sábado, 30 de julho de 2011

Memória de Frei Manuel do Cenáculo, Arcebispo de Évora, sobre os antecedentes e consequências dos combates de Évora



Primeiro fólio da memória
Julgo ser do meu ofício conservar uma memória exacta e individual dos acontecimentos nesta cidade de Évora, principalmente relativos à minha pessoa, que sucederam desde a intrusão dos franceses neste reino; e tomo por época o dia 13 de Julho do ano [...] passado [de] 1808.
Tendo-se recebido neste dia uma carta oficial, escrita de Juromenha pelo comandante das forças espanholas naquela praça, D. Federico Moretti, dirigida à Câmara e Povo de Évora, propondo-lhe uma declaração contra o intruso governo, foi necessário proceder ao convocamento [sic] das três ordens, Nobreza, Clero e Povo, a que eu presidi; e foi o meu voto que, visto o estado da cidade, sem tropa, nem munições, não estava em estado de aceitar proposta alguma, no que todos concordaram, e se fez [um] termo, em virtude do qual foi a resposta de que se junta cópia debaixo do n.º 1; e dela se julgaram os magistrados obrigados a dar conta ao General Junot para evitar algum rompimento violento, e me foi participado pelos mesmos ministros a boa aceitação com que foi recebido este novo arbítrio.
Continuou esta cidade a sofrer pacificamente, obedecendo às ordens do governo intruso, sujeitando-se a executar as disposições dos ministros que administravam as secretarias e tribunais na Corte, e as expediam com cominações, para evitar as quais entretinha eu com respostas que acautelassem a esta minha diocese as cruéis hostilidades que sofreram tantos povos desta perseguida nação, e até me preparei com uma Pastoral que fiz imprimir, e é a que vai junta [com o] n.º 2; a qual cuidadosissímamente não publiquei, sem embargo dos exemplos de muitos outros Prelados que as publicaram, ainda que eu me visse instado e como [que] obrigado a fazê-lo pela insinuação expressa do chamado Secretário de Estado do Interior, Francisco António Herman [sic], em aviso seu e em nome do intruso Junot, datado de 13 de Maio de 1808*.
Assim permanecemos, até que não sei porque clandestina diligência se convocou o mesmo Coronel [Moretti] com alguma pequena escolta a vir a esta cidade incorporar-se com o General da província [do Alentejo, Francisco de Paula Leite], para se repetir a gloriosa aclamação do nosso Amável Príncipe, tornando a governar-nos na sua feliz obediência pelas Leis Pátrias, o que com efeito se praticou, apresentando-se ao Povo na varanda das casas da Câmara o retrato do mesmo Senhor pelos dois chefes português e espanhol, sendo inexplicável a alegria de todo o Povo, com que repetia vivas, repicando-se todos os sinos e desafogando todos os seus prazeres em mil demonstrações. Fiz eu logo que na Sé se cantasse [um] soleníssimo Te Deum, se celebrasse grande festa em acção de graças, renovando eu e todos nas minhas mãos o juramento de Fidelidade ao nosso Legítimo e Saudoso Soberano.
Recebi e hospedei no Palácio Arquiepiscopal o Coronel espanhol e grande número de oficiais e tropa que com ele concorriam. Estabelecemos um Governo de Regência, do qual eu era o Presidente com o General da província. Continuámos por poucos dias neste feliz estado, deliberando quanto nos pareceu a bem da nossa segurança e comodidade pública, quando no dia fatal de 29 de Julho fomos atacados pelo numeroso exército de nove para dez mil homens franceses, comandados pelo General em Chefe, Conde do Império Loison, e por dois outros Generais de Divisão, Solignac, e Margaron; o qual exército deixava já saqueada a vila de Montemor[-o-Novo] e feita grande mortandade, apesar da vanguarda de oitocentos homens e quatro bocas de fogo que ali tínhamos para defender o passo, a qual, à vista da desproporção com o inimigo, se retirou sem alguma operação de defesa.
Chegado este exército inimigo às vizinhanças da cidade, saíram ao campo os dois chefes com o Regimento de Estremoz, o de Voluntários Estrangeiros de Moretti, os artilheiros que serviam as quatro peças espanholas, alguma Cavalaria [espanhola] de Maria Luisa, e alguma outra do dispersado Regimento desta mesma cidade [de Évora], a que juntos os Caçadores da Ordenança, formaria um total de mil e oitocentos homens. Não há palavras para explicar o valor, a intrepidez, o patriotismo e o amor do seu Príncipe com que esta desproporcionadíssima tropa, principalmente os paisanos, arrostou o inimigo, distinguindo-se muito o Regimento de Estremoz, que investia com tanta intrepidez que o mesmo General Loison me disse que eram bravos soldados; e foi tanto o estrago feito no inimigo que, passadas duas horas de combate, à vista de terem feito a mortandade de três para quatro mil homens inimigos, mandaram os comandantes vários oficiais ao Palácio de minha residência participar-me que a vitória era nossa; o que foi por mim celebrado com graças particulares dadas ao Deus dos Exércitos, que tão visivelmente nos favorecia, e cuidei em prontamente acudir com refeição aos que julgava debilitados com o trabalho da nossa defensa. 
