janeiro, e não querer jamais expô-los a que derramassem o seu sangue, e para isso mesmo Vossa Alteza Real instituiu uma Regência, a quem deu toda [a] autoridade, e nos deixou um Real Decreto de 26 de Novembro do ano [...] passado, em que nos ordenava [que] tratássemos os franceses como irmãos, o que observámos, aprontando-se-lhe tudo quanto eles requeriam com a maior prontidão que é possível; porém, Real Senhor, em poucos tempos, com falsas promessas, principiaram a iludir todo este Reino, chamando já uma parte dos portugueses para seguirem os seus malévolos partidos, que estes são quem têm sido todo o flagelo da nossa nação, pois eram quem nos atropelavam por todos os modos, já impondo-nos contribuições avultadas, umas sobre as outras*; a tudo estava sujeito este Povo e este Reino; e mais, só deste Real Compromisso fomos obrigados a dar ao General francês do Algarve, para seu prato, a quantia de 88$000 mil réis por mês, a fim de conceder licença para estes pobres mareantes irem pescar, não falando naquilo de que pagavam mais de vinte por cento, e não se viam mais que violências e opressões. Não era só isto, Real Senhor, a pior e mais enorme traição que eles queriam formar, [que] era fazer um recrutamento desde a idade de 15 anos até quarenta, fosse solteiro ou casado, frade ou clérigo, como se viu na lista que tinha vindo ao Corregedor mor francês; e vendo nós todos esta tirania, pois logo que Vossa Alteza Real se retirou, lançaram decretos [para] que não nos assustássemos, pois que eles só vinham defender-nos dos nossos inimigos e padrastos dos ingleses; e em breves momentos lançavam outros já ameaçando-nos com a morte, e dizendo que tinham conquistado Portugal, fazendo trinta mil insultos e roubos, pois até os mesmos vasos sagrados, lâmpadas e cruzes roubavam; até mesmo deitando abaixo a Regência que Vossa Alteza Real tinha deixado para ser aquela que nos governasse. Depois de todos estes acontecimentos, indo-se afixar um Edital no dito Lugar no dia da Procissão do Corpus Christi, dezasseis do mês de Junho, o Governador de Vila Real [de Santo António], José Lopes de Sousa, que já estava retirado do Governo e [que] se achava neste Lugar por não querer estar debaixo das ordens do General Junot, o rasgou e logo principiou a dar vivas a Vossa Alteza Real e a toda a Família Real, o que correu todo o povo com a mesma alegria e contentamento a arvorar a nossa bandeira, que até estava proibida, e expressando-se o dito Governador que ele estava pronto para se pôr à testa de todo este povo, o que de repente se efectuou, e se foi dar logo princípio a romper o teatro da guerra achando-se sem armas; porém, lembrando-se dos nossos antepassados e que nas nossas veias ainda circulava o valoroso sangue português, por isso se atreveram ir a acometer um corpo de tropas inimigas armadas, e nós os portugueses [com] apenas algumas espingardas que cada um de seus donos tinham, que juntos com quarenta dos soldados de pé de Castelo** marcharam todos a atacar os franceses, e vendo o inimigo a intrepidez com que todo este povo os atacava, pois não temiam a morte, se retiraram e principiaram a temer este povo, pois se aprisionaram 58***; como neste Lugar não houvessem prisões com segurança, o dito Governador os mandou conduzir à Espanha e ao mesmo tempo pedir armamento, o que se fez; e retirando-se o inimigo para a cidade de Faro, se conservaram fora da mesma para se reforçarem com artilharia para virem arrasar este Lugar juntos com alguns portugueses que até este tempo estavam em paz com eles; e vendo-nos ameaçados por todos os lados para sermos atacados, tendo-se já passado três dias que nos achávamos nesta deplorável situação sem que cidade, povo