quarta-feira, 20 de abril de 2011

Carta de Geoffroy Saint-Hilaire aos professores-administradores do Museu de História Natural de Paris (20 de Abril de 1808)




Madrid, 20 de Abril de 1808*.




Meus caros Colegas:


Estou em Madrid há vários dias; não sei quando partirei. Vim para aqui em circunstâncias bastante singulares, as quais me obrigam a nunca deixar o grosso do exército francês. Por outro lado, não encontraria nenhum meio de transporte, pois todos estão a ser conduzidos para Bayonne, transportando a comitiva dos príncipes espanhóis. 
Forçado a ficar aqui, tenho ocupado o tempo livre para visitar os sábios e os objectos de história natural.
Os sábios encontram-se na pobreza mais extrema; o Príncipe da Paz não pagava ninguém há 10 meses. Fez melhor, o seu agente financeiro apoderou-se duma soma de 4.000 pesos duros [piastres fortes], que um americano rico tinha legado para a continuação da flora dos Srs. Ruiz e Pavón**
Existem outros sábios, os Srs. Sessé e Mociño, que são dignos da maior benevolência, e seria conveniente encorajá-los: são aqueles que foram encarregados da expedição ao México. Percorreram todo esse [vice-]reino durante 5 anos, onde recolheram um número bastante considerável de desenhos de quadrúpedes, de aves, de répteis, de peixes, de insectos e de plantas; mas como não tinham consigo senão a 12ª edição de Lineu, a maior parte das suas determinações está errada. Eles crêem ter diversas espécies de animais sedentários da Europa, da África e da Ásia, e é muito provável que se tratem de outras espécies novas; por fim, possuem 4 a 5 géneros [novos] bem distintos de aves. Eles não podem trabalhar convenientemente senão forem a Paris para comparar o que possuem com as nossas colecções; mas estão longe de poder empreender uma semelhante viagem. Frustrados nas suas esperanças desde que há três anos atrás regressaram à Europa, vivem mediocremente e já têm uma idade avançada, de modo que bem se pode recear que o fruto duma tão longa e perigosa viagem será quase completamente perdido. 
Vi o Gabinete apenas uma vez. Em geral, é pouco rico; no entanto, de tempos a tempos encontram-se novidades importantes: um novo mirmecófago, vários tatus também novos, todos os crocodilos de Havana e de outros rios das duas Américas, o veado do Canadá que trouxeram do México, e muitos outros.
A mineralogia parece cuidada: contudo, foi composta por amostras mais destinadas a brilhar do que a instruir: encontra-se aí um número enorme de fluoretos calcários, carbonatos calcários, carbonatos de bário, etc., sem que esses objectos apresentem diferenças de cristalização.
O Sr. Izquierdo, que é o Director do Gabinete, está em Paris, e fará bem em permanecer por aí: o Príncipe da Paz é visto aqui como um outro Robespierre, e o seu agente é igualmente perseguido pela vingança pública. O vice-director está na Alemanha; as chaves do Gabinete estão na posse do Sr. Angulo, que tem a grande honra de corresponder-se com o Sr. Haüy. De resto, o Gabinete está sob a direcção de um funcionário dos Negócios Estrangeiros.
Pedi que me facilitassem o acesso às colecções; este assunto está pendente ainda. Contudo, se mo negam, como espero, empregarei meios que farão cessar todas as chicanas que me fazem. Sou apoiado por alguns espanhóis que me acompanham a todos os lados que vou, e que tinham sido repelidos do Gabinete devido a uma reles inveja.
Agradecer-vos-ei muito, meus caros colegas, que façam o Ministro aprovar a minha conduta, segundo o relatório da minha permanência em Madrid.
Para vos explicar o motivo [desta conduta], necessitariam de um relato dos acontecimentos políticos, sobre os quais creio que é prudente que me cale. Acreditai que quando chegar o momento, avançarei com toda a diligência possível.
Vi muitas vezes o Sr. Lagasca, professor de matérias medicinais; dei-lhe os livros e os herbários que o Sr. de Candolle me tinha encarregado de lhe entregar.
Jardim botânico está melhor mantido do que o Gabinete: utilizam-se algumas práticas nas estufas e laranjais que creio serem boas para pôr em uso em Paris; hei-de submetê-las ao Sr.  Thouin no meu regresso.
Empreendi um grande encargo: o Sr. Faujas, que tinha manifestado alguns pontos de vista acerca do que aconteceria neste caso, vai perfeitamente ao encontro do que eu estou a suportar. Lalande, na sua qualidade de noviço, acha que esta viagem é muito singular, para não dizer de outro modo. Assusta-se facilmente e não consegue acostumar-se à comida espanhola, tal como se serve nos albergues, ao vinho que tem o sabor do odre, etc. Contudo, estou muito satisfeito com ele: recolheu insectos, preparou duas cotovias que nos faltam e ocupa-se dando o seu melhor. 
Adeus, meus caros colegas, queirais aceitar a garantia da minha mais afectuosa amizade.

Geoffroy Saint-Hilaire

[P.S.] Dou conta do que fiz até agora ao Ministro do Interior em carta que segue pelo mesmo estafeta que esta.

[Fonte: E.-T. Hamy, "La mission de Geoffroy Saint-Hilaire en Espagne et en Portugal (1808). Histoire et documents", in Nouvelles Archives du Muséum d'Histoire Naturelle, Quatrième série - Tome dixième, Paris, Masson et C. Éditeurs, 1908, pp. 1-66, pp. 34-36].


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Notas:



Esta carta foi lida em sessão do Museu de História Natural de Paris a 4 de Maio de 1808.


*Os botânicos espanhóis Hipólito Ruiz e José Antonio Pavón (juntamente com o seu colega francês Joseph Dombey) tinham estado, entre 1777 e 1788, no vice-reino do Peru (que compreendia não só o actual território do Peru, mas também o actual Chile). Dessa importante expedição botânica resultou, entre outras obras, a produção da Flora Peruviana et Chilensis, cujo primeiro tomo foi publicado em 1798, o segundo em 1799, e o terceiro em 1802. Contudo, parece que a falta de fundos inviabilizou a continuação da publicação da obra, que, como refere Geoffroy Saint-Hilaire, continuava incompleta em 1808 (e que permaneceria em grande parte inédita até meados do século XX, quando finalmente se concluiu a sua publicação, com o primeiro e o segundo tomos de mais de três centenas de estampas que ilustravam a obra).