quinta-feira, 18 de novembro de 2010

As "sobras" da esquadra portuguesa e o domínio marítimo dos ingleses



H.M.S. Victory (104 peças)
Lançado ao mar em 1765, é o único navio de linha que chegou aos nossos dias
(hoje serve como Museu Naval, no porto de Portsmouth, Inglaterra)




poderio naval era um assunto fundamental dentro do quadro do bloqueio continental decretado por Napoleão. Prevendo apoderar-se da frota naval portuguesa, o Imperador francês tinha ordenado a Junot para que este apresentasse as suas tropas como amigas, a fim de facilmente apreenderem as embarcações situadas no porto de Lisboa. Contudo, o tiro saiu-lhe pela culatra, pois a família real, em parte pressionada pelos ingleses, antecipou-se à chegada do Exército francês, levando para o Brasil a maior parte dos navios de guerra portugueses. 
Logo no dia 29 de Novembro, acompanhando a saída da frota portuguesa, o embaixador inglês Lord Strangford, um dos responsáveis pela transferência da corte para o Brasil, escreveu a George Canning (na época Secretário dos Negócios Estrangeiros da Inglaterra), a bordo do navio Hibernia, em plena foz do Tejo, narrando os acontecimentos dos últimos dias e a decisão que tinha tomado o príncipe regente em sair do país. Para além de incluir nessa carta uma lista dos navios de guerra que deixaram Lisboa naquela manhã (lista essa assinada pelo chefe de Esquadra Joaquim José Monteiro Torres), Lord Strangford apresentava a seguinte lista das embarcações que tinham ficado em Lisboa, quase todas em estado lastimável:

     Navios

          S. Sebastião, de 64 peças (incapaz de serviço sem uma reparação completa);
         Maria I, de 74 peças (em idêntico estado do anterior; tinha sido ordenado para que se tornasse numa bateria flutuante, mas ainda não se encontra preparado);
         Vasco da Gama, de 74 peças (encontra-se a ser reparado e está quase pronto);
         Princesa da Beira, de 64 canhões (condenado, e mandado armar como bateria flutuante)

     Fragatas

          Fénix, de 48 canhões (precisa de reparação total)
          Amazona, de 44 canhões (precisa de reparação total)
          Pérola, de 44 (precisa de reparação total)
          Tristão, de 40 (parcialmente reparada)
          Vénus, de 30 canhões (parcialmente reparada)

[Fonte: John Barrow, The Life and Correspondance of Admiral Sir William Sidney Smith - Vol. II, London, Richard Bentley Publisher, 1848, pp. 265-266]

Foi com este cenário que se deparou Junot assim que chegou ao porto de Lisboa, no dia 30 de Novembro. Numa carta que nesse mesmo dia escreveu a Napoleão, também ele incluiu uma lista semelhante à de Strangford (ainda que contenha algumas imprecisões, quando comparada com aquela). Junot referia ainda que "dentro de alguns dias poderei dar contas a Vossa Majestade sobre os recursos que o porto apresenta; limitei-me, por enquanto, a um resumo sem mais pormenores. Há em toda a parte uma tal desordem que ainda não sabemos a quem devemos dirigir-nos" [Junot, Diário da I Invasão Francesa, p. 102]. Na verdade, no reduzido número de tropas com as quais Junot entrou em Lisboa, não se encontrava nenhum oficial da marinha francesa. Um relatório mais completo dos recursos navais portugueses teria sido enviado a Napoleão alguns dias mais tardes, já depois de ter chegado a Lisboa o Capitão Jean-Jacques Magendie [cf. carta de 6 de Dezembro, in Junot, Diário da I Invasão Francesa, p. 110]. Contudo, de pouco serviriam os relatórios pois, na prática, as embarcações portuguesas não serviam para nada. Como Junot assumira a Napoleão mais de um mês depois do início da ocupação, "não julgo possível mandar sair do porto de Lisboa um navio e algumas fragatas para obrigar o inimigo a afastar-se, pois temos constantemente a poucas léguas da barra uma esquadra que nunca tem menos de 8 navios, 2 fragatas e 1 brigue, e que já chegou a ter 14 navios. A aproximação da costa de Portugal é muito perigosa e, por pouco vento de oeste que haja, não se pode estacionar a menos de 10 ou 12 léguas no alto mar, por causa das correntes; a essa distância, a flotilha que saísse de Lisboa correria grande perigo" [cf. carta de 9 de Janeiro, in Junot, Diário da I Invasão Francesa, p. 125]. Aliás, a esse tempo, ainda nem sequer havia no "arsenal de marinha as madeiras necessárias para acabar o navio que está em construção" [Junot, Diário da I Invasão Francesa, p. 127].


