quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Carta do General Bernardim Freire de Andrade ao Bispo do Porto (1 de Setembro de 1808)



Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor:

Ainda hoje não me é possível escrever a Vossa Excelência de mão própria com a extensão que quisera, porque os meus olhos, como os de muitas pessoas do Exército, têm sido atacados de inflamação, sem que se conheça exactamente a razão desta epidemia. Na última que tive a honra de dirigir a Vossa Excelência, da Lourinhã, expus a Vossa Excelência quanto havia acontecido até à sua data. Acrescentarei agora que a 29 partimos da Lourinhã, fazendo a direita do Exército de Operações, tendo-se combinado este movimento com o General Dalrymple, que escolheu a posição do centro; e pelo meio da tarde chegámos à Encarnação, aldeia distante de Mafra quase duas léguas. Alguns destacamentos franceses nos observavam, e se retiravam tanto que os mandei reconhecer. À noite tive insinuação daquele General para não adiantar a minha marcha enquanto o seu Exército se não avançasse mais, pois que estávamos mais distantes dele que do inimigo. Ontem se adiantaram os ingleses; expediram-se ordens ao Brigadeiro Bacelar para continuar a sua marcha, e por ofícios que dele recebi, entendo que estas ordens o achariam pronto para partir imediatamente; reuniram-se-nos quase todas as tropas que em Leiria tinha destacado para o Exército inglês, e hoje um corpo deste mesmo Exército, forte de 3.000 homens, comandado por Murray, se aproximou do nosso para cooperar com ele. Além de muitos oficiais de diferentes corpos, vieram mais 210 soldados da Guarda da Polícia incorporar-se armados com o Exército; segundo estas medidas, o inimigo está apertado por um cordão de mais de 40 mil homens; e findo o Armistício, ou deve capitular, ou se expõe a ser inteiramente derrotado. Ele tinha ontem na Ericeira 60 homens, e em Mafra 1.500, pouco mais ou menos; estes devem desaparecer diante de nós imediatamente que saiamos daqui.
Diz-se constantemente que o inimigo está desanimado; que o povo de Lisboa o trata já com desprezo e certa superioridade; e que Junot tem feito passar para Cacilhas alguma tropa, que se diz [que] estacionaria. O Brigadeiro Bacelar mandou reconhecer este lado do Tejo, e tem tomado medidas para se lhe obstar se for possível; e já se diz que a tropa de Setúbal e alguma outra lhe disputam o passo.
Da Esquadra russa nada se sabe aqui de positivo; parece provável que ela não tome o partido dos nossos inimigos. Tem sido preciso providenciar sobre as distribuições dos géneros que formam a base da subsistência do Exército, e mandei observar inteiramente o regulamento de 22 de Novembro de 1802, contando-se a data dos vencimentos segundo as ordens anteriormente estabelecidas. 
Igualmente dei algumas providências interinas para fornecimento da Caixa Militar do Exército que comanda o Brigadeiro Bacelar, tomando as quantias necessárias para os Cofres Públicos da Comarca de Santarém e Torres [Vedras] por empréstimo e serem pagas pela mesma Caixa. De provisões de boca temos melhorado, porque apareceram alguns celeiros públicos e de particulares que estavam debaixo de confisco, e deles nos vamos provendo de preferência, por não vexar os povos.
O Desembargador Sebastião Correia, que aqui chegou ontem à noite, poderá dar-nos mais algum descanso sobre estes artigos. Continua-se a prender e processar gentes más ou suspeitosas, e a pôr a coberto de insultos todas as autoridades públicas. Ao Exército do Brigadeiro Bacelar mandei reunir a tropa que estava em Tomar e qualquer outra que lhe ficasse ao alcance, e montar o Regimento de Cavalaria de Santarém; em consequência do que ele mandou vir de Abrantes 600 armas para o Regimento n.º 23 e 300 homens do mesmo Regimento, e 300 recrutas do Regimento n.º 24, e de Viseu toda a Cavalaria do Regimento n.º 11 que estivesse pronta para entrar em acção, e requereu ao Marechal de Campo José António Botelho as duas Companhias de Infantaria para se unirem ao Corpo espanhol do Marquês de Valladares, que, contra o seu primeiro destino, ultimamente haviam passado ao bloqueio de Almeida. Ele cuida em se apoiar dos povos de Ribatejo, entusiasmando-os e armando as ordenanças; eu lhe mandei provimento de proclamações para se obter aquele efeito. Até 29 não havia em Santarém notícia do Exército espanhol, que tantas vezes se tem anunciado vagamente, e se dizia ser de 15 mil homens. O Brigadeiro Bacelar tinha já mandado um oficial e três expressos para saber daquele corpo.
Se ele aparecesse sobre o lado esquerdo do Tejo, seria uma fortuna para aquela província, porque bateria o inimigo, se já tivesse na verdade desembarcado, e obstaria ao desembarque, se ele o intentasse; vindo a evitar-se em todo o caso que ele se recolha a Elvas, ou o que seria pior, se dirija para a Beira.
Enfim, eu insisto neste princípio, que de tal modo se deve atacar o inimigo, que as províncias e todos os povos da retaguarda dos Exércitos não possam mais ser inquietados por eles, e estou certo que é assim que se ganhará a confiança pública; sendo-me de muita consolação em todo o caso, Senhor, que estas medidas são da aprovação de Vossa Excelência e do Governo.
Quartel-General da Encarnação, 1 de Setembro de 1808*.

Bernardim Freire d'Andrade [sic].

[Fonte: Luís Henrique Pacheco Simões (org.), "Serie chronologica da correspondencia diplomatica militar mais importante do General Bernardim Freire de Andrade, Commandante em Chefe do Exercito Portuguez destinado ao resgate de Lisboa com a Junta Provisional do Governo Supremo estabelecido na cidade do Porto e o Quartel General do Exercito Auxiliar de S. Magestade Britanica em Portugal", in Boletim do Arquivo Histórico Militar - Vol. II, 1931, pp. 3-77, pp. 3-5 (doc. 60)].


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Nota: 

* Segundo a transcrição que utilizámos, este documento está datado de 2 de Setembro. Contudo, pelo seu contexto, tal datação parece estar errada, e aliás, no índice da correspondência da citada "Serie chronologica", indica-se que este documento foi composto a 1 de Setembro, data que nos parece a correcta. De facto, quando escreveu esta carta, Bernardim Freire de Andrade ignorava ainda que os franceses tinham assinado a capitulação definitiva, facto que só conhecerá já durante a noite de 1 para 2 de Setembro, escrevendo em consequência, logo de seguida, uma nova carta ao Bispo do Porto.