sábado, 3 de setembro de 2011

Memória do General Bernardim Freire de Andrade sobre os principais inconvenientes da Convenção de 30 de Agosto (3 de Setembro de 1808)





Memória sobre os principais inconvenientes que se encontram na Convenção ajustada entre o Exército inglês e francês para a evacuação de Portugal, e do que lembra nestas circunstâncias para minorar aqueles que são de pior consequência para este país.



Nada pode ser mais útil aos franceses, e por consequência mais prejudicial à causa geral da Europa, que o Governo britânico se propõe auxiliar à custa dos maiores esforços, como a desconfiança dos povos acerca dos verdadeiros motivos que dirigem este Governo.
Sempre os franceses procuraram excitar desconfianças acerca das vistas do Governo inglês; e a conduta que tem tido a Espanha, recusando até agora o admitir indefinidamente tropas inglesas nos seus Estados, apesar dos riscos que tem corrido, prova bem qual é ainda a sua desconfiança a este respeito; entre nós mesmos os partidistas franceses têm espalhado sobejamente estas desconfianças, para que deixe de ser arriscado que a nação, num momento de efervescência, não venha a considerar como seus opressores aqueles que só deve considerar como seus auxiliadores. Nestas circunstâncias, nada pode concorrer tanto para frustrar as intrigas francesas como a mais pronta manifestação dos intentos do Governo britânico, que estamos bem certos que não podem ser outros que os de restituir completa e inteiramente este país, e tudo o que lhe pertence, ao Príncipe Regente de Portugal, seu fiel e antigo Aliado, a quem os Povos aclamam unanimemente, e porque quem se expuseram a todos os riscos que podia trazer consigo esta determinação, quando não tinham ainda auxílio inglês, e se achavam reduzidos às suas próprias forças, lutando contra aquelas dos seus opressores. Mas como o caso não está só nas tenções, e o que mais interessa neste momento é não dar pretextos aos mal intencionados de se aproveitarem de aparências para empecer os grandes e nobres desígnios da Grã-Bretanha, permita-se-me dizer que a forma por que está concebido este Tratado pode induzir em erro não só os portugueses, mas os espanhóis, e produzir os funestos efeitos que apontei, se não se cuidar imediatamente em destruir por factos as más impressões que ele pode causar.
O Exército britânico não se pode nem deve considerar neste país senão como [um] Exército auxiliar; assim foi que ele veio requerido pelo Governo Provisório do mesmo país [=Junta Suprema do Porto], e assim lhe convém ser reputado, seja qual for a sua força, para não excitar desconfianças, que lhe vão empecer os seus ulteriores projectos. Nestas circunstâncias, parece que qualquer Tratado que se houvesse de ajustar com os franceses devia ser de acordo com o Governo do mesmo país que o chamou, ou ao menos com a sua aprovação particular, quando a delicadeza dos reconhecimentos embaraçasse de fazer intervir publicamente no ajuste o mesmo Governo. Nada disto se fez, antes pelo contrário estipularam-se coisas que não podem nunca ser da competência da Autoridade Militar, senão quando esta autoridade se acha num país conquistado; tais são as que se contêm nos artigos 16 e 17, e no 1.º dos adicionais: estipulou-se que as Praças do Reino, e marítimas, que os Arsenais e Forças Navais pertencentes aos portugueses, actualmente em poder dos franceses, serão entregues às Tropas inglesas, não se declarando ao mesmo tempo nem que esta entrega era provisional, para serem restituídas ao seu legítimo Soberano, nem se deu em parte alguma a entender que a restituição do seu Governo é o objecto que se tem em vista.
Para evitar pois as desconfianças que tais aparências podem excitar, e que os franceses não deixarão de promover, parece da primeira necessidade que quanto antes queira declarar Sua Excelência o General em Chefe do Exército britânico, que a ocupação das Praças, Arsenais e mais Estabelecimentos Públicos, assim como das Forças Navais pertencentes a este Reino, foi só uma medida provisional, motivada pela necessidade de evitar o contacto das Forças portuguesas e francesas, a fim de prevenir que o ressentimento daquelas as não excitasse a algum procedimento que pusesse em perigo a segurança da Capitulação ajustada; porém, que cessando este perigo, se deverão entregar ao Príncipe Regente de Portugal, ou ao Governo que o representar, e serem guarnecidos por Tropas portuguesas, conservando-se unicamente aquelas guarnições inglesas que de acordo com o General em Chefe se julgar conveniente para a melhor conservação e boa ordem dos pontos em que parecerem necessárias.
