terça-feira, 24 de maio de 2011

Carta de Geoffroy Saint-Hilaire aos professores-administradores do Museu de História Natural de Paris (24 de Maio de 1808)




[Lisboa], 24 de Maio [de 1808]



Meus caros e respeitáveis colegas:

Tenho, desde o dia 23, condições perfeitas para agir, estando autorizado, como pretendia, pelo General em Chefe [Junot]; e estou satisfeito pela volta que deram as coisas. Confesso que as aparências tinham-me inquietado um pouco. Vi que tinham sido semeados alguns espinhos no meu caminho, mas agora já não os encontro.
Vandelli excede tudo o que poderia desejar; todas as caixas dos seus depósitos [isto é, do Gabinete de História Natural da Ajuda, do qual Vandelli era director] acabam de me ser abertas; ele dá aos seus subordinados todas as ordens que me convêm. 
Vi muitos herbários, uns da costa de Angola, outros de muitas outras costas de África e das Índias, herbários do Pará, do Maranhão, do Rio Negro, etc. São todos virgens, ninguém se deu ao trabalho de os abrir: deles não saiu nem uma planta, nem uma ideia botânica.
[O referido Gabinete] dispõe também duma minerologia bastante ampla das colónias portuguesas. Vandelli empenhou-se bastante em dispor em partes separadas tudo o que proveio duma [mesma] região. Darei informações ao sr. Haüy sobre aqueles minerais cuja origem seja conhecida com exactidão.
Também existem produções de vários tipos que se fornecerão às investigações dos senhores Fourcroy e Vauquelin.
Já vos elogiei, meus caros colegas, o Gabinete [da Ajuda], e ainda persisto nessa opinião, agora que o examinei mais detalhadamente; mas [o que está à vista] não é nada, de forma alguma, em comparação com os depósitos. Existe um grande número de caixas com os seus diferentes compartimentos cheios, uns de insectos, outros de aves; aqueles de herbários, estes de minerais, de produtos químicos, etc.
Já fiz o catálogo dos mamíferos; posso falar-vos destes com mais segurança. Enviar-vos-ei os macacos que não tendes. Apenas possuís cinco dos que aqui estão, mas estes diferem muito dos seus semelhantes da Guiana, os quais haveis aprovado que vos levasse. A nossa família de cuátas será completada pelo exemplar castanho acinzentado que está aqui; o mesmo se pode dizer da família dos  urradores, com três espécies vulgares do Brasil; a família dos saguis será aumentada consideravelmente, e enfim, também as famílias dos sakis e sapajous.
Envio-vos duas espécies novas de lori, duas preguiças e o mirmecófago com duas faixas escapulares, muito bem figurado por Marcgrave, e que não pertencem a nenhuma das espécies determinadas por Lineu. 
Considero que o [animal] mais interessante é uma preguiça aparentada do unau pelo seu tamanho, aspecto e focinho, a qual tem três dedos e um colar negro de pelos muito compridos. Levo também esqueletos do peixe-boi, e do enorme crocodilo do Brasil, de uma espécie não determinada pelo Sr. Cuvier*, etc.
Também farão parte da minha remessa: quatro novos tatus, o lagomys ogotoua [sic] que foi para aqui enviado por Pallas, ratos, esquilos, uma terceira espécie de paca, doninhas, mefitídeos, no total de sessenta exemplares de mamíferos.
Todos os ramos da história natural renderão outro tanto.
A [remessa] da ictiologia será talvez a mais rica; a entomologia também o será bastante.
Ademais, existem caixas em depósito que contêm entre 50 a 100 exemplares de uma só espécie de insecto ou de ave.
Ainda não me pude encontrar com o correspondente do Sr. conde de Hoffmansegg; receio que não haja em todos estes depósitos caixas que pertençam a este naturalista; o General Margaron disse-me alguma coisa [sobre este assunto]. 
Vandelli, com o qual falei sobre isto, sustenta que antes da partida do Sr. Sieber tinha sido feito um acordo, segundo o qual haveria uma partilha, quando Sieber regressasse; assim, uma metade seria expedida para o Mar do Norte, ficando a outra metade em Lisboa. Esclarecerei este assunto, porque é preciso que ele seja justo, antes de ser rico**.
Vi o Sr. Brotero, que está aqui: há um atrás, deixou Coimbra devido a uma injustiça, cuja reparação veio solicitar a Lisboa. O bispo [de Coimbra], observando que o jardim botânico estava situado entre o seu palácio [actualmente sede do Museu Nacional de Machado de Castro] e o seu seminário, achou que era conveniente apropriar-se da maior parte e de todo o meio [do jardim] para fazer uma rua, através da qual pudesse ir pelo caminho mais curto até aos seus alunos. Em virtude deste motivo, o seminário e os alunos do Sr. Brotero ficaram transtornados. Ele quis reclamar, na sua qualidade de inspector, mas o bispo, que ocupa o cargo de reitor, retirou-lhe a sua inspecção e deu-a ao professor de matemática***.
Farei o meu melhor, como bem podeis imaginar, meus caros colegas, para socorrer o Sr. Brotero. Ele julga que posso [fazer] tudo, no que muito se engana, e nesse entender esperava-me como um restaurador da botânica e benemérito daqueles que dela se ocupam; não obstante, farei alguma coisa sobre este assunto.
Não podeis fazer a mínima ideia das esperanças que os portugueses têm na figura do General em Chefe [Junot]. Ele ameaça muito e muitas vezes, [mas apenas] para não ter que punir. Os franceses dizem que ele é severo somente com eles próprios. Ele gosta de praticar o bem e que isto se comente à sua volta. Devido a esta conhecida característica sua, não deixará o Sr. Brotero em trabalhos!
Poderei partir dentro de oito dias para Coimbra, para aproveitar a companhia do General Loison, que vai ocupar uma posição militar mais longe. Neste caso, o Sr. Brotero iria comigo; levantaríamos a planta do seu jardim, ele traçaria um perfil, e eu o submeteria ao General em Chefe.
Recebi do Ministro uma carta onde me testemunha a sua satisfação pelas contas que lhe prestei em Madrid, e onde me insta a aproveitar a minha estadia nesse país para incrementar as vossas colecções. Isto é o que eu contava fazer. Sejam quais forem os ajustes que se acordem, enviar-vos-ei o Megatherium****; estou certo disto.
Por outro lado, protegei-me, meus colegas, junto do Ministro, enquanto eu faço um serviço tão bom aqui. Fui informado, com desgosto, que, tendo-lhe enviado no mesmo envelope duas cartas, uma onde prestava contas, e a outra com um pedido para despesas de viagem, ele reprovou esta última.
Recebei as minhas muito respeitosas saudações.


