terça-feira, 7 de junho de 2011

As primeiras localidades portuguesas a se manifestarem contra os franceses: Chaves e Vila Pouca de Aguiar (6 e 8 de Junho de 1808, respectivamente)


Posto que a labareda ficou, como vimos, sufocada no Porto, o fogo existia e nutria-se em segredo nos corações de todos os fiéis portugueses, sempre pronto a manifestar-se, logo que as circunstâncias o permitissem. Se numas partes se amortecia, noutras ia aparecendo de novo; até que arrebentou um vulcão, de que não houveram forças que pudessem suspender a torrente. Vamos por partes. 
Todos sabem o modo singular com que os povos de Portugal (e também os de muitos outros países) celebram a festividade do Divino Espírito Santo: festividade de uma grandíssima devoção para com estes povos, mas em que o profano se tem misturado com o sagrado, como tem acontecido a muitas outras das nossas cerimónias religiosas. No Egipto seguiram-se 7 anos de fome a outros tantos de abundância, significados nas 7 vacas magras e 7 gordas com que sonhou o Faraó; entre nós seguem-se 7 semanas de abstinência que a Igreja ordena aos seus filhos, outras tantas de fartura em que estes, por sua própria devoção, se entregam a prazeres e ritos tão jocosos como extravagantes, e muitas vezes a excessos repreensíveis. Vem depois disso a festividade própria, que dura 3 dias; e é então que se dança, se toca, se canta, se come e bebe sem medida; com estes estímulos exaltam-se os espíritos, e muitas vezes se atrevem a coisas que empreenderiam no seu estado natural. Foi com efeito a festa do Espírito Santo a que produziu os primeiros sintomas de revolução em Chaves, precisamente no mesmo tempo em que Belestá a começava no Porto
Os ânimos já estavam comovidos desde a noite de 4 (véspera do dia próprio da festividade), e sucedendo na segunda oitava [6 de Junho] espalharem-se algumas notícias favoráveis sobre os acontecimentos da Espanha, os músicos dos regimentos desorganizados daquela praça, que andavam nos seus descantes, associados com várias pessoas da plebe, rompem em altos clamores de viva o nosso Príncipe. Ajuntaram-se-lhes mais indivíduos, e muitos rapazes com barretinas de papelão e paus em lugar de armas, discorreram por todas as ruas, e toda imediata continuaram os descantes, repetindo-se muitas vezes as alegres vozes: viva o nosso Príncipe, viva, viva; morra Junot e Napoleão.
Estas sementes, que germinaram numa parte do povo de Chaves, chegaram a espalhar-se pelos campos, especialmente em Vila Pouca de Aguiar; mas não granaram porque a autoridade pública não as favoreceu. Pelo contrário, deram-se algumas demonstrações de desaprovação, e escreveu-se ao Governador de armas da província [Manuel Jorge Gomes de Sepúlveda] para que desculpasse estes movimentos como praticados por um povo indiscreto. Tenho este facto de uma fonte que me pareceu verídica; mas como não sou escritor de partido, exporei também as pretensões que os habitantes de Chaves sustentam sobre a primazia da restauração e os fundamentos em que as apoiam.
Corre impressa uma relação anónima dos acontecimentos de Chaves num 4.º de papel, sem título nem declaração da oficina em que se imprimiu, na qual se referem os primeiros movimentos da restauração naquela praça por um modo que, no essencial, não difere muito da minha exposição; mas acrescenta-se nela que o Governador e o Juiz de Fora não só auxiliaram aqueles mesmos movimentos dos três dias do Espírito Santo, mas consumaram a obra, fazendo colocar nas ameias do castelo a bandeira encarnada com as Armas Reais, em sinal de declaração de guerra à França, e ultimando a solene aclamação do Príncipe Regente em Chaves, donde se comunicara não só ao distrito desta vila mas até a Bragança, onde à sua imitação o General Sepúlveda praticara o mesmo no dia 11.