Quanto às garantias estipuladas nos artigos 16 e 17, parece indispensável que o mesmo General em Chefe declare que nunca foi da sua intenção embaraçar que o Governo tomasse a respeito dos indivíduos neles mencionados todas as medidas de precaução indispensáveis para evitar que estes homens, que se fazem suspeitosos, venham com efeito a prejudicar a causa pública, enquanto aqui se conservarem, e sejam castigados com toda a severidade das leis, se se achar que eles continuam a atraiçoar este país.
Quanto ao 1.º artigo dos artigos adicionais, não pode o General português deixar de lembrar a impossibilidade da sua execução, enquanto não se estabelecer uma justa reciprocidade. 
Não se pode deixar de lembrar a Sua Excelência o Senhor General em Chefe do Exército inglês a necessidade que há de estabelecer, durante a demora dos franceses em Lisboa, alguma espécie de exame sobre o procedimento dos mesmos franceses, e de lhes intimar que qualquer violência cometida por eles, durante este tempo, contra os habitantes do país, os fará responsáveis de todo o acontecimento a seu respeito.
Igual exame e protesto parece ser indispensável fazer-se acerca dos abusos a que podem dar lugar os artigos relativos a bagagens, caixa militar, e vendas de propriedades particulares, entre as quais podem os mesmos franceses envolver tudo quanto quiserem, se não os contiver o receio de verem anular, com grande desvantagem sua, a Capitulação tão favorável que obtiveram.
Não deixo de lembrar o risco a que se expõem os mesmos franceses, e o comprometimento a que está sujeita a capital e o mesmo Exército francês pela conservação em Lisboa durante a evacuação. 
O rancor com que eles são olhados pelo povo de Lisboa, e o seu menor número, pode incitar por qualquer incidente o mesmo povo a uma insurreição, que pode ser sanguinolenta para a mesma capital, e muito embaraçante para o Exército inglês e português, por uma parte ligado pelas Convenções, e por outra não lhe sendo decoroso deixar perecer à sua vista Vassalos portugueses; para evitar este risco, parecia conveniente propor com razões semelhantes que, [uma vez] embarcada a 1.ª Divisão [do Exército francês], passasse o resto para a parte de Cascais, onde se poderia embarcar ao abrigo duma Divisão inglesa, que se interpusesse entre ela [=a parte restante do exército francês] e Lisboa; por este modo evitava-se este perigo, que é iminente, apressava-se a evacuação de Lisboa, e por consequência diminuíam-se os roubos e as queixas, e podia restabelecer-se mais cedo o Governo, como parece convir a todos os respeitos.
Quartel-General da Encarnação, 3 de Setembro de 1808.


Bernardim Freire de Andrada.

[Fonte: Luís Henrique Pacheco Simões (org.), "Serie chronologica da correspondencia diplomatica militar mais importante do General Bernardim Freire de Andrade, Commandante em Chefe do Exercito Portuguez destinado ao resgate de Lisboa com a Junta Provisional do Governo Supremo estabelecido na cidade do Porto e o Quartel General do Exercito Auxiliar de S. Magestade Britanica em Portugal", in Boletim do Arquivo Histórico Militar - Vol. II, 1931, pp. 3-77, pp. 31-33 (incluída no doc. 75); Julio Firmino Judice Biker, Supplemento á Collecção dos Tratados, Convenções, Contratos e Actos Públicos celebrados entre a Corôa de Portugal e as mais Potências desde 1640 - Tomo XVI, Lisboa, Imprensa Nacional, 1878, pp. 77-80. Existe também uma tradução em inglês disponível in Copy of the Proceedings upon the Inquiry relative to the Armistice and Convention, &c. made and conclued in Portugal, in August 1808, between The Commanders of the British and French Armies, London, House of Commons Papers, 31st Jannuary 1809, pp. 204-205 (doc. 106)].