quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Pastoral do Arcebispo do Évora (8 de Setembro de 1808)



Dom Frei Manuel do Cenáculo Vilas Boas, por Mercê de Deus e da Santa Sé Apostólica Arcebispo Metropolitano de Évora, com Jurisdição Eclesiástica nesta Diocese de Beja, etc., etc., etc. etc. 

A todos os Fiéis da mesma Diocese, Saúde e Bênção. 

Salvo dos fatais destroços da capital da minha metrópole, Évora, facilmente aproveito esta graça para repetir as observações necessárias na outra minha antiga e agora canonicamente por mim administrada capital do Bispado de Beja. Moisés temeu os destroços dos seus irmãos no Egipto, e protestou a Deus visitar e observar os que ainda viviam – Vadam et revertar ad fratres meos, ut videam si adhuc vivunt [Deixai-me voltar a meus irmãos, para ver se ainda vivem]. Esta imponderável Graça de achar os bejenses sãos e salvos da tristíssima ruína, comove a entranha para agradecer a Deus tão sensível benefício. Seus efeitos devem ser tocados em particular para animar os povos. Ainda vivemos, amados bejenses. Ainda nos resta o mesmo espírito de vida e doutrina. Ainda a Graça Divina nos fez superiores à turbulenta animosidade que se atreveu contra as nossas respirações e alento. Sim, é favor extraordinário da Providência que nos vejamos e escutemos uns aos outros, dizendo-nos: a força bruta dos Demónios, que tanto mal sugeriram aos homens e fizeram; mas achou de encontro a Dominação Celeste para nos proteger e defender, como respeitamos no Bem-aventurado Arcanjo que neste feliz território por nós intercede e nos defende, agora mais do que nunca verificou a sua denominação: Michael quis ut Deus. Sim: a Omnipotência Divina ainda foi servida conservar nestes lares as demonstrações da sua Virtude Infinita. Ainda mostra querer a continuação de seus auxílios para connosco. Ainda faz enternecer vosso Pastor à vista da vossa Religiosa Piedade; à vista da vossa resignação para com as permissões da Sua Justiça; e à vista, digo, de vossas carinhosas e constantes afeições para a vossa antiga devoção ao Senhor Sacramentado. Não é possível que vos depreendam desta filial afeição quaisquer outros cuidados temporais. Nem o necessário emprego para as coisas da Milícia, nem os cuidados económicos e domésticos, nem o estudo, nem as letras tenho conhecido serem capazes de vos desviarem e separar do Sacramento, que em boa hora penetrou vossos corações na adoração da Santíssima Eucaristia. A este Maior dos Mistérios atribuo a preservação de maiores males, a conservação da vida nas instantes angústias, sabendo entreter-se judiciosamente com as temporalidades indispensáveis nos ofícios da vida, nos empregos honrados que a distinguem, no amor da Pátria que a coonesta. Alegre com a invenção deste Tesouro, com a animação dos vossos espíritos e constância de vossos propósitos pela Religião, pela Justiça e Lei; vendo-vos interessados pelo Amado Príncipe e pela Pátria, enquanto me não repito a vós e a vossos festivos clamores de alegria, volto a outros indispensáveis ofícios, tendo presentes a minha Palavra e a vossa Fé.
Dada em Beja sob o nosso sinal e selo das nossas armas aos oito de Setembro de mil oitocentos e oito.

[Fonte: Frei Manuel do Cenáculo Villas-Boas, Diário - 5.º Códice, fls. 100-100v (disponível para consulta on-line na Biblioteca Digital do Alentejo)].

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Nota: 

No dia 13 de Agosto de 1808, Frei Manuel do Cenáculo foi preso em Évora, segundo ordens da Junta de Beja, acusado de colaboracionismo com os franceses, os quais, de facto, segundo as suas próprias palavras, tinham-lhe recomendado que governasse Évora na sua ausência (o exército francês abandonara a cidade no dia 1 de Agosto, depois de ter assassinado pelo menos 220 pessoas). Recordemos que Cenáculo já era presidente da Junta de Governo de Évora (juntamente com o General Paula Leite) antes dos franceses entrarem na cidade; não obstante, foi decretada a sua prisão, como acima dissemos. Foi transportado para Beja, onde chegou a 16 de Agosto, tendo depois a Junta de Beja declarado que lhe concederia a libertação se ele dirigisse aos povos uma pastoral "análoga às circunstâncias". A pastoral acima transcrita foi precisamente a sua resposta; contudo, não se chegou a publicar, pois, segundo as suas próprias palavras, a mesma "foi à censura, e lida no consistório disse o Presidente: Está muito escura. O Arcebispo não quer desenganar-se em falar claro a favor desta Regência?". (Por Regência entenda-se aqui a Junta de Beja, e faça-se aqui um aparte para acrescentar que estas lutas de poder e pela primazia foram nesta época bastante comuns e constantes em toda a Península Ibérica, que podia ter sido palco de várias guerras civis, se a mesma não tivesse entretida, pelo menos por enquanto, com um "inimigo comum"...). 
Como muitas outras vítimas do maniqueísmo político das auto-apelidadas Juntas (Supremas e/ou Provisórias) de Governo, na maior parte das vezes impelido pelo próprio povo, Cenáculo, ao não se pronunciar explicitamente contra os franceses, e, sobretudo, como lhe apontou o censurador, nem sequer a favor da Junta de Beja, acabaria por permanecer preso até ao início da segunda semana de Outubro do mesmo ano, já depois dos próprios Governadores da Regência terem instado à dita Junta para o libertar. Veja-se ainda, a este propósito, a segunda parte da sua memória sobre estes acontecimentos, adiante publicada.