Quando isto celebrava vejo voltarem os mesmos e mais oficiais numa fuga debandada, e passados poucos momentos chega Moretti e me diz: Está a acção perdida; se Vossa Excelência não quer morrer às mãos dos franceses, fuja e esconda-se. Eu, que tenho em meu coração as minhas ovelhas, não julguei desampará-las em perigo tão evidente: corri para a minha Catedral, e no meio do confuso alarido do estrondo dos canhões mandei propor [a] capitulação; mas já em hora que estava entrada a cidade, desamparada de defensores, pois que toda a tropa tinha fugido em desordem, e quando já entravam pela Sé disparando tiros que mataram o meu Capelão da Cruz, que com ela e com a pequena comunidade que a mim se agregou, tinha mandado para a porta da Igreja; rebentando sobre a abóbada granadas que também mataram e feriram algumas pessoas, e fizeram cair aos meus pés estilhaços e pedaços de pedra; e quando já os oficiais vencedores e soldados, apontando-me baionetas ao peito, gritavam por dinheiro, ameaçando de morte e saque violento, eu desci do sólio, suplicando-lhes humildemente pela vida deste pobre povo. Então foi que eles à vista das minhas humilhações e súplicas deram indícios de que mudavam o parecer em que vinham de que eu era o cabeça da que eles chamavam revolução desta cidade; pois que eu era o Presidente do Governo estabelecido em nome de Sua Alteza Real. 
Eu não tinha feito acto algum positivo em obséquio da sua nação, e nem sendo insinuado tinha feito a publicação de uma só pastoral, e tanto deram disto indício que o General Loison, tendo dado ordem de entrar o exército na cidade a ferro e fogo, o que foi observado de sorte que a primeira casa em que entraram saqueando foi o Palácio Arquiepiscopal; para ele disparam muitos tiros, acometendo entretanto a casa e matando o meu Bispo Provisor, e penetrando o Convento de Santa Mónica, da jurisdição ordinária, no qual entrou o mesmo General e ordenou que dentro nele seria o seu quartel, dispondo-se as aflitas religiosas com cama e mesa, até que, informado do meu comportamento humilde e pastoral, me mandou dizer à Sé pelo seu ajudante e língua[=tradutor], o português Freitas, que se queria aquartelar no meu Palácio.
Recebi este aviso com demonstrações de satisfação e até de agradecimento, e com permissão da tropa feroz que nos tinha como prisioneiros na Sé, e com o pretexto de ir preparar a hospedagem, que logo me foi recomendada que devia ser decente e abundante para um General e quarenta oficiais; isto quando a minha família estava toda dispersa, não havendo na casa provisões algumas, e até sendo já morto por eles o meu cozinheiro. Fui neste aperto para casa acompanhado de alguns eclesiásticos e diocesanos que, por carinho, por medo e para refugiarem-se me acompanharam. Entrei em casa rodeado de militares destemidos, animados com a glória do triunfo e com o arrojo de inimigos cruéis, trazendo as espadas nuas, espingardas e pistolas empunhadas, vendo-me na necessidade de os hospedar sem faltas; para o que nunca podia estar provido, e naquela ocasião muito menos. Então entra, penetrando o interior das casas, o General Loison, com a carranca de triunfador, com a soberba de tirano, e, confrontando-se comigo, me disse, com gesto feroz e ameaçador: Monsenhor Arcebispo é réu de morte; assinou um decreto contra a França; é réu de morte. Ao que eu (graças a Deus) sem o mais pequeno soçobro, e apesar do alarido com que todos os oficiais circunstantes repetiam é verdade que é réu de morte, correspondi abaixando humildemente a cabeça, e o General continuou, apartando-se de mim com gesto e passos furiosos: Ao menos devia ter dado parte.
Comecei a dispor a hospedagem e a sofrer os insultos mais humilhantes de se deitarem sobre a minha mesma cama, de penetrarem e esquadrinharem os quartos particulares; de quererem ser servidos das coisas mais esquisitas e com a maior prontidão, até obrigando alguns criados que foram aparecendo, os clérigos e frades, como também alguns senhores que se refugiaram no Palácio, o qual tive aberto e franco para refúgio dos meus diocesanos, obrigando, digo, a que os servissem de pronto, e isto com pontapés, bofetões e ameaços de espadas e pistolas.
Foram com efeito hospedados à sua vontade com tudo quanto indiscretamente pediram, e eu lhes assistia à mesa, sem embargo do perigo a que me arriscava, pois o General ia para ela com um grande punhal que punha junto a si, e os oficiais que estavam a ela e os muitos que tumultuosamente saíam e entravam, todos armados de espadas e pistolas, ameaçando todos à mais pequena falta de prontidão. À vista de todos estes sofrimentos com paciência e humildade, se resolveu o General a dizer-me que a minha casa era livre de saque, e começou a tratar-me ele e mais alguns poucos oficiais maiores com menos desprezo e tirania; mas não foi a sua palavra observada, porque por ele mesmo General foi a minha casa saqueada excessivamente; não ficou quase nada da prata de que o meu antecessor se tinha provido; fiquei sem anel episcopal; todo o copioso monetário que a tanto custo tinha juntado para deixar, juntamente com a grande livraria que tenho edificado (a qual por si só dá tanto a ver a grande despesa que tenho feito para a instrução do Clero e Fiéis deste Rebanho, que um dos oficiais de grande patente, Mr. Pillet, disse ao vê-la: eis aqui porque o Arcebispo não tem dinheiro; pois o tem gastado nisto)**Tudo quanto era ouro e prata foi saqueado, como também rasgados os livros e feitos em pedaços os manuscritos, quebrando as mais pequenas e delicadas peças do museu natural e artificial, unicamente para levarem alguns pequenos remates de prata e oiro, fazendo em pedaços imagens de Cristo e Santos, enfim, reduzindo tudo a um estado de fazer lástima ainda a quem não é curioso.
