Fonte: British Museum
Distracções de Sancho, também conhecido por Zé Pipa, na tomada de posse do seu novo Governo!
Caricatura de Isaac Cruikshank, publicada a 30 de Agosto de 1808.
Esta caricatura alude à tomada de posse do novo governo de José Bonaparte (que abdicara do trono de Nápoles para reger a Espanha, segundo a nomeação do seu irmão Napoleão), que, ao chegar a Madrid, no dia 20 de Julho de 1808, viu-se cercado por diversas províncias rebeladas. O governo de José não foi reconhecido na maior parte dessas províncias, que bloquearam Madrid à distância, impedindo o acesso a víveres que faltavam na capital. A manutenção do exército francês tornou-se rapidamente insustentável, e, ao tomar conhecimento da derrota de Dupont em Bailén, José Bonaparte viu-se obrigado a dar ordens, logo no dia 30 de Julho, para o seu exército evacuar Madrid. Significativamente, Isaac Cruikshank chama Sancho ao monarca, aludindo assim à tomada de posse do efémero governo da ínsula da Bataria por parte de Sancho Pança, o escudeiro realista e prático do idealista D. Quixote (que seguindo a analogia, seria Napoleão*).
O título da caricatura diz ainda que Sancho tem um outro pseudónimo, Joe Butt, sendo que butt, entre outros, tem o significado de "pipa de vinho", referência à alcunha com que o monarca ficou conhecido na Espanha, Pepe Botella ("Zé Garrafa", em português). Este sentido é reforçado pela imagem que encima o trono de José Bonaparte, no meio de parras e cachos de uvas: um pequeno Baco, de taça e garrafa nas mãos, sentado precisamente sobre uma pipa.
Sancho, ou Zé Pipa, está sentado no centro da mesa, de babete ao peito e de faca e garfo nas mãos, mas tem o prato vazio. Como não há cadeiras para todos, parece que os espanhóis que aparecem na sala não foram convidados para a refeição, e irromperam na cena somente para esvaziar a mesa do monarca. Um bispo retira do alcance de José um prato de "galo bravo das Astúrias", e, com o braço estendido ameaçadoramente em direcção ao monarca, diz-lhe: "Não toqueis - não proveis - vil usurpador - desaparecei - ide-vos embora - ou então provareis dez mil mortes em cada prato, tudo preparado para vós e para o vosso bando de assassinos sacrilégios". O prato de "galo bravo das Astúrias" é passado a um outro espanhol, em cujo chapéu está inscrito F[ernando] VII, o qual afirma: "Por Santander! Isto será suficiente para o rei Fernando, ele adora a cozinha asturiana". José Bonaparte, nitidamente irritado, vira-se para o Bispo e diz: "Oh Diabo! Dom Bispo, não me dais um pouco? Rogo que me deis algo"**.
Aproveitando a distracção momentânea do monarca, o espanhol que está imediatamente à sua direita retira da mesa um prato de "ganso de Madrid", enquanto atrás deste vê-se um outro saindo com um prato de "bife de Lisboa", o qual, virando-se para trás, diz ao monarca: "Sim, canalha, dar-vos-ei algo: viestes aqui para roubar a Coroa de Fernando - agora dar-vos-ei uma coroa [moeda britânica] para comprardes um cabresto". À esquerda deste espanhol vêm-se outros a levar mais pratos: "pudim da Catalunha", "tartes da Extremadura", um prato não identificado da Biscaia e outro de Leão, e "nozes de Barcelona".
À frente da mesa, entre outros três espanhóis que levam pratos de "sopa da Andaluzia", "laranjas de Sevilha", e "guisado de Burgos", está uma pilha de "saques para Paris", onde se vê uma coroa, dois crucifixos, alfaias religiosas de ouro e prata e sacos com dólares. Em cima da mesa somente resta um galheteiro com "vinagre de Bayonne", um saleiro com "sal de Minorca", um prato com "presunto de Múrcia", e outro com um "caboz de Portugal", que está prestes a ser retirado pelo personagem que está atrás do Bispo.
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Notas:
* A propósito da analogia entre D. Quixote e Napoleão (aqui aludida apenas indirectamente; ver a este propósito a caricatura A Spanish Joke!!!, publicada poucos dias depois), recordemos um trecho duma carta que o Imperador francês escreveu no dia 5 de Novembro de 1807 ao seu ministro da Guerra, mandando-lhe dizer a Junot (que então marchava em direcção a Portugal) o seguinte: "não entendo que, sob o pretexto de falta de víveres, a sua marcha seja retardada um dia; esta razão somente serve para homens que não querem fazer nada; 20.000 homens vivem em qualquer lugar, inclusive no deserto"... [Fonte: Correspondance de Napoléon Ier - Tome XVI, Paris, Imprimerie Impériale, 1864, p. 165 (n.º 13327)].
** Traduzimos por "não me dais um pouco" a expressão vont you give me von little bit, frase feita com que os ingleses (bem alimentados) gozavam com os franceses (que tinham a reputação de passar fome). Existem expressões semelhantes em diversas caricaturas, veja-se por exemplo: BM Satires 5790; BM Satires 8650; BM Satires 9996; BM Satires 10597; BM Satires 11579. Ver ainda a este respeito a caricatura que aqui introduzimos.
** Traduzimos por "não me dais um pouco" a expressão vont you give me von little bit, frase feita com que os ingleses (bem alimentados) gozavam com os franceses (que tinham a reputação de passar fome). Existem expressões semelhantes em diversas caricaturas, veja-se por exemplo: BM Satires 5790; BM Satires 8650; BM Satires 9996; BM Satires 10597; BM Satires 11579. Ver ainda a este respeito a caricatura que aqui introduzimos.