terça-feira, 30 de agosto de 2011

Sancho alias Ioe Butt's entertainment on taking possession of his new Government!, caricatura de Isaac Cruikshank (30 de Agosto de 1808)




Distracções de Sancho, também conhecido por Zé Pipa, na tomada de posse do seu novo Governo!
Caricatura de Isaac Cruikshank, publicada a 30 de Agosto de 1808.



Esta caricatura alude à tomada de posse do novo governo de José Bonaparte (que abdicara do trono de Nápoles para reger a Espanha, segundo a nomeação do seu irmão Napoleão), que, ao chegar a Madrid, no dia 20 de Julho de 1808, viu-se cercado por diversas províncias rebeladas. O governo de José não foi reconhecido na maior parte dessas províncias, que bloquearam Madrid à distância, impedindo o acesso a víveres que faltavam na capital. A manutenção do exército francês tornou-se rapidamente insustentável, e, ao tomar conhecimento da derrota de Dupont em Bailén, José Bonaparte viu-se obrigado a dar ordens, logo no dia 30 de Julho, para o seu exército evacuar Madrid. Significativamente, Isaac Cruikshank chama Sancho ao monarca, aludindo assim à tomada de posse do efémero governo da ínsula da Bataria por parte de Sancho Pança, o escudeiro realista e prático do idealista D. Quixote (que seguindo a analogia, seria Napoleão*). 
O título da caricatura diz ainda que Sancho tem um outro pseudónimo, Joe Butt, sendo que butt, entre outros, tem o significado de "pipa de vinho", referência à alcunha com que o monarca ficou conhecido na Espanha, Pepe Botella ("Zé Garrafa", em português). Este sentido é reforçado pela imagem que encima o trono de José Bonaparte, no meio de parras e cachos de uvas: um pequeno Baco, de taça e garrafa nas mãos, sentado precisamente sobre uma pipa. 
Sancho, ou Zé Pipa, está sentado no centro da mesa, de babete ao peito e de faca e garfo nas mãos, mas tem o prato vazio. Como não há cadeiras para todos, parece que os espanhóis que aparecem na sala não foram convidados para a refeição, e irromperam na cena somente para esvaziar a mesa do monarca. Um bispo retira do alcance de José um prato de "galo bravo das Astúrias", e, com o braço estendido ameaçadoramente em direcção ao monarca, diz-lhe: "Não toqueis - não proveis - vil usurpador - desaparecei - ide-vos embora - ou então provareis dez mil mortes em cada prato, tudo preparado para vós e para o vosso bando de assassinos sacrilégios". O prato de "galo bravo das Astúrias" é passado a um outro espanhol, em cujo chapéu está inscrito F[ernando] VII, o qual afirma: "Por Santander! Isto será suficiente para o rei Fernando, ele adora a cozinha asturiana". José Bonaparte, nitidamente irritado, vira-se para o Bispo e diz: "Oh Diabo! Dom Bispo, não me dais um pouco? Rogo que me deis algo"**
Aproveitando a distracção momentânea do monarca, o espanhol que está imediatamente à sua direita retira da mesa um prato de "ganso de Madrid", enquanto atrás deste vê-se um outro saindo com um prato de "bife de Lisboa", o qual, virando-se para trás, diz ao monarca: "Sim, canalha, dar-vos-ei algo: viestes aqui para roubar a Coroa de Fernando - agora dar-vos-ei uma coroa [moeda britânica] para comprardes um cabresto". À esquerda deste espanhol vêm-se outros a levar mais pratos: "pudim da Catalunha", "tartes da Extremadura", um prato não identificado da Biscaia e outro de Leão, e "nozes de Barcelona". 
À frente da mesa, entre outros três espanhóis que levam pratos de "sopa da Andaluzia", "laranjas de Sevilha", e "guisado de Burgos", está uma pilha de "saques para Paris", onde  se vê uma coroa, dois crucifixos, alfaias religiosas de ouro e prata e sacos com dólares. Em cima da mesa somente resta um galheteiro com "vinagre de Bayonne", um saleiro com "sal de Minorca", um prato com "presunto de Múrcia", e outro com um "caboz de Portugal", que está prestes a ser retirado pelo personagem que está atrás do Bispo. 

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Notas:

* A propósito da analogia entre D. Quixote e Napoleão (aqui aludida apenas indirectamente; ver a este propósito a caricatura A Spanish Joke!!!, publicada poucos dias depois), recordemos um trecho duma carta que o Imperador francês escreveu no dia 5 de Novembro de 1807 ao seu ministro da Guerra, mandando-lhe dizer a Junot (que então marchava em direcção a Portugal) o seguinte: "não entendo que, sob o pretexto de falta de víveres, a sua marcha seja retardada um dia; esta razão somente serve para homens que não querem fazer nada; 20.000 homens vivem em qualquer lugar, inclusive no deserto"... [Fonte: Correspondance de Napoléon Ier - Tome XVI, Paris, Imprimerie Impériale, 1864, p. 165 (n.º 13327)].


** Traduzimos por "não me dais um pouco" a expressão vont you give me von little bit, frase feita com que os ingleses (bem alimentados) gozavam com os franceses (que tinham a reputação de passar fome). Existem expressões semelhantes em diversas caricaturas, veja-se por exemplo: BM Satires 5790BM Satires 8650BM Satires 9996BM Satires 10597BM Satires 11579. Ver ainda a este respeito a caricatura que aqui introduzimos.