Entretanto era aturdida toda a cidade com repetidos tiros, [e] alaridos dos desenfreados saqueadores e dos miseráveis que eram feridos e mortos e que presenciavam os desacatos feitos nos templos, o forçamento das donzelas, a entrada nos conventos dos Frades e Freiras, porque quase não houve Igreja onde não obrassem o insolentíssimo sacrilégio de arrombar o Santo Tabernáculo, espalharem pelo pavimento o Sacrossanto Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo Sacramentado, para roubarem os vasos sagrados, até chegando a levar alguns com o mesmo Santíssimo Sacramento que derramaram no campo; profanando os mesmos Templos com homicídios e forçamentos a mulheres de todo o estado e idade.
Passada assim a tarde e noite de sexta-feira 29, fui na madrugada de Sábado rodeado pelo General e mais oficiais, mandando-me que fizesse uma exortação ao meu povo para que obedecesse à autoridade francesa, e que ordenasse o desarmamento do clero. Não tive mais remédio do que pegar na pena e com o socorro do Espírito Santo fazer as duas pequenas pastorais de que junto cópias (n.os 3 e 4); as quais, sendo por eles lidas, me ordenaram que prontamente lhe apresentasse vinte cópias delas; como também que mandasse logo cuidar em enterrar os muitos mortos de que estavam juncadas as ruas e cheias as casas; acrescentando que queriam estabelecer um Governo francês do qual seria eu o Presidente, e que lhe indicasse os membros de que se havia compor a Junta; tudo isso com sinais de que a minha vida responderia pela falta de sujeição, quando não havia na cidade pessoas de quem me lembrasse, as quais não estivessem mortas, como era o meu saudoso Bispo Provisor, os Desembargadores Manuel Simões e Fernando Silveira, e outros dispersos e fugidos. Tudo fiz auxiliado do meu clero exemplar, que com todo o fervor me ajudaram num tal aperto e aflição.
Então se seguiu que o General me tratasse com mais benignidade, protestando-me respeito, e que por mim perdoava as mortes que se haviam de seguir, como também dava a liberdade a inumeráveis prisioneiros que tinha dentro da Sé e nas cadeias, entre os quais eram muitos Frades e Clérigos, duzentos homens do Regimento de Estremoz e muitos paisanos; levando-me para isso à Igreja, e fazendo dizer pelo seu língua [=tradutor] a todos que em obséquio e respeito ao seu Prelado lhes perdoava a morte e dava a liberdade, do que resultou que esta aflitíssima cidade rompesse nos clamores de que era a mim que eles deviam a vida e o resto dos bens que lhes ficaram (veja-se a cópia junta n.º 5***). Gozava eu desta pequena respiração, quando ouço rodar quatro peças, e postarem-se na frente da minha casa, e um alvoroço e tumulto dentro nela, entrando de repente no meu quarto o general, e deixando-se cair com todo o peso num canapé, me diz: Monsenhor, eu não posso com os franceses; eu não posso conter os soldados. Ao que lhe respondi que não havendo subordinação na tropa nada se conseguia. Era o caso que acabando os oficiais de fazer uma resenha (posto que inexacta) da sua tropa e achando que os mortos lhe passavam de três mil, instavam a ele General que fosse queimada e arrasada a cidade, principiando pelo Palácio Arquiepiscopal. Acudiu Deus, e passada meia hora mandou retirar as peças, repetindo a fineza de que por mim perdoava tudo.
Passado o Sábado e o Domingo entre estas angústias e perigos próximos e evidentes de vida, é incrível quanto sofri por mim e pelos meus; choviam as ordens para desarmar (veja-se a cópia n.º 6), para aprontar rações, para arrasar muros, para franquear cofres, para mandar vir Cónegos que lhes abrissem as suas oficinas, de onde tiraram que havia de prata e dinheiro; como também de todos os depósitos públicos e particulares até que na madrugada de segunda-feira mandou o General dizer-me pelo seu Secretário, estando eu ainda na cama, que ele com o exército fazia uma digressão que duraria quatro dias; que me recomendava o governo da cidade, intimando-me mil ordens impossíveis de praticar-se, das quais ele viria saber a execução.
Dei graças a Deus por esta respiração que me concedia, e continuei com a Junta a cuidar no sossego e cómodo dos desolados habitantes desta triste cidade. Dei ordens para haver provisão de mantimentos e para que os dispersos e fugitivos se restituíssem às suas casas, e isto fiz unicamente para que o Povo deixado a si não se desordenasse e se acrescentassem os males uns aos outros.


