Neste dia [26 de Junho] alistaram-se os estudantes, ainda que, por ser tempo de férias, nem metade se achava em Coimbra. Tristão Álvares da Costa, Lente de Cálculo e Major de Engenharia, foi quem dividiu o Corpo em Companhias, formando-se seis, que actualmente se acham bem armadas. Muitos outros estudantes e doutores alistaram-se na Cavalaria e Artilharia. Destes Corpos é que têm saído os Destacamentos que fizeram a
conquista dos fortes da Figueira e Nazaré, e de diversas outras expedições de muita honra. Mas seria mais conveniente que se armassem de espingardas ordinárias, para servirem como caçadores, e que as armas pesadas se dessem aos Corpos de Auxiliares que ainda não as tivessem.
Também se passaram as ordens necessárias para se juntarem todas as Companhias dos Milicianos desta cidade; e efectivamente se acham juntas, e se lhes têm agregado muito dos Soldados de linha veteranos, de maneira que fazem um Corpo de perto de 1.200 praças.
Não esqueceu mandarem-se emissários com ordens e proclamações para diversas partes, ainda remotas. Uns foram para Miranda, Espinhal, Pedrogão, Sertã e margens do Zêzere, outros para Seia, Gouveia, Viseu, Guarda, Castelo Branco, Covilhã, etc., e em todas as povoações proclamaram a Restauração do Governo legítimo e a guerra nacional contra os franceses.
A esta medida do enérgico Governo de Coimbra, é que Loison deve a perda que experimentou na sua marcha para Abrantes, a bala que constantemente se afirma [que] recebera num ombro, a falta de víveres que teve e o penoso das marchas que fez; e destas diversas causas reunidas resultaram 800 estropiados ou doentes, que são outros tanto inimigos que temos de menos.
Enfim, uma medida de grande importância era o fabrico da pólvora e bala, pois tínhamos absoluta falta de munições de guerra; e para que o público conheça com verdade a extensão do trabalho que houve para se remediar esta falta no Laboratório Químico, damos por extenso a conta oficial de um dos seus Administradores.
Conta dos trabalhos do Laboratório Químico, desde 26 de Junho até 14 de Julho.
Tendo-se considerado no dia imediato à Revolução de Coimbra quão pouca era a pólvora que tínhamos para nos defendermos dos ataques do inimigo, de cuja chegada estavamos ameaçados, e sabendo-se que no Laboratório Químico se tinham muitas vezes feito diversas porções dela, pareceu conveniente executar-se a sua composição na maior quantidade possível, segundo a grande necessidade em que estávamos pelas circunstâncias actuais. Consequentemente, incumbiu o Excelentíssimo Senhor Governador este grande projecto ao Dr. Tomé Rodrigues Sobral, Lende de Química na nossa Universidade de Coimbra, o qual, unindo aos grandes talentos e amplos conhecimentos de que é dotado, o maior zelo e actividade, pôs em execução aquele tão útil e tão importante desígnio. A tarde do dia 26 gastou-se em aprontar a lenha necessária para se fazer carvão, para cuja factura concorreu muito uma carrada de vides que veio de Santa Cruz. Às 10 horas da noite apareceu alguma pólvora, mas como não houvesse quem a soubesse encartuchar, ra fazerem cnem também houvessem balas feitas, mandaram-se vir do Hospital dois soldados portugueses convalescentes, para fazerem cartuchos, e mandaram-se também chamar todos os ourives e funileiros, para fundirem as balas; no que se ocuparam toda a noite, sem descansarem um só instante, aprontando todas as formas, fundindo e ensinando também os outros. Na mesma noite cuidou-se em fazer metralha para as peças que se esperavam da Figueira; e às seis horas da manhã estavam feitos mais de 3.000 cartuchos.
Na manhã do dia 27 cuidou-se em mandar buscar aos Salgueirais do Mondego pau de salgueiro, e a Castelo Viegas aveleira, madeiras de que se faz o melhor carvão para a pólvora; igualmente se mandaram vir varas de castanho para lanças. Enfim tratou-se de juntar todo o salitre que havia na cidade, o enxofre preciso, pederneiras, chumbo e ferro. De tarde continuou o trabalho da fundição da bala, do cartuchame, da metralha, das lanças e [do] fabrico de pólvora, e principiou o das lanternetas, o que continuou por toda a noite seguinte.
