sábado, 11 de junho de 2011

A forma como Junot reagiu aos acontecimentos do Porto, segundo Acúrsio das Neves


Tristes prazeres, amargurado festim! Poucas horas eram passadas, depois de uma noite tão agradável, quando Junot recebeu a notícia dos sucessos do Porto, e então é que começaram os apertos; mas as angústias de que o seu coração se via oprimido não lhe embaraçaram o dar as providências que julgou proporcionadas às circunstâncias.
Viram-se imediatamente sair tropas francesas para Mafra, Santarém e outros lugares; algumas passaram o Tejo, e ignorava-se o seu destino. Ferviam os correios, as imprensas puseram-se em actividade, notava-se susto e agitação em todos os movimentos dos franceses, e só algumas notícias que pouco a pouco vinham chegando ao público, e os sucessos que foram saindo daquela efervescência dos espíritos puderam enfim aclarar os motivos.
Tanto o General [Junot] como Lagarde e Hermann responderam às cartas de participação que receberam do Porto*. Junot louvou a Câmara, mas dando sempre conhecer a espinha que lhe ficava na garganta, porque ela não tinha tomado logo partido contra os espanhóis. Lagarde não só escreveu uma carta furiosa ao Corregedor, mas também circulares aos magistrados de todas as terras confinantes com a Espanha, que continham as suas missões e ameaças do costume; e concordaram todos em intimidar o Porto com 4.000 homens da divisão de Loison.
Este General, que tinha ordem de entrar em Ciudad Rodrigo e aí se manter, e que não pudera penetrar senão até o forte de la Concepción, situado na extremidade da Espanha em frente de Almeida, que os espanhóis haviam evacuado à sua chegada, a teve com efeito agora para retroceder e cair sobre o Porto. Assim que a recebeu, ele se pôs em marcha, demolindo uma parte do forte, transportando para Almeida as munições e mais efeitos que pôde, e saqueando algumas aldeias por onde passou.
A noite de 9 para 10 foi de grande agitação para os Generais e outros empregados franceses em Lisboa; mas dos seus resultados não apareceram ao público senão as declamações de uma gazeta no estilo do costume. A de 10 para 11 foi ainda de maior reboliço, e de maior vulto o seu parto. Lagarde, para dar mais expedição ao seu laboratório, tinha feito conduzir uma imprensa para a casa da sua residência, e nessa noite mandou também ir o administrador da gazeta [António Rodrigues Galhardo] pela uma hora da madrugada. Trabalhou-se sempre, e contudo Lagarde não se recolheu senão muito depois de amanhecer, quando já estava executado aleivosamente o desarmamento das tropas espanholas que se achavam acantonadas nos abarracamentos de campo de Ourique e Vale de Pereiro.
Na tarde precedente tinham elas recebido ordem de se reunirem à hora dada, para embarcarem no Terreiro do Paço e partirem para Espanha. Era este o alvo dos seus desejos, e caminhando alegres debaixo deste engano, que favorecia o escuro da noite, apenas chegam ao Terreiro do Paço, os valentes espanhóis se acham rodeados de peças de artilharia e de uma quadrilha armada de cobardes franceses, que só por cobardes podiam cometer uma semelhante perfídia. Achavam-se escondidos com a sua artilharia debaixo das arcadas dos edifícios que fecham o recinto daquela praça e nas embocaduras das ruas circunvizinhas; dali caíram repentinamente sobre os espanhóis, que bramiam como leões, mas tiveram de ceder, como cordeiros, na presença da metralha e das baionetas; foram ignominiosamente desarmados, e o campo ficou coberto com as suas mochilas e barretinas, que tudo foram obrigados a largar, e tudo foi entregue a um rigoroso saque.
Apareceu então ao público o trabalho da noite precedente, e revelou-se o mistério das tropas francesas que tinham partido para os diferentes postos, com destino secreto. Uma gazeta, um edital e uma ordem do dia, tudo no gosto francês, anunciaram o desarmamento dos espanhóis em todos os lugares que ocupavam; procurando encobrir com cores plausíveis um procedimento infame, de que nenhum verniz pôde ofuscar a negrura**.
Pela tarde começaram a aparecer começaram a aparecer em Lisboa os prisioneiros espanhóis feitos nos seus contornos; e nos dias seguintes continuaram a vir os de Mafra, Santarém e outros pontos mais remotos. Entravam em magotes, sem armas, e entre franceses, como vítimas entre algozes. Eu vi muitos destes infelizes, e nunca se apagará no meu espírito a forte impressão que me causaram o aspecto e a marcha triste e desconcertada com que os conduziam os seus tiranos, em recompensa de terem abandonado os seus lares para os acompanharem a um país estrangeiro, e serem instrumentos involuntários dos seus roubos e atrocidades. Maridos inválidos eram acompanhados por mulheres e meninos banhados em lágrimas, que mal podiam suportar as fadigas da jornada; outros iam conduzindo tristemente pelas arreatas os jumentos que levavam os filhos e as consortes; vi mulheres desmaiadas, vi outras atenuadas de cansaço e cobertas de suor, por efeito de uma calma ardente, trazendo seus filhinhos aos peitos; e vi também alguns, presos por cordas para não caírem, em cima de carros atacados de caixas, panelas, caldeirões e outros objectos próprios de tropas volantes. A fraqueza do sexo, a enfermidade e a infância sofriam, como a robustez, os mesmos trabalhos. Foram todos conduzidos a vários navios surtos no Tejo e aí conservados, debaixo de guardas vigilantes, maltratados e mesmo morrendo de fome, até que os eternos inimigos do continente, segundo a expressão dos franceses, lhes vieram restituir as armas e a liberdade, depois de terem derrotado no Vimeiro os invencíveis da grande nação. 
Os oficiais tinham ficado ao princípio em liberdade, debaixo da fé de um termo que assinaram, de se não ausentarem; mas passados poucos dias também foram presos, ou porque alguns dessem o exemplo de se retirarem, o que não é de admirar, pois se consideravam num injusto cativeiro; ou porque se tomasse este pretexto para serem reduzidos ao mesmo abatimento que os soldados. De uns e outros conseguiram muitos o escaparem das suas prisões, porque achavam no povo português todo o auxílio possível para esta fuga.
Carrafa não se livra de veementes suspeitas de ter concorrido para uma tão atraiçoada entrega das tropas do seu comando; pelo menos a opinião pública dos portugueses o condenou sempre; e mais o condenaria, se naquele tempo se soubesse um facto que hoje posso dar por autêntico. Carrafa ofereceu a Junot um plano para a redução do exército espanhol, à semelhança do que se havia praticado com as tropas portuguesas, do qual o mesmo Junot fez presente a seu amo [Napoleão]. Contudo, pode ser verdadeiro este facto e Carrafa não ter sido cúmplice no desarmamento e prisão das suas tropas; suspeitas não são verdades demonstradas.

