quinta-feira, 16 de junho de 2011

Memória da Revolução do Algarve, pelo padre João Coelho de Carvalho



Parece ser justo que aqui fique em memória a revolução deste Bispado [do Algarve], as suas antecedências e consequências, visto que o Seminário teve muito que temer antes e depois dela. 
O Príncipe Regente de Portugal, temendo com bem fundado receio que as tropas francesas que sem seu consentimento entraram no Reino se quisessem senhorear de sua pessoa, dirigiu-se ao Rio de Janeiro, deixando uma Regência de Governo
Entraram os franceses na Corte fazendo-se senhores dela, e parte do Reino além do Tejo. E para entretanto iludirem a Espanha, a quem haviam [de] fazer o mesmo pouco depois, repartiram com ela deixando à sua disposição a parte que fica aquém do Tejo, em virtude do que os espanhóis fazendo quartel-general em Setúbal, mandaram uma Divisão para o Algarve, e comandada pelo Marquês de Coupigny que veio fazer seu quartel em Faro, residindo desde 22 de Janeiro até 22 de Fevereiro [de 1808] no Palácio Episcopal, sustentando com sua comitiva à custa do Excelentíssimo Senhor D. Francisco Gomes, a quem o mesmo General e seus ajudantes, principalmente Federico Moretti, fizeram grandes obséquios de honra, agradecendo-lhe por fim o bom acolhimento que suas tropas acharam neste povo, devido tudo à boa disciplina eclesiástica que o mesmo Senhor tanto recomendava nas suas homilias ao mesmo povo, que nesta parte correspondeu aos desejos de todos, ao menos em geral e publicamente, não ficando deteriorado o seu crédito com a morte secreta que padeceram alguns espanhóis, talvez bem merecida pelos seus crimes (disto porém apenas havia certo rumor e por isso pode ser [que] não seja verdadeiro). 
Em 22 de Fevereiro saiu daqui o general [Coupigny] e o Estado maior, tendo-lhe precedido a saída da tropa de linha miliciana. O General e seus ajudantes esperavam pelo general francês no seu quartel; mas na madrugada seguinte recebeu ordens de partir logo, de sorte que não se viram, apesar de chegar a Faro duas horas depois da sua retirada. Isto, que então foi acaso, era já prelúdio do que depois havia de acontecer; vindo o dito general Coupigny a ser quem, em grande parte, concorreu para a derrota de Dupont, de quem este exército francês compunha parte, segundo o que depois se descobriu. 
Pela saída dos espanhóis entraram os franceses em duas colunas de pouca gente, que, ao todo, fazia o número de quatrocentos homens. O general [Maurin] alojou-se nas casas de João Carlos, onde foi cumprimentado pela nobreza, em cujo número entrava o Excelentíssimo Senhor D. Francisco, oferecendo-lhe o seu palácio para quartel, que não aceitou para si, mas sim para um seu ajudante, quatro criados e seus cavalos! Que princípios de política francesa! 
A primeira visita que fez este grande político foi a seus cavalos, que vinha ver todos os dias; o seu ajudante era efectivo na cavalariça, e, às vezes, também se viu limpando neles, donde se inferiu que um e outro, ambos irmãos, certamente tinham tido por princípio de educação alguma estrebaria. Apesar desta manifesta grosseria, quis cativar os ânimos da nobreza com um jantar público em dia de Ramos [10 de Abril], para que foi convidado o prelado do Bispado, que não aceitou alegando moléstia e actual trabalho naquele dia solene. Afectou este ser católico, não permitindo [o] uso de carnes no seu banquete, mandando advertir esta circunstância aos convidados, talvez temendo já que por este temor o prelado se recusasse. Com estes prelúdios pretendia dispor os ânimos para anuírem à sua pretensão de que para o seu prato se lhe subministrasse nas três comarcas [Tavira, Faro e Lagos] um conto e duzentos mil réis mensais. Como porém os corregedores, amantes do seu povo, especialmente o de Faro, dessem disto parte a Junot, deste veio ordem para que nada se lhe desse, donde resultou ser descomposto injuriosamente o dito corregedor, Manuel José Plácido, pelo mesmo General, na ocasião de lhe intimar a ordem que recebera. O exemplo do general imitavam todos os subalternos no que lhe era possível. 
Os governadores das praças obrigaram os mestres dos barcos de pesca a pagar um tanto por mês; os de Faro pagavam 400 réis, os de Olhão 600 réis. A estes e àqueles concediam licença para sair do porto, ainda que fosse inimigo, contanto que pagasse bem. E deste modo navegavam os de Olhão para Gibraltar, donde traziam contrabando, sendo isto proibido com pena de morte pelos mesmos franceses, de cujas leis estes eram executores; donde se inferia que semelhante legislação tinha por fim servir de pretexto para sacar dos navegantes avultadas quantias para conseguirem a faculdade de navegar ou de sair do país, o que também tinham proibido com a mesma pena. 
E se este não foi o espírito da proibição, então ainda mais prova a vileza de tais guerreiros, que não cumpriam as ordens do seu semideus Napoleão, por alcunha o Grande. Proibiam a pesca para que os pescadores não comunicassem com os ingleses; mas se pagavam a contribuição, acabava-se o receio: iam à pesca e falavam com os ingleses! Só não procediam contra quem pagava. E que tais eram os representantes de Bonaparte! A usurpação das pratas das igrejas; a contribuição de quarenta milhões; as violências cometidas pelos oficiais, querendo para seu alojamento as melhores alfaias; isto e muitas coisas dispunham os ânimos para a revolta, que no Algarve apareceu no dia 16 em Olhão e 19 em Faro. 
É coisa bem conhecida por todos que a Espanha, com a sua paz e aliança com a França, foi a ruína da Europa, sendo ao mesmo tempo de si mesma, porque as suas riquezas, marinhas e exército, aumentando as forças da França, diminuíam as suas. Por fim, desta íntima aliança foi o trono de Espanha derrubado, a família real toda inteira passou prisioneira à França; e substituído [por] José, irmão de Napoleão, que então era rei de Nápoles, tão legítimo como queria ser de Espanha. A nação irritada sacudiu o jugo levantando-se em massa contra os usurpadores, que, com capa de amigos e defensores, estavam no centro e nos melhores postos. Quando Dupont marchava para se fazer senhor de Sevilha e Andaluzia toda, tiveram ordem as tropas francesas da guarnição do Algarve de marchar para a raia, a fim de que, incorporando-se com uma divisão que havia [de] vir de Setúbal, entrassem na Espanha por Alcoutim. Marcharam, mas a união não teve efeito, e muito menos a passagem, que os espanhóis lha disputaram no passo de Alcoutim. 
Foi nestes mesmos dias que Junot mandou afixar editais convidando os portugueses para atacar a Espanha revolta. Um semelhante edital, posto no dia 16 de Junho na porta da igreja paroquial de Olhão, enfureceu de tal modo os ânimos daquele povo, que, tomando por cabeça o coronel José Lopes de Sousa, governador de Vila Real [de Santo António], que então se achava no dito povo, se puseram em defesa contra os franceses, fazendo vir as peças de artilharia, que tinham na fortaleza de S. Lourenço. Parte da guarnição de Faro, que ainda se conservara, convidou o coronel de artilharia a atacar com a tropa aquela povoação. O coronel anuiu, mas a tropa ia de má vontade e muito menos nisto convinha o povo de Faro. Também por anuir ao General francês e Corregedor mor, a Câmara da cidade mandou afixar editais em Olhão, persuadindo este povo para que se aquietasse. E porque nada se julgava bastante, foram convidadas algumas pessoas caracterizadas e com relação na dita povoação, a fim de lhes ir persuadir que não fossem por diante com a revolta. Mas ou porque uns não aceitaram a comissão ou porque outros a não puderam efectuar, receando ambas as partes a falta de cumprimento nas promessas, os magistrados da cidade tomaram sobre si a reconciliação, que foram persuadir, mas nenhum efeito resultou porque nesse intervalo se levantou o povo de Faro, e porque não havia com quem tratar negócio sério e seguro, estando ausente o acima referido governador, cabeça da revolução, por ter ido conduzir a Sevilha os prisioneiros franceses feitos no dito lugar do Olhão. Aqui pertence expor o motivo desta ausência que constará do que se vai referir. 
No dia 18 de Junho tentaram os franceses atacar Olhão, mas o povo mal armado resistiu, havendo por ambas as partes alguns mortos e feridos; não constando quantos morressem da parte dos franceses, consta que do povo de Olhão, neste encontro, ou escaramuça, morreu um velho, por loucura, pois foi-se meter entre eles, e ficou ferido outro num braço que ficou quase cortado de todo e com uma estocada, que o passou das costas ao peito, que dizem fora feita por um português que acompanhava os franceses, cujo nome se cala* por não estar provado o seu crime, se bem [que] já está mais que convencido da sua maníaca adesão ao sistema e máximas dos franceses presentes. Esperamos que o governo vingue a nação por este atentado e actos de semelhante natureza. 
Além destes, constou que os franceses mataram algumas pessoas que [se] achavam desacauteladas pelos campos, que, em boa fé, não se retiravam por não serem partidistas do povo de Olhão. Isto aconteceu na ponte de Quelfes, onde os franceses, que vinham de Tavira unir-se aos de Faro contra Olhão, foram atacados pelos paisanos, que, por medo e ignorância militar, não os derrotaram de todo; emboscados deitaram muito mal a primeira descarga, e fugindo logo deixaram sós os dois chefes que os comandavam. Foi aqui onde os franceses mataram um segador ocupado no seu trabalho; e dos franceses no combate só consta que morresse um ou dois. 
Antes destes dois encontros tiveram os pescadores de Olhão a temeridade de atacar alguns barcos que vinham pelo rio de Tavira para Faro com a bagagem do exército todo, guarnecidas com sessenta soldados. Foram tomados e sem resistência, porque os franceses ignoravam o levantamento e os suponham pescadores que iam para a pesca. 
Por ocasião deste aprisionamento resolveu o chefe da revolução José Lopes, governador de Vila Real, conduzi-los ele mesmo a Sevilha, a fim de tratar com a Junta daquele reino algum meio de defesa, que não havia em Olhão. 
Muitos críticos, e talvez com razão, censuraram esta retirada do governador, deixando aquele povo entregue a dois comandantes pouco instruídos na arte militar, na ocasião em que ali