[Fonte: Minerva Lusitana, n.º 7, Coimbra, 19 de Julho de 1808].
Todos os trabalhos continuam com igual actividade até ao presente, excepto de noite; multiplicando-se todos os dias os operários voluntários e os jornaleiros.
Fizeram-se até ao dia 14 de Julho cartuchos de todas as sortes...........................69.090
Destes têm-se distribuído por ordem...................................................................29.220
Nos rebates falsos, sem ordem, mais de ...............................................................7.000
Existem...............................................................................................................32.870
Lanternetas de todas as sortes..................................................................................567
Cartuchos de peça de todas as sortes cheios de pólvora feita no Laboratório........... 542
E levaram arrobas......................................................................................................22, e 18 arrat.
Metralha arrobas.......................................................................................................19
Fizeram-se lanças....................................................................................................120
O que tudo consta do livro dos assentos.
N.B. O trabalho das lanças e metralha foi transferido para a serralharia e carpintaria, onde vai continuando com grande actividade.
Com os instrumentos e aparelhos feitos acha-se o fabrico da pólvora em estado de fornecer, havendo nitro, 4 para 5 arrobas por dia, de qualidade tal que faz dar a bala recuxata [sic] e meia mais do que outra qualquer pólvora, como consta das experiências dos Artilheiros, e atestação do Major de Artilharia; relativamente à formação dos cartuchos, cada dia aprontam-se 6 para 7 mil.
Assinado: Joaquim Baptista
Merece uma particular atenção e zelo com que o Dr. Joaquim Baptista, tendo primeiro lembrado aquele trabalho, se prestou a ele, pondo todos os seus esforços e diligências para tão importante como difícil serviço. Não são pois mneras especulações e teorias estéreis as lições filosóficas dadas na Universidade, que em tão críticas circunstâncias forneceram suprabundantemente pólvora de qualidade muito superior a qualquer das conhecidas; donde se vê não só a utilidade e conhecimento proveito daquelas lições, mas além disto a vantagem dos trabalhos dirigidos por pessoas instruídos nos princípios respectivos, à dos que só seguem uma rotina empírica e puro mecanismo.
Conta dos trabalhos que se fizeram na Fábrica de Manuel Fernandes Guimarães.
Foram nesta ocasião da mais evidente utilidade os diferentes estabelecimentos que servem na fábrica de fiação de Manuel Fernandes Guimarães, pelos grandes serviços que prestou o Mestreda dita fábrica Bernardo Ferreira de Brito, natural da vila de Tomar, homem de um génio raro; e tão bom conhecimento havia dos seus talentos, que o Excelentíssimo Senhor Governador o preferiu aos artistas artilheiros que para o mesmo objecto se lhe ofereceram; com efeito em pouco tempo ele fez construir
cavalos de frisa guarnecidos de pontas de ferro, com que se obstruiram todas as entradas da cidade, e algumas com fileiras dobradas, sendo cada uma defendida por uma peça de artilharia e por um grosso destacamento de Infantaria de linha.
Por direcção do mesmo Bernardo Ferreira de Brito concertaram-se muitos centenares de espingardas, clavinas e outras armas que estavam absolutamente inúteis; fizeram-se inúmeráveis piques e também carretas de campo para a artilharia que os estudantes conquistaram na Figueira, e prepararam-se muitas outras obras relativas ao objecto presente com a maior segurança e comodidade. É incrível o prazer que sentiam todos os que iam ver aquele Arsenal, admirando a actividade com que de dia e de noite trabalhavam muitos e diferentes artistas debaixo da direcção do dito Mestre, que a tudo era presidente. O proprietário da fábrica, deixando com a maior satisfação paradas absolutamente as suas manufacturas, anima incessantemente os seus oficiais ao maior cuidado nos seus respectivos trabalhos para o bem comum da Nação.
Tal é a história das fortes medidas que se tomaram nos dias perigos de 26 e 27 de Junho; creio que todo o juiz imparcial confessará que ela faz honra a Coimbra, à Universidade e a todos os nós.