Geoffroy Saint-Hilaire


[P.S.] Três outras colecções estão em Lisboa à minha disposição; diz-se que uma é mais considerável do que a da Ajuda. Como será então? 



[Fonte: E.-T. Hamy, "La mission de Geoffroy Saint-Hilaire en Espagne et en Portugal (1808). Histoire et documents", in Nouvelles Archives du Muséum d'Histoire Naturelle, Quatrième série - Tome dixième, Paris, Masson et C. Éditeurs, 1908, pp. 1-66, pp. 44-46].
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Notas:


* Geoffroy Saint-Hilaire alude a um artigo que Georges Cuvier tinha publicado no ano anterior: Mémoire sur les différentes espèces de crocodiles vivans et sur leurs caractères distinctifs", in Annales du Muséum d'Histoire Naturelle - Tome dixième, Paris, Chez Tourneisen fils, 1807, pp. 8-66


** Sobre este caso, ver as nossas anotações à carta do General Margaron a Geoffroy Saint-Hilaire datada de 10 de Dezembro de 1807.


*** Como atrás indicámos, o aludido bispo (e reitor da Universidade) de Coimbra deixara Portugal em meados de Março de 1808, depois de ter sido uma das personalidades "convidadas" por Junot para fazer parte da chamada deputação portuguesa enviada a Napoleão, tendo regressado da França somente em 1814. Curiosamente, anos mais tarde, e já num contexto completamente diferente, o despotismo e a arbitrariedade do bispo, nomeadamente no seu cargo de reitor da Universidade, levaram ao ponto de vários membros das Cortes Constituintes, entre os quais o próprio Brotero, requererem a sua remoção daquele cargo, como consta na sessão das Cortes de 7 de Abril de 1821: "O Sr. Brotero fez menção de ter proposto já em outro tempo a Sua Majestade o ser incompatível que o Bispo de Coimbra fosse juntamente Reitor da Universidade, e motivou esta opinião com as razões com que o propusera; concluindo que ele devia ser expulso daquele lugar" [Fonte: Diario da Regencia, n.º 85, 9 de Abril de 1821].


**** Saint-Hilaire refere-se ao esqueleto dum Megatherium, quase completo, existente no Real Gabinete de História Natural de Madrid, e que Georges Cuvier fora precisamente o primeiro a descrever, em 1796, num artigo intitulado "Notice sur le squelette d'un très-grande espèce de quadrupède inconnue jusqu'à présent, trouvé au Paraguay, et déposé au cabinet d'Histoire naturelle de Madrid" (publicado in Magasin Encyclopédique, ou Journal des Sciences, des Lettres et des Arts - Tome premier, Paris, Imprimerie du Magasin Encylopédique, 1796, pp. 303–310). Nesse mesmo ano, o espanhol D. Joseph Garrida traduziu e corrigiu a descrição de Cuvier num pequeno opúsculo, ilustrado com gravuras de D. Juan Bautista Bru (dissecador do próprio Gabinete de Madrid), intitulado Descripcion del esqueleto de un quadrúpedo muy corpulento y raro, que se conserva en el Real Gabinete de Historia Natural de Madrid, Madrid, Imprenta de la viuda de Don Joaquin Ibarra, 1796. Alguns anos mais tarde, com base neste último texto, Cuvier voltou a escrever um novo artigo, também ilustrado, sobre o mesmo assunto, ao qual intitulou "Sur le Megatherium. Autre animal de la famille des Paresseux, mais de la taille du Rhinocéros, dont un squelette fossile presque complet est conservé au cabinet royal d'histoire naturelle à Madrid" (publicado in Annales du Muséum d'Histoire Naturelle - Tome dixième, Paris, Chez Levrault, Schoell et Compagnie Libraires, 1804, pp. 376-387). 
Devemos acrescentar que a montagem do aludido esqueleto, em 1788, foi precisamente a primeira reconstrução dum vertebrado fóssil em toda a Europa, pelo que se percebe o interesse do Museu de História Natural de Paris (do qual, recordemos, Cuvier era director) em obtê-lo. Contudo, ao contrário do que acima assegurava Saint-Hilaire, este esqueleto não chegou a sair de Madrid, onde ainda hoje se conserva, mais particularmente no Museo Nacional de Ciencias Naturales.