[...]


Frei Manuel, Arcebispo de Évora

[Fonte: Frei Manuel do Cenáculo Villas-Boas, Diário - 5.º Códice, fls 82-95 (disponível para consulta on-line na Biblioteca Digital do Alentejo). Esta memória manuscrita (bem como os documentos citados) foi publicada originalmente por António Francisco Barata, com o título Memoria Descriptiva do Assalto, Entrada e Saque da Cidade de Évora pelos Francezes, em 1808, impressa a expensas do municipio em gratidão e lembrança do Arcebispo D. Frei Manuel do Cenáculo Villas Boas, Évora, Minerva Eborense, 1887. Existe uma edição mais recente, cópia da anterior, com apresentação de Celso Mangucci, publicada in Cenáculo (Boletim on line do Museu de Évora), n.º 3, Setembro de 2008, pp. 3-22].


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Notas:


* Ou seja, precisamente um dia depois de se ter mandado publicar a carta da chamada deputação portuguesa. Apesar de não conhecermos cópia alguma do citado aviso de Hermann, sabemos que nesse mesmo dia 13 de Maio Lagarde enviou um ofício ao Juiz de Fora de Vila de Franca de Xira (ofício esse que possivelmente seria uma carta-circular destinada a todas as autoridades camarárias do país), no qual também se recomendava que fossem dadas ordens para que os párocos locais lessem a referida carta da deputação portuguesa na missa do "domingo seguinte ao dia da sua recepção". Nos dias seguintes, alguns bispos publicaram inclusiva cartas pastorais com agradecimentos a Napoleão por ter permitido que Portugal continuasse a ser um país independente... Já atrás inserimos duas pastorais compostas na sequência da publicação da carta da deputação portuguesa: uma do bispo do Algarve, de 21 de Maio (um mês antes de ser "eleito" vice-presidente da Junta do Algarve); e outra do próprio Frei Manuel do Cenáculo, datada de 20 de Maio (devendo-se notar, repetimos aqui, que esta última não se mandou publicar).