Ver num mapa maior

Fortificações costeiras da linha defensiva do Tejo (finais séc. XVIII - inícios séc. XIX)




Se nada podia fazer no mar contra a esquadra naval inglesa, ao menos podia preparar-se em terra para evitar um desembarque esperado (relembre-se que logo no mesmo dia em que alcança a capital, Junot tinha ouvido rumores dum desembarque dos ingleses na zona de Peniche [Diário da I Invasão Francesa, pp. 104-105]. Por sorte para os franceses, tal facto não se confirmou). 
Assim, Junot não perdeu tempo para enviar ao forte de S. Julião (fotografia à direita) um Coronel de Engenharia que o informou "de que as fortificações do lado do mar necessitam de grandes reparações para pôr o forte em condições de resistir a uma esquadra; as batarias estão de enfiada, e os canhoeiros ficam tão a descoberto que a posição não poderia ser defendida". Junot ordenou então, como narrou ao Imperador francês, que se fizesse tudo quando fosse necessário para melhorar a defesa deste forte, e também a do forte de Cascais". Na carta donde se extraiu o anterior excerto Junot acrescentou ainda a Napoleão que "a que costa que terei de defender se apenas conservar a margem direita [=norte] do Tejo até ao Douro não é considerável, mas terá de ser bem fortificada porque sofrerá ataques todos os dias [Diário da I Invasão Francesa, pp. 106-107]. Posteriormente, o próprio Junot dirigiu-se ao forte de S. Julião da Barra, conhecido como Escudo do Reino pela sua localização geoestratégica (indicada a amarelo no mapa de acima), ficando bem impressionado: "é soberbo, em muito bom estado, e está armado com cem peças de canhão". O forte de Cascais, também em bom estado e em excelente localização, encontrava-se "armado com 56 bocas de fogo" [carta de 6 de Dezembro, Diário da I Invasão Francesa, p. 111].
Estes e outros fortes, ocupados desde os primeiros dias da invasão, vigiavam constantemente a entrada da barra, donde não se afastavam as embarcações inglesas, que a meados do mês contavam com "8 navios de linha e algumas fragatas" [carta de 16 de Dezembro, Diário da I Invasão Francesa, p. 116]. A 21 de Dezembro, quando já tinha chegado a Lisboa a maior parte do corpo de artilharia francesa, Junot refere a Napoleão que estava a "trabalhar a toda a força a fundição que fará morteiros; em todo o porto e no estuário não temos nenhum em bataria. Por aqui verá Vossa Majestade a bela defesa que eles [os portugueses] preparavam, e no arsenal só há 4. Estou muito grato aos ingleses, que até agora não vieram atormentar-nos; muito mal me teriam feito com isso, mas espero que ainda o farão. Aqui, como noutros sítios, vão chegar demasiado tarde" [Diário da I Invasão Francesa, p. 120]. Contudo, no dia 27 de Dezembro já se avistavam 17 navios e 4 fragatas inglesas, supostamente em virtude da declaração de guerra que a Rússia tinha feito à Inglaterra. O certo é que a esquadra russa, apesar de avisada por Junot daquela declaração, continuava numa impassível neutralidade [Carta de 27 de Dezembro, Diário da I Invasão Francesa, p. 121]. 