Numa semelhante relação do que se praticou em Vila Pouca de Aguiar, também se diz que chegando a esta em 8 de Junho a simples e passageira notícia de que na praça de Chaves se havia aclamado o nosso amado Soberano, e no dia seguinte, por carta de Pedro de Sousa Canavarro, a da prisão dos franceses no Porto, se fizera a mesma aclamação por todos os habitantes daquela vila, entre repetidos vivas, toques de caixas, repiques de sinos; seguindo-se depois uma iluminação geral, em que se distinguiram as casas do mesmo Canavarro e as de Manuel Gregório Pereira de Sampaio. Confessa porém a mesma relação que eram de desejar mais sólidos fundamentos para as esperanças e contentamento daquele povo; e que estes apareceram felizmente no momento em que o General Sepúlveda mandara chamar às armas para a expulsão do inimigo, por um edital de 11 de Junho.
Apareceu ultimamente um folheto, também anónimo, impresso em 1809 na Impressão Régia, que tem por título Memorias da villa de Chaves na sua gloriosa revolução contra a perfidia do tyrano da Europa [sic], e nele se dá toda a glória ao administrador dos provimentos de boca para o exército de Trás-os-Montes, António Vicente Ferreira de Sampaio, de acordo com o Juiz de Fora de Chaves, Domingos Álvares Lobo, atribuindo-se-lhes o terem feito na mesma praça a revolução e aclamação formal nos dias acima indicados, em resultado de conferências secretas que antecedentemente houveram entre ambos, e de um plano combinado, que se reduz aos artigos seguintes:
1.º Que no dia 6 de Junho pelas 11 horas da noite saíram com um concerto de música pelas ruas, e ele (Sampaio), como chefe da revolução, levantaria a voz: viva o Príncipe Regente, morra Napoleão e seus sequazes. Que os seus oficiais tinham armas e munições, das que se haviam comprado em Novembro de 1807, e deviam postar-se com elas encobertas na frente e retaguarda da música para a defenderem de qualquer insulto dos assalariados pelo inimigo, e jacobinos, se os houvesse. Que os feitores Anastácio, Jerónimo, e Almeida, deviam ter os obreiros prontos e armados para entrarem em acção, se necessário fosse; ocultando-se-lhes entretanto o desígnio e pretextando-lhes que se dirigiam ao depósito das lenhas, que se achavam roubadas.
2.º Que nos dias 7, 8 e 9 repetiram a mesma cena; e se o negócio tivesse acesso no povo, com ele organizariam um governo de confiança, pondo-lhe à testa o Juiz de Fora, se as autoridades superiores da província não se prestassem à causa da pátria.
3.º Que no dia 12 (véspera de Santo António) fariam cavalhadas com o devido aparato, música e fogo, arvorando-se a bandeira do Santo, em que estava o escudo das Armas Reais com a divisa: Viva o Príncipe Regente, Nosso Senhor, e no dia seguinte se conduziriam à colegiada de Santa Maria Maior, para festejarem o Santo; avisando-se desde logo (em 5 de Junho) o P. M. [Padre Mestre] Frei António da Assunção, religioso arrábido, para orar neste dia e missionar ao povo a necessidade de pegarem todo em armas a favor dos seus direitos e independência. Seguem-se outras providências para se porem prontas as famílias dos conjurados (é o nome com que o folheto os designou), papéis, livros e dinheiro da contadoria, para se pôr tudo a salvo em Espanha, se fosse necessário.
Confesso que estas formalidades e estas precauções numa terra e numa província onde não haviam inimigos, estas disposições de cavalhadas, festas, músicas e fogos de alegria feitas com com aprazamentos de dias certos, quando ainda não se tinha começado a acção, a fórmula do juramento dos associados, com muitos visos dos que se usavam no tempo dos cavaleiros andantes, que se acha a pág. 6 do mesmo folheto, uma carta do Padre Assunção a pág. 7, e outras mais circunstâncias eram bastantes para me darem uma ideia muito desfavorável da veracidade desta obra. Acresce o ter ela aparecido e desaparecido como o relâmpago, não se anunciando ao público nem se pondo em venda, e podendo apenas descobrir-se algum exemplar como a furto; o que faz presumir que se imprimiu para algum fim particular, e que pretende ocultar-se ao público para não se lhe descobrir alguma chaga. 
