segunda-feira, 23 de maio de 2011

Insinuação segundo a qual se devia pedir rei para Portugal a Napoleão (23 de Maio de 1808)



Os portugueses, lembrados de serem de origem francesa, descendentes dos primeiros conquistadores deste belo país em 1093, e de deverem à França, sua mãe pátria, o benefício da independência que tiveram como nação em 1640, não podem deixar de recorrer agradecidos e com todo o respeito à paternal protecção que benignamente lhes oferece o maior dos Monarcas que jamais o mundo viu. 
O grande e imortal Napoleão se digna participar-nos pelos nossos deputados a sua imperial vontade; quer que sejamos felizes, e sempre ligados pelos vínculos mais indissolúveis da nossa filiação ao sistema continental da família europeia; quer que vivamos unidos para gozarmos finalmente as doçuras de uma longa paz à sombra dos sábios governos que institui, fundados sobre as melhores bases de legislação, de liberdade dos mares e de comércio. É este pois o nosso único interesse, assim como o de todas as nações confederadas. Continue portanto a nossa deputação junto a Sua Majestade Imperial e Real a confirmar os nossos votos unânimes e diga:

Senhor, desejamos ser ainda mais do que já fomos, quando abrimos o oceano ao universo inteiro. 
Queremos uma constituição e um Rei constitucional que seja Príncipe do sangue de Vossa Imperial Família. 
Somos contentes com uma constituição que seja em tudo semelhante à que Vossa Majestade Imperial e Real houve por bem de dar ao Ducado de Varsóvia, alterando-se unicamente o modo de eleger os representantes nacionais, que deve ser pelas Câmaras, para melhor se conformar com os nossos antigos costumes. 
Queremos uma constituição em que, bem como na de Varsóvia, a religião do Estado seja a Católica Apostólica Romana, protestando[=declarando] pela admissão de todos os princípios da última concordata do Império francês com a Sé Romana; em que todos os cultos, porém, sejam livres, públicos e civilmente tolerados.
Em que todos os cidadãos sejam iguais ante a lei. Em que o nosso território europeu seja dividido em oito departamentos e que as dioceses, sendo reguladas por esta divisão civil, admitam somente um Arcebispo e sete Bispos. 
Em que as nossas colónias, fundadas e regadas com o nosso sangue pelos nossos antepassados, sejam consideradas como províncias ou departamentos anexos ao nosso reino, e que os seus representantes, sendo já chamados, achem na nossa constituição os títulos que lhes competem, logo que queiram ou possam vir ocupar os lugares da sua representação.
Em que no ministério haja um ministro encarregado da instrução pública, além dos outros que forem necessários.
Em que haja liberdade da imprensa, como se acha estabelecida no Império francês, porque a ignorância e o erro causaram a nossa decadência.
Em que o poder executivo se instrua por um Conselho de Estado, e que sejam os seus decretos cumpridos por ministros que fiquem responsáveis pela sua execução.
Em que o poder legislativo se divida em duas Câmaras, e se comunique com o executivo.
Em que a ordem judiciária seja independente e julgue pelo Código Napoleão. Em que os crimes sejam julgados publicamente com justiça e brevidade.
Em que todos os funcionários públicos sejam os mais beneméritos de entre os nacionais, como se determina no título 11.º da dita constituição polaca.
Em que os bens dos corpos de mão-morta voltem todos à circulação.
Em que a distribuição dos impostos seja proporcionada às posses e bens de cada indivíduo, sem que algum fique isente de pagá-los; procurando-se que a mesma arrecadação seja a mais fácil e suave.
Em que a dívida anterior do Estado, em toda a sua extensão, seja consolidada e garantida, pois que não faltam meios para o conseguir. 
Queremos igualmente que a organização dos corpos da administração civil, económica e judicial seja reformada com a mesma sabedoria que tanto tem feito prosperar o Império francês; e por conseguinte, que o número imenso dos nossos funcionários públicos seja reduzido; mas desejamos e pedimos que a todos os demitidos sejam vitaliciamente conservados os seus ordenados ou pensões decentes e relativas aos cargos, ofícios e benefícios de que ficarem destituídos, e que vagando qualquer emprego, lhes seja dado com preferência, se tiverem merecimento e costumes. 
Escusado era lembrar esta medida de equidade à sabedoria e humanidade do grande Napoleão; mas querendo Sua Majestade Imperial e Real conhecer a nossa opinião sobre tudo o que nos convém, dá-nos evidentes provas de ser ainda mais nosso pai do que nosso Soberano; pois que como bom pai se digna consultar os seus filhos e liberalizar-lhes os meios da sua prosperidade. 

Viva Napoleão o Grande. 