ou lugar algum se resolvesse a socorrer-nos, eis que no dia dezanove, pelas três horas da tarde, se revolucionou a cidade de Faro contra os pérfidos inimigos, temendo que nós os fossemos atacar, como bem prova o Edital incluso que nos foi dirigido pela Câmara da mesma cidade, em que nos ameaçava bastante****, depois disto chegou uma embaixada em que pedia a paz e sossego, pois que a sua tenção era viverem sempre bem e que não nos ofendiam, foi dado em resposta por este Real Compromisso que não cediam pois que tínhamos muita gente, pólvora e bala para os abraçarmos a todos, e que eles só conheciam a Vossa Alteza Real por seu Monarca; depois desta resposta dada, foi Nossa Senhora da Conceição, defensora do Reino, servida tocar no coração dos habitantes portugueses da cidade de Faro para formarem um corpo, de sorte que o inimigo vendo isto desamparou o campo, e já se acham expulsos deste Reino do Algarve. Real Senhor, tem chegado a tanta miséria este povo que até mesmo foi preciso a este Real Compromisso ir pedir pelas ruas uma esmola para o sustento destes pobres mareantes, que todos estavam pegados em armas, visto que este Real Compromisso se achava já exaurido pelo pagamento que tinha feito antecedentemente à tropa deste Lugar. Brevemente faremos presente a Vossa Alteza Real um plano mais circunstanciado*****. Estes têm sido todos os serviços que este Real Compromisso e povo têm feito a Vossa Alteza Real e continuam a fazer até à final conclusão de ficarem extinguidos e destroçados estes implicáveis inimigos.
Deus Guarde a Vossa Alteza Real e a toda a Real Família para que tenhamos a glória de ainda irmos beijar as Reais Mãos à Família Real, como esperamos.
Olhão, 2 de Julho de 1808.
Juiz José Martins Micano
António Martins Calado
Lourenço da Costa
Francisco da Rocha
José dos Santos
Fernando da Silva
Do escrivão da mesa João da Rosa
[Fonte: Alberto Iria, A Invasão de Junot no Algarve, Lisboa, 1941, s. ed., pp. 388-389 (Doc. 86). Corrigimos alguns passos de acordo com uma reprodução fac-simile do manuscrito original, disponível no livro de Adérito Fernandes Vaz, As Navegações dos Olhanenses em Caíque e a 1.ª Invasão Francesa em 1808, no contexto regional e nacional, Olhão, Elos Clube de Olhão, 2008, pp. 137-140. Devemos ainda acrescentar que esta carta foi publicada originalmente, ainda que truncada e ligeiramente adaptada, na Gazeta do Rio de Janeiro de 24 de Setembro de 1808, ou seja, logo após a chegada dos olhanenses àquela cidade brasileira, como teremos ocasião de pormenorizar mais adiante].
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Notas:
Notas:
* Note-se que a maior crítica é dirigida não aos franceses mas antes às próprias autoridades portuguesas.
** A 9 de Abril de 1762, D. José tinha extinguido por alvará os soldados chamados de Pés do Castelo, com a criação da Artilharia da Corte, embora a anterior nomenclatura tenha perdurado durante bastante mais tempo, como aqui podemos ver. Cf. João Pedro RIBEIRO, Indice Chronologico remissivo da Legislação Portuguza posterior à publicação do Código Filippino – Parte II. Desde o principio do reinado do Senhor D. José I até o fim do anno de 1805, 1806 [Segunda Impressão], Lisboa, Typografia da Academia Real das Sciencias de Lisboa, p. 56.
*** Ao contrário do que Sebastião Drago de Brito Cabreira tentou provar na sua Relação Histórica da Revolução do Algarve contra os Franceses que dolosamente invadiram Portugal no ano de 1807, o lugar de Olhão alojava militares franceses quando se principiou a revolta, dos quais 58 foram aprisionados logo no dia 16 de Junho de 1808 (fora alguns que conseguiram fugir em direcção a Faro, dos quais não se conhece o número exacto).