[Fonte: José Accursio das Neves, Historia Geral da Invasão dos Francezes em Portugal, e da Restauração deste Reino - Tomo III, Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1811, pp. 102-110].

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Notas:


* [Nota nossa] Foram pelo menos cinco as cartas que do Porto foram enviadas ao Governo francês em Lisboa:
1. Carta de Belestá a Junot;
2. Carta da Câmara do Porto a Junot;
3. Carta de Luís de Oliveira da Costa, Governador interino das Armas do Porto, a Junot;
4. Carta de José Teixeira de Sousa, Corregedor da comarca do Porto, a Lagarde;
5. Carta do Tribunal da Relação do Porto a Hermann.


** [Nota original de Acúrsio das NevesA ordem do dia começava por esta forma no original francês: La conduite infâme du Général espagnol Belestá a O-Porto, l’enlèvement du Général de division Quesnel, de Mr. Taboureau, etc., e eis aqui como se traduziu na primeira edição: A conduta infame do General espanhol Belestá no Porto, o roubo das peças do General de Divisão Quesnel, do Senhor Taboreau, etc. L’enlèvement du Général de division Quesnel, de Mr. Taboureau, etc., significa o roubo das peças do General, segundo o dicionário do tradutor; e acham-se muitas passagens destas nas traduções das demais obras do governo francês. Tais eram os homens ilustrados, que estavam ao seu soldo! Na segunda edição, que se pôs em venda pública, conheceu-se e procurou-se adoçar o erro, pondo-se pessoas, em lugar de peças; na gazeta finalmente se emendou nesta forma: a violência com que se lançou mão do General, etc.