esquadra russa, que se encontrava atracada no porto de Lisboa desde meados de Novembro, era composta por oito navios (um navio de 80 canhões, um navio de 74 e seis navios de 64 a 70 peças), 1 fragata de 36 e 1 barco de transporte. Apesar da paz de Tilsit, Junot não pôde contar com esta esquadra, pois como ele afirmou a Napoleão, logo a 2 de Dezembro, "se eles [os russos] quisessem secundar-nos, teríamos tudo o que já possuímos e mais um tesouro imenso e uma esquadra, mas têm mantido uma impassível neutralidade; calculo que não podiam fazer outra coisa" [Diário da I Invasão Francesa, p. 107]. Mais adiante, no dia 21 de Dezembro, em nova carta ao Imperador, Junot afirma que "a esquadra russa, que continua em Lisboa, consome-nos cerca de 10.000 rações, o que muito nos prejudica na penúria de mantimentos em que nos encontramos; se ela não tiver de nos ser útil, vê-la-ei partir com muito bons olhos, tanto mais que muito desconfio de que esteja a servir de intermediária entre Lisboa e a esquadra inimiga [=inglesa]  [Diário da I Invasão Francesa, p. 120]. 

Antes de se saber na Inglaterra que esta esquadra russa tinha estacionado no porto de Lisboa, tinham sido dadas ordens para que uma outra esquadra inglesa se dirigisse para Cádis, como relatou, em carta de 1 de Dezembro, Sir Sidney Smith. O objectivo seria segurar a esquadra russa, mas esta, afinal, já se encontrava em Portugal [Cf. John Barrow, The Life and Correspondance of Admiral Sir William Sidney Smith - Vol. II, London, Richard Bentley Publisher, 1848, pp. 265-266]. No entanto, os ingleses não saíram de Cádis. Na verdade, não eram os primeiros a chegar, pois já há algum tempo que outras embarcações inglesas bloqueavam a entrada para aquele porto, em virtude de nele se encontrarem os restos da esquadra francesa que se tinha salvo da batalha de Trafalgar (no final de 1807, restavam cinco navios e uma fragata, comandados pelo Almirante Rosily) [Cf. Miguel Aragón Fontenla, La rendición de la escuadra francesa de Rosily (14 de Junio de 1808), p. 69]. 
O próprio Junot relatou a Napoleão esse facto, a meados do mês, dizendo que a dita esquadra inglesa era composta por cerca de uma dezena de navios, havendo então quem afirmasse também "haver em Gibraltar movimentações para um embarque de tropas [inglesas]" [carta de 16 de Dezembro, Diário da I Invasão Francesa, p. 116]. No dia 21, Junot chegou mesmo a receber uma carta de Godoy, relatando-a logo ao Imperador: Godoy tinha lhe dado a conhecer os "seus receios acerca da costa da Andaluzia; parece recear seriamente um ataque dos ingleses e pede-me a Divisão espanhola que tenho sob as minhas ordens [a Divisão do General Carrafa] a fim de a deslocar para a costa da Andaluzia. Respondi ao Príncipe [da Paz] que, apesar do meu desejo de contribuir de algum modo para a defesa e a tranquilidade da Espanha, não podia despedir a Divisão Carrafa sem para isso ter recebido ordem de Vossa Majestade. De resto, talvez os ingleses estivessem a fingir querer atacar a costa de Cádis para depois vir rapidamente para a costa de Portugal, onde esperam encontrar os habitantes, se não dispostos a recebê-los, pelo menos a dar-lhes grande ajuda com uma sublevação. E mais disse ao Príncipe que Vossa Majestade, a quem nada escapa, já deve ter previsto todos os acontecimentos e que, nesse caso, poderá ser empregado o 2.º exército de reserva [Segundo Corpo de Observação da Gironda] onde quer que seja necessário" [Diário da I Invasão Francesa, p. 119]. Dias depois, "os espanhóis continuam a falar dos seus receios quanto à costa da Andaluzia", mas Junot mantinha-se firme em aguardar uma decisão de Napoleão antes de dar ordens para enviar a Divisão de Carrafa para a Espanha. Começavam então a surgir rumores, "em Madrid, de uma viagem da corte [espanhola] a Cádis". Junot questionava-se: "quererá ela fazer como a corte de Portugal e partir para alguma das suas colónias?"  [Carta de 27 de Dezembro, Diário da I Invasão Francesa, p. 120].