**** Parece que os olhanenses estavam mais comprometidos em denunciar a oposição das autoridades de Faro do que por exemplo em ressaltar as acções que os mesmos tiveram no dia 18 de Junho, que nesta carta foram completamente omitidas (nomeadamente a intersecção de dois destacamentos de militares franceses vindos do sotavento algarvio, que se saldou na captura de 77 soldados; 3 ou 4 oficiais - segundo as versões; e 1 quartel-mestre, todos eles pertencentes à Legião do Meio-Dia, juntamente com as respectivas armas, munições e bagagens - e ainda uma porção considerável de material bélico que os franceses tinham extraído dos arsenais e depósitos de Lagos e Tavira -, para além de quase duas dezenas de mortos e alguns feridos do lado inimigo). De facto, para além desta carta, o Compromisso Marítimo de Olhão fez questão em remeter ao Príncipe Regente um edital que a Câmara de Faro tinha mandado publicar na sequência da revolta dos olhanenses, o qual confirmava a versão não oficial, por assim dizer, da "restauração" do Algarve, principiada a 16 de Junho no lugar de Olhão, e aí continuada, isoladamente, durante três dias e meio. Desconhece-se o paradeiro e o exacto conteúdo desse edital, do qual nem sequer consta uma simples menção nas posteriores actas de vereação da Câmara de Faro, que poderia ter aproveitado a retirada dos invasores do Algarve para se retractar, se realmente tivesse sido vítima da opressão dos franceses, como sugeriu Acúrsio das Neves. Na verdade, os olhanenses não devem ter estranhado o tal edital ameaçador, dado que conheciam por experiência própria a repetida opressão que lhes fazia a dita Câmara, opressão esta que começara muito antes do próprio Napoleão ter decidido invadir o país (ver a este respeito António Rosa Mendes, Olhão fez-se a si próprio, Olhão, Gente Singular Editora, 2009). Apesar de tudo, parece que Acúrsio das Neves chegou mesmo a consultar o referido edital, descrevendo-o (e desculpabilizando os seus autores) no seguinte trecho:
"O Senado da Câmara desta cidade [de Faro], dominado e oprimido pelos franceses, mandou afixar em Olhão um tristíssimo edital, em tudo contrário ao de [José] Lopes [de Sousa], dirigido a sufocar os movimentos da restauração, a que chamava o mais tumultuoso e escandaloso atentado contra a segurança da nação, de que aquele Senado era sabedor com bastante mágoa sua, no tempo em que este reino tinha as mais bem fundadas esperanças da sua independência, exortando consequentemente aquele povo a tirar-se da cegueira em que se achava, e que era ainda tempo de dissipar, não sendo seguido semelhante partido por pessoa alguma, antes procurando as pessoas daquela cidade os meios justos de persuadir aos seus parentes e amigos residentes em Olhão a que abraçassem o bem que se lhes propunha, obedecendo a quem governava, e apartando de si os males iminentes a que estavam expostos. Ainda dizia mais o edital: increpava aqueles valorosos restauradores da pátria de fazerem com que a fiel nação portuguesa viesse a ser marcada com o ferrete infame da ingratidão. Que blasfémia! Lavemos, se é possível, esta grande nódoa da Câmara de Faro: o ferrete infame é bem conhecido neste edital; ele só podia vir imediatamente de uma mão francesa. Os camaristas lhe prestaram as suas assinaturas, mas também o algoz fere a vítima, e não é senhor do braço que move o cutelo. Não increpemos pois com repreensões amargas àqueles que o assinaram, bastam-lhes os remorsos, a dor acerba que terão sentido de serem os instrumentos maquinais das pérfidas tramas de nossos opressores, expondo em nome de um povo fiel e valoroso, sentimentos diametralmente opostos aos que animavam os seus corações. Que o eram, mui brevemente se fez patente, pelo que aconteceu em Faro".
[Fonte: José Accursio das Neves, Historia Geral da Invasão dos Francezes em Portugal, e da Restauração deste Reino - Tomo III, Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1811, p. 281].
***** Desconhecemos se o Compromisso Marítimo de Olhão chegou a enviar ao Príncipe Regente o referido "plano mais circunstanciado". A ter sido composto, é possível que tenha sido baseado na Lembrança de João da Rosa (ou vice-versa).