Como pode conceber-se que ficassem em segredo, se fossem verdadeiros, factos desta natureza, que se dizem praticados numa praça de armas que ao mesmo tempo é uma das vilas notáveis do reino, numa época em que tanto se pesquisavam os mais leves movimentos da nossa restauração? Como é possível que os seus autores não os fizessem valer, e que deles não aparecessem nem vestígios nos dois periódicos formalizados por ordem dos respectivos governos, o Leal Portuguez [sic] no Porto e a Minerva Lusitana em Coimbra, cujos redactores, dotados de grande erudição e de muita perspicácia, cuidadosamente ajuntavam todas as memórias concernentes ao princípio e progresso da revolução? O argumento negativo tem aqui muita força, muito principalmente porque com o testemunho daqueles dois periódicos concordam em dar a primazia a Bragança os muitos escritos do tempo, que podem ver-se citados na Memoria abbreviada dos serviços do General Sepulveda [sic], sem mesmo fazerem questão ou nos darem conhecimento algum daqueles pretendidos acontecimentos.
Sepúlveda passou constantemente pelo primeiro chefe da aclamação, e como tal recebeu cartas de elogios do governo do Porto e aplausos universais em toda a província de Trás-os-Montes, por onde vagou, e especialmente em Vila Real, onde a 9 de Julho lhe deram uma pomposa entrada, recitando-se na sua presença uma oração em nome da Câmara, a qual também corre impressa, em que se lhe concede esta primazia com expressões as mais claras e terminantes. A cidade de Miranda, as vilas de Ruivães, Torre de Moncorvo e outras mais terras daquelas províncias também fizeram imprimir relações dos factos que lhes respeitam, e todas citam o rompimento de Bragança como o primeiro desta feliz revolução em Trás-os-Montes, sem que nenhuma se lembrasse de Chaves*.
As Memórias de Chaves me parecem pois uma impostura semelhante ao catálogo das actas de um certo conselho conservador que se inventou em Lisboa**, cujos autores datam as suas conferências e os seus planos para a restauração do reino de um tempo em que ninguém se remexia ainda em Portugal; que porém foram desmascaradas por declarações públicas de alguns daqueles mesmos que eles incluíram numa lista dos adidos aos seus mistérios, e pela prisão de um ou dois dos próprios chefes, como suspeitos ao nosso governo.
Como historiador eu tenho coligido os factos e exposto as reflexões que determinam sobre eles a minha opinião; mudarei dela muito voluntariamente (pois estou bem longe de querer roubar a glória a quem ela possa pertencer), uma vez que se produzam fundamentos que a destruam, quais não tenho achado até o presente; podendo atestar que é este um dos pontos históricos de que a investigação me deu maior trabalho e me deixou mais convencido do pouco crédito que merece a maior parte dos escritos volantes que têm aparecido sobre a restauração, e do quanto é difícil ao historiador o alcançar com pureza a verdade dos factos, quando com estes se mistura o espírito do partido, e ele se acha na situação penosa de não poder alcançar memórias, senão por via de pessoas que têm interesse por uma ou por outra parte.

[Fonte: José Accursio das Neves, Historia Geral da Invasão dos Francezes em Portugal, e da Restauração deste Reino - Tomo III, Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1811, pp. 111-123].

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Notas:


* [Nota original de Acúrsio das Neves] Vila Real na sua relação pretende para si a primazia, sem falar em Bragança nem em Chaves; o fio dos sucessos irá mostrando que também a sua pretensão é mal fundada.

** [Nota nossa] Acúrsio das Neves refere-se a um opúsculo de 24 páginas publicado pela Impressão Régia logo em 1808, com o longo título Catalogo por copia extrahido do original das sessões e actas feitas pela sociedade de portuguezes, dirigida por um conselho intitulado Conselho Conservador de Lisboa, e installada n'esta mesma cidade em 5 de fevereiro de 1808; tendo se unido os installadores em 21 de janeiro do mesmo anno para tractar da restauração da patria [sic]
Inocêncio Francisco da Silva afirma que este conselho "não passava (creio eu com bons fundamentos) de uma loja maçónica das que, como quase todas, se mostraram adversas ao jugo e usurpação francesa, e que preparava projectos que tarde ou nunca viriam a realizar-se, se as circunstâncias externas não coadjuvassem tão poderosamente os portugueses na recuperação da sua independência!" [Fonte: Innocencio Francisco da Silva, Diccionario Bibliographico Portuguez - Tomo Quinto, Lisboa, Imprensa Nacional, 1855, p. 70].