*"Para Frei Manuel, a Biblioteca de Évora  surge como corolário de toda uma vida em que a colecção e aquisição de livros, raridades, obras de arte e peças naturais foi uma constante, tendo sempre em vista criar bibliotecas e museus para instruir o maior número possível de pessoas, através da leitura e da observação de obras de arte ou da natureza. A criação de uma biblioteca pública era, portanto, o ponto mais alto de toda a sua actividade e gosto pelas colecções, tanto mais que vinha dotar a cidade de Évora, com uma instituição onde queria reunir o que considerava importante para o progresso do saber. Por isso, foi uma dos primeiros actividades em que se envolveu logo após a chegada. O seu Diário dá conta que os trabalhos de instalação iam a bom ritmo, sobretudo a partir de 1805. Para a biblioteca escolheu a ala ocidental do palácio episcopal, que tinha sido destinada por um dos seus antecessores para Colégio dos Meninos do Coro da Sé e que estava ligado por um passadiço ao resto do edifício, onde instalou o Gabinete, que posteriormente seria o Museu Regional. 
Os fundos bibliográficos  eram, nesta primeira fase, provenientes dos livros deixados pelo seu antecessor, Frei Joaquim Xavier Botelho de Lima e dos muitos milhares que o próprio Cenáculo trouxera de Beja que, de acordo com o inventário feito após a sua morte em 1814, seriam 50.000 volumes. As invasões e o saque de que foi alvo a cidade, pelos franceses em 1808, bem como a prisão do Arcebispo pela Junta Revolucionária, atrasaram todo o processo e a perda de parte do valioso espólio". 
[Fonte: Francisco António Lourenço Vaz, "As Bibliotecas e os Livros na obra de D. Frei Manuel do Cenáculo", in La Memoria de los Libros. Estudios sobre la historia del escrito y de la lectura en Europa y America, Salamanca, Instituto de Historia del Libro y de la Lectura- Fundacion Duques de Soria, 2004, t. II, p. 483-498].



*** (Documento n.º 5):

Nós, as pessoas da Nobreza e Povo desta cidade de Évora, fazemos saber por esta nossa atestação, a todos os senhores a quem ela for apresentada que é ao Excelentíssimo e Reverendíssimo Senhor D. Frei Manuel do Cenáculo Vilas Boas, nosso Arcebispo Metropolitano, a quem devemos as vidas que temos e as casas que habitamos; pois que sendo entrada à escala esta cidade no dia 29 de Julho passado pelos franceses e recebendo a tropa do seu General Loison a ordem de entrar a ferro e fogo, começou a executá-la disparando peças de metralha pelas ruas, matando a tiro de fuzil e à espada quantas pessoas encontravam, sem distinção de sexo, estado e idade, até entrando pela Santa Sé atirando tiros de bala, dos quais houveram vários mortos e feridos, sendo um deles o Sacerdote Capelão que estava com a Santa Cruz alçada, junto à porta, e foi morto pelo estrago dos tiros; e seria total a mortandade se o nosso Santo Prelado com virtuosa intrepidez (depois de amedrontado com baionetas apontadas ao seu peito, com alfanges desembainhados, e com o estrago de uma bomba que rebentou no tecto da Capela mor sobre a sua cabeça e arrojou próximo a ele porções de metralha e pedaços de pedras) não se prostrasse humildemente ante os Oficiais Generais, pedindo o perdão para as suas aflitas ovelhas, hospedando na sua casa o General e quarenta Oficiais, doentes uns, importunos e absolutos todos; sujeitando-se a quantas extravagantes hostilidades lhe faziam, roubando-lhe o seu copioso e rico monetário, levando-lhe todas as cavalgaduras do serviço de sua pessoa e casa, e roubando-lhe até o seu anel episcopal; pretendendo dele ordens, Pastorais, até que se sujeitasse a ser Governador da cidade; e tudo isso com pistolas na mão e espadas nuas, dando toda a certeza de que qualquer repugnância seria causa da sua morte e do estrago e ruína total desta nossa cidade, o que o mesmo General Loison manifestou publicamente na igreja, quando publicou o perdão que dava por sua intercessão não só à cidade senão ainda a duzentos prisioneiros que tinha dentro na mesma Sé; pelo que é geral a confissão que todos os que ficámos com a vida fazemos de que é ao nosso Prelado que a devemos. Isto sabemos porque o presenciámos e outros porque achámos esta notoriedade quando nos recolhemos da fuga em que andámos desterrados, por isso em obséquio da verdade e [em] sinal do nosso agradecimento o atestamos com todas as asseverações de honra e Religião.
Évora, 30 de Setembro de 1809.
Seguem-se as assinaturas da Nobreza e Povo, com o reconhecimento em forma.