Viva a sua Dinastia 

1808 



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Observações: 

Servimo-nos de dois exemplares manuscritos para a presente transcrição, manuscritos estes que podem ser consultados em duas compilações de diversos textos impressos e manuscritos da época das chamadas invasões francesas, disponíveis na Biblioteca Nacional Digital: Discurso do Imortal Guilherme Pitt..., pp. 73-83; Antonio Joaquim Moreira (org.), Colecção de sentenças que julgarão os réos dos crimes mais graves e attrozes commetidos em Portugal e seus dominios - Vol. 4, 1863fl. 50. Deve notar-se que do primeiro manuscrito citado copiámos o título e a data de 1093 na primeira frase da presente transcrição, uma vez que nos parece mais apropriada no contexto do que a data de 1147 - que surge em todas as outras versões - , dado que foi precisamente em 1093 que se deu o casamento entre D. Teresa de Leão e D. Henrique de Borgonha, aos quais seria atribuída a administração do condado portucalense, embrião de Portugal.
José Accursio das Neves, na sua Historia Geral da Invasão dos Francezes em Portugal, e da Restauração deste Reino - Tomo II (Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1810, pp. 252-257) também transcreveu este documento (embora com pequenos cortes). Por sua vez, o General Foy, que esteve em Portugal nas três invasões, inseriu o original francês(?) ou uma tradução(?) deste "projecto para a Constituição de Portugal", na sua Histoire de la Guerre de la Péninsule sous Napoléon - Tome II, Paris, Baudouin Frrères Éditeurs, 1827, pp. 357-360. Existe ainda uma outra versão deste texto que correu impressa (como se pode ver na imagem ao lado, extraída do site parlamento.pt), que contém diversas variantes em relação à acima transcrita (talvez derivadas de uma diferente tradução do original francês), aparecendo igualmente publicada na obra de S. L. Historia de El-Rei D. João VI – Primeiro rei constitucional de Portugal e do Brazil, Lisboa, Typographia Universal, 1866, pp. 141-144; e também por Simão José da Luz Soriano, na sua História da Guerra Civil e do Estabelecimento do Governo Parlamentar em Portugal. Compreendendo a História Diplomática, Militar e Política deste Reino, desde 1777 até 1834 – Segunda Época - Tomo I, Lisboa, Imprensa Nacional, 1870, pp. 212-214. 


Sobre a autoria desta insinuaçãosúplica ou projecto de constituição, em nota ao primeiro manuscrito acima citado (do qual extraímos o título acima assinalado)escreveu o anónimo transcritor: “Este papel que obtive se dizia ser composição de Mr. Carrion Nizas, combinado com Mr. Thimoteo Leucan Verdier, a fim de concluírem o despótico Governo militar, substituindo-lhe um civil”. 
Acúrsio das Neves, um dos primeiros autores a se referirem e a citarem este documento (que teria sido concluído, segundo o mesmo, antes da meia-noite de 23 de Maio de 1808), não é claro quanto ao(s) autor(es) da sua composição, embora indique que no seu conluio estavam, para além dos citados Carrion de Nisas e o negociante Verdier, "o desembargador Francisco Duarte Coelho, um antigo secretário de D. Lourenço de Lima, e mais dois ou três portugueses". 
Segundo o General Foy, este projecto de constituição, que nada agradou a Junot, foi da autoria de três portugueses: o citado desembargador Francisco Duarte Coelho, o doutor Ricardo Raimundo Nogueira, reitor do Colégio dos Nobres, e o cónego Simão de Cordes Brandão, lente de direito natural e das gentes na Universidade de Coimbra, sendo os dois últimos "juristas maçons", segundo António Ventura (in A Maçonaria Portuguesa perante as Invasões Francesas). 
Por sua vez, o autor (francês) da acima citada História de El-Rei D. João VI referiu que “foi esta mensagem redigida pelo doutor G[regório]. J[osé]. de Seixas, de acordo com muitas pessoas distintas por suas luzes e representação, sendo apresentada às autoridades francesas pelo Juiz do povo em nome da (extinta) Casa dos Vinte e Quatro, quando o conde da Ega fora encarregado por Junot de agregar aos membros da Junta dos Três Estados os chamados representantes das diferentes ordens para expressarem o voto da nação, contra cujo acto o mesmo Juiz do povo, que então era um tanoeiro por nome José de Abreu Campos, havia formalmente protestado como ilegal, por dimanar de uma assembleia incompetente, em consequência do que foi chamado ao quartel general, e severamente repreendido por Junot. [...] Um grande número de Câmaras aderiram também a esta mensagem ao Imperador, que dela não teve conhecimento a tempo hábil. O general Foy erradamente atribui a redacção dela a três pessoas que não foram os seus autores”. 

Resta dizer que, independentemente das várias possíveis autorias, este "projecto de súplica não teve seguimento, por não se adequar à política pessoal de Junot, mas é revelador das ideias constitucionalistas no princípio do século XIX", como sucintamente expôs António Manuel Hespanha, no seu artigo "O constitucionalismo monárquico português. Breve síntese" [in A. M. Hespanha e Cristina Nogueira da Silva, Fontes para a história do direito constitucional português (c. 1800 – c. 1910), Lisboa, FD-UNL, 2005]. Ver ainda, sobre o mesmo assunto, António Manuel Hespanha, “Sob o signo de Napoleão. A Súplica constitucional de 1808”, in Almanack Braziliense, Maio de 2008, pp. 80-101 (contém a tradução portuguesa e o original francês da constituição, ou melhor dizendo, do Estatuto Constitucional do Ducado de Varsóvia).