Luís Augusto Rebelo da Silva, por sua vez, refere que "a existência desta sociedade secreta não é uma invenção". Fundamentando-se exclusivamente no citado catálogo das actas, adianta este autor que o dito "conselho fundou-se em 5 de Fevereiro de 1808, com seis sócios que eram: G..., Mateus Augusto, José Máximo Pinto da Fonseca Rangel, José Carlos de Figueiredo, António Gonçalves Pereira, André da Ponte do Quental da Câmara; José Máximo da Fonseca foi nomeado secretário. O local das reuniões decidiu-se que fosse alternadamente a casa de cada um dos adeptos. A hora das conferências às 8 da noite. 
A fórmula do juramento adoptada era esta: «Na nossa presença, oh imenso, Sempiterno, Omnipotente Deus, criador do Universo, estando em nosso acordo, sem constrangimento ou dúvida, livres e deliberados jurámos tratar de hoje em diante com todo o possível desvelo, fervor, prudência e firmeza a causa nobilíssima da religião, da pátria e do trono, aplicando para isso nossas forças, talentos, bens e vida até conseguirmos entregar este a seu dono o Príncipe Regente e àqueles o esplendor, a liberdade, a glória. Este juramento seja para sempre o fundamento da nossa honra e da nossa felicidade, que chame sobre nós a bênção divina e os aplausos da nossa posteridade; a violação dele, pelo contrário, atrairá sobre nós as maldições do céu e da terra; a vileza para nós e para os nossos descendentes.»
Na sétima sessão prestaram este juramento um pouco teatral o coronel de cavalaria Álvaro Xavier 
[184]de Póvoas e Fernando Romão da Costa Ataíde Teive. Daí  em diante cresceu todos os dias o número dos sócios e associados. Na sessão de 25.º constituiu-se o conselho conservador à pluralidade de votos e ficou composto dos seguintes deputados e adjuntos: o bispo de Malaca D. Francisco, o D. abade de Belém fr. Manuel de Mesquita, o arcediago do Funchal Manuel Joaquim de Sousa, o beneficiado Joaquim José da Costa, o marquês de Angeja D. João, o conde de Rio Maior, o visconde da Bahia, o desembargador Sebastião José de Sampaio, o brigadeiro António Marcelino da Victoria, os coronéis Lemos, Lacerda e Raposo, o tenente coronel Costa Ataíde, o major António Marcelino Soares, e todos os [de]mais sócios aprovados e admitidos. João Carlos de Saldanha Oliveira e Daun, hoje duque de Saldanha, entrou também no conselho, inscrito sob número 27. Consta da relação publicada a pág. 87 do opúsculo.
O conselho, desde 5 de Fevereiro até ao 1.º de Outubro de 1808, em que se dissolveu, celebrou quarenta e duas sessões. O número dos sócios ajuramentados subia a 183. O dos auxiliares abonados por vários deles elevava-se a 959, além do concurso de tropa e povo, com que contava para o caso de um rompimento.
Os planos de sublevação, as proclamações, os avisos ao almirante inglês sir Charles Cotton e os projectos da sociedade não corriam tão secretos como ela imaginava.
A polícia francesa suspeitava, pelo menos, se não conhecia plenamente a organização deste núcleo; porém, não julgou prudente proceder contra ele, temendo-se talvez mais de um processo ruidoso em circunstâncias criticas, do que dos tramas pouco belicosos e activos dos conspiradores. É o que se depreende de um trecho da Historia da Guerra da Península
 do general Foy [Fonte: Luiz Augusto Rebello da Silva, A casa dos fantasmas - Episodio do tempo dos francezes (Volume II), Lisboa, Typographia da Gazeta de Portugal, 1865, pp. 227-228]. 
Finalmente, veja-se ainda a este respeito a referida obra de Foy, Histoire de la guerre de la péninsule sous Napoléon - Tome IV, Paris, Baudouin Frères Éditeurs, 1827, pp. 277 e ss.