Bayonne, 19 de Abril de 1808
Violais a lei do bloqueio contra a Inglaterra em Portugal e recebeis navios neutros carregados de mercadorias coloniais supostamente vindos da América, mas que todo mundo sabe que vêm de Londres. Dai ordens para que todas as embarcações americanas ou outras que cheguem ao Porto carregadas de mercadorias coloniais sejam sequestradas. Deixai igualmente de expedir o vinho do Porto em embarcações de Kniphausen e de hamburgueses, pois vão para a Inglaterra. Se os meus corsários tomarem estas embarcações, serão boas apreensões. Toda a embarcação que leve bandeiras de Kniphausen está à conta dos ingleses e por isso deve ser confiscada. É absurdo que, enquanto Bordeaux não pode exportar um tonel de vinho e enquanto a Holanda não pode fazer sair um navio, Portugal tem a liberdade de fazer comércio com a Inglaterra. Este é um assunto da maior importância; vigiai-o seriamente. A Inglaterra gasta os últimos recursos, e, se lhe abrimos as portas de Portugal, ela fazer-nos-á um mal imenso.
[Fonte: Correspondance de Napoléon Ier - Tome XVII, Henri Plon Éditeur - J. Dumaine Libraire-Éditeur, Paris, 1865, p. 25 (n.º 13764)].
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Observações:
Pouco depois de chegar a Lisboa, no final de Novembro de 1807, Junot observou que uma esquadra inglesa raramente se afastava da foz do Tejo, onde exercia um rigoroso controlo sobre todas as embarcações que entravam ou saíam do porto da capital. Estava assim já bloqueado o porto que Napoleão lhe tinha ordenado para ocupar e bloquear...
Deve notar-se que este duplo bloqueio não ocorreu somente em Portugal, mas sim um pouco por toda a Europa, e, ao contrário do que Napoleão esperava ao ter decretado o bloqueio continental, este acabou por prejudicar menos a Inglaterra e mais o Império francês, provocando uma recessão e escassez alimentar generalizada, como se reflecte na seguinte caricatura, atribuída a George Moutard Woodward e publicada precisamente em Novembro de 1807, com John Bull com a mesa farta enquanto Napoleão apenas tem um prato de sopa para comer:
Fonte: Oxford Digital Library
Receando vivenciar o cenário acima caricaturizado, Junot escreveu a Napoleão logo no dia 21 de Dezembro de 1807, adiantando-lhe que "os decretos do Rei de Inglaterra, que declaram sujeitos a apresamento todos os navios neutrais destinados a portos da França ou dos seus aliados e que não tenham tocado num porto inglês, vão criar novas dificuldades para o abastecimento de Lisboa, que sem isso estava assegurado, e à exportação de produtos do solo de Portugal pelos navios neutrais. Eis dois assuntos que merecem que V. M. se digne pensar neles por um momento; não será possível abrir uma excepção em benefício dos navios carregados de cereais que de qualquer origem vierem para Portugal, nem para os que levarem os frutos ou outras produções do solo português, cuja exportação é o único recurso que temos para realizar numerário? Como V. M. persiste no seu sistema proibitivo de qualquer navio proveniente de Inglaterra ou que tenha tocado em algum dos seus portos, não terá a necessidade de qualquer acto derrogatório; os americanos e o comércio português confiam na minha palavra de honra e nem sequer me pedem garantias por escrito, mas eu nada quero fazer sem ordens de V. M., e o assunto é suficientemente importante para eu ter a certeza de que V. M. tomará a melhor decisão quer me conceda quer me recuse a autoridade necessária para garantir aos negociantes neutrais ou nacionais que os navios carregados com cereais e mantimentos poderão entrar livremente nos portos de Portugal, venham de onde vierem, e igualmente deles sair desde que apenas transportem os produtos do solo de Portugal. Pode V. M. estar certo de que não abusarei da autoridade que teve a bondade de me conceder; só o interesse do país, de cujo governo V. M. me incumbiu, me faz agir e falar nestas circunstâncias" [Junot, Diário da I Invasão Francesa, Lisboa, Livros Horizonte, 2008, p. 120 (n.º 79)].
Segundo a correspondência conhecida, Napoleão não chegou a dar qualquer resposta formal a estas delicadas dúvidas. Pouco mais de um mês depois, Junot, obedecendo a novas ordens de Napoleão, decretava o pagamento da contribuição de 100 milhões de francos (ou 40 milhões de cruzados). Ora, Junot rapidamente percebeu que seria impossível pagar-se a totalidade da dita contribuição: por um lado, o Príncipe Regente esvaziara os cofres régios antes de partir para o Brasil; por outro lado, Portugal era um país que vivia essencialmente do comércio marítimo, sendo que o dinheiro praticamente deixara de circular desde que se tinham encerrado os portos do país. Tudo isto, acrescido com as naturais despesas provocadas por cerca de 50.000 militares franceses e espanhóis instalados no país, conduziu inevitavelmente ao agravamento da crise económica que se sentia há alguns anos. Procurando avivar a economia e ao mesmo tempo abastecer-se de recursos que o país carecia, Junot voltou a permitir a exportação de vinhos a partir do Porto, tal como foi comunicado, a 24 de Fevereiro de 1808, à Companhia das Vinhas do Alto Douro, desde que cumpridas duas condições: que as embarcações fossem de Estados neutros e que voltassem com mantimentos.
Contudo, e daí as queixas de Napoleão na carta acima transcrita, "na forma das ordens subsistentes dos dois Governos francês e inglês", como escreveu acuradamente Acúrsio das Neves, "não havia bandeira alguma neutra que pudesse entrar ou sair dos portos de Portugal; mas Junot inventou duas, a dos Estados Unidos da América e a de Kniphausen, deste pequeno e quase deserto porto que foram descobrir na foz do Elba, para ser agora o veículo de importantes negócios. Abriu o exemplo de licenciar alguns navios, para saírem com estas bandeiras; e como se visse que a esquadra inglesa não lhes fez obstáculo, porque as vistas do ministério britânico tendiam a favorecer por todos os meios a evasão de tudo o que pudesse tirar-se de Portugal, apresentaram-se por centenares a pedir licenças. Estas vendiam-se por tão alto preço que a despesa muitas vezes igualava o valor dos vasos; assim mesmo todos queriam sair, porque se julgavam condenados a apodrecer dentro dos portos, e porque os grandes fretes que pagavam os passageiros que queriam emigrar supriam a tudo.
Ajustavam-se publicamente e sem rebuço os preços das licenças, como se fosse uma taxa legal, à proporção do valor ou da lotação dos navios; e jamais se concedeu licença que o preço não ficasse depositado nas mãos do cônsul das cidades anseáticas; é deste, que depois passava aos diferentes indivíduos que levavam parte nesta grande colheita; pois se sabe que não era tudo para Junot. Concediam-se sempre com alguma reserva, e gradualmente por antiguidades, ou segundo a ordem do mais ou menos, que produziam para a caixa; e não foi difícil de conhecer que a razão desta reserva era para que a saída simultânea de um grande número de navios não fizesse tanto estrépito que ferisse os ouvidos de Napoleão.
A estas indulgências deveu sem dúvida Junot uma boa parte da sua fortuna; e deveram inumeráveis portugueses o seu resgate, transportando-se a países livres. Enfim, Napoleão o soube; e também lhe constou o que praticava aquele General com a companhia dos vinhos do alto Douro, e alguns particulares, permitindo-lhes o transportarem vinho em navios neutros. Estava regulada a taxa por pipa, e a companhia sabia merecer esta graça; porque era um corpo muito generoso e rico. Consta da balança do comércio que a exportação excedeu no tempo do Governo intruso a 30.000 pipas, por cada uma das quais levava Junot 6.400 réis, aqui temos pois mais um ramo da colheita que lhe andou por quase 500 milhões de cruzados.
Muito custou a Junot o desembaraçar-se das ásperas repreensões de seu amo [Napoleão] sobre estes pontos melindrosos. Champagny [ministro dos Negócios Estrangeiros], numa carta que escreveu a Hermann, também lhe estranhava altamente que saíssem dos portos de Portugal tantas pipas de vinho em navios com bandeira de Kniphausen, para irem satisfazer o apetite dos ingleses, ao mesmo tempo que o Imperador não consentia que saísse de Bordeaux um só barril. Cessou a exportação, e cessaram as saídas de navios; mas todos ficaram bem; eram amigos velhos que sabiam perdoar-se as suas recíprocas fraquezas, porque todos trabalhavam na mesma vinha". [Fonte: Accursio das Neves, Historia Geral da Invasão dos Francezes em Portugal, e Restauração deste Reino - Tomo II, Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1810, pp. 92-95].
Adiante veremos a resposta de Junot a esta carta de Napoleão.