segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Carta dos administradores do Museu de História Natural de Paris a Emmanuel Crétet, Ministro do Interior do Governo francês (8 de Janeiro de 1808)


Paris, 8 de Janeiro de 1808.


Monsenhor [Monseigneur]:

A proposta que Vossa Excelência nos faz, de acordo com as ordens de Sua Majestade Imperial e Real, de enviar um naturalista a Portugal, para aí recolher objectos e informações úteis à ciência e à nossa instituição, é [para] nós uma nova prova da atenção esclarecida do Governo por tudo o que possa ser vantajoso para o país.
Pensamos que esta medida seria tão útil para Portugal como para nós. Ao seleccionar o que que nos interessa, o comissário assegurará que o país conserve o resto, pois a experiência prova que, por não terem existido precauções semelhantes, já se perderam completamente colecções preciosas para todo o mundo.
É indubitável que o nosso estabelecimento pode aproveitar-se muito desta viagem. Sabemos que existem em Portugal muitos gabinetes públicos, ricos em produções dos três reinos [animal, vegetal e mineral] da Índia e do Brasil, dos quais estamos privados, devido à falta de relações com esses países longínquos. Inclusive Portugal produz muitos objectos que será interessante obter para a França, e, como tudo isto se deve aí achar em grande abundância, é possível que, com moderação,  enriqueceremos muito sem empobrecer sensivelmente o país.
Propomos que Vossa Excelência confie essa missão ao  senhor Geoffroy, um de nós, que está disposto a aceitá-la, fazendo-se acompanhar pelo senhor Delalande filho, um dos preparadores empregados nos nossos laboratórios, cujo auxílio será muito útil para as embalagens e outras operações manuais*. Também podereis autorizá-lo, em caso necessário, a chamar junto a si o senhor Tondi, um dos nossos assistentes de naturalista, que neste momento está de licença numa viagem pela Espanha, e que poderá ajudá-lo no que diga respeito à mineralogia**.
Em relação à parte económica desta viagem, poderia-se fazer o que se praticou nas primeiras campanhas da Holanda e da Itália. Os comissários eram enviados às custas do Ministério do Interior até ao país conquistado. Uma vez que aí chegavam, eram mantidos às custas do exército, que lhes fornecia também tudo o que era necessário para as suas operações e, sobretudo, para os seus transportes. Quando regressavam, as despesas de transporte eram novamente custeadas pelo Ministério do Interior, contando a partir da fronteira.
Não temos necessidade de dizer a Vossa Excelência que será necessário que todas estas disposições sejam fixadas e ordenadas antecipadamente, para que o comissário nunca possa ficar embaraçado. Em relação à sua pessoa, Vossa Excelência pode regular as suas despesas de viagem e de estadia de acordo com o que é habitual, e remunerá-lo conforme alguma graduação.
Vossa Excelência pode recordar-se que, no Egipto, os membros do Instituto estavam ao mesmo nível do posto de Coronel, e essa determinação poderia servir de regra para o futuro.
Seria bom fixar também a remuneração do seu assistente, adiantando-lhe uma parte dos fundos necessários. Vossa Excelência conhece bem demais o estado das nossas finanças para que tenhamos necessidade de vos dizer que não podemos suportar nenhuma dessas despesas.
Da nossa parte, vamos ocuparmo-nos de redigir, cada um na parte que lhe cabe, as instruções detalhadas, a fim de que o comissário não perca de vista nenhuma das vantagens que poderão ser obtidas pelas suas operações.
Temos a honra, etc.


[Fonte: E.-T. Hamy, "La mission de Geoffroy Saint-Hilaire en Espagne et en Portugal (1808). Histoire et documents", in Nouvelles Archives du Muséum d'Histoire Naturelle, Quatrième série - Tome dixième, Paris, Masson et C. Éditeurs, 1908, pp. 1-66, pp. 4-5].


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Notas:



Por "embalagens" [emballages, no original] e "outras operações manuais" entenda-se não tanto o encaixotamento mas sim os processos e técnicas de conservação (secagem de plantas, embalsamento de animais, etc.) necessários para a boa preservação do material que seria recolhidos em Portugal. O "preparador" Pierre Antoine Delalande (noutras versões grafado como de Lalande) era especialista nestas técnicas e trabalhava então como assistente de naturalista [aide-naturaliste] no Museu de História Natural de Paris. Já depois da abdicação de Napoleão, tornou-se bastante conhecido, em virtude de viagens que fez ao Brasil e à África, tendo regressado à França com vastas colecções de materiais de interesse científico. 

** O mineralogista napolitano Matteo Tondi, que desde 1799 estava exilado na França, por motivos políticos, exercia a função, como Lalande, de assistente de naturalista no Museu de História de Natural. Pouco antes da redacção desta carta, tinha recebido licença para viajar à Espanha. Como Geoffroy Saint-Hilaire não chegou a recorrer ao seu auxílio, Tondi manteve-se na Espanha, onde recolheu muito material mineralógico, mas ao ser surpreendido pela sublevação geral que começou a alastrar-se naquele país em Maio de 1808, viu-se forçado a regressar a Paris, despojado dessa ricas colecções. Escreveu a este propósito uma Viaggio in Spagna, que contudo permaneceu manuscrita, talvez devido ao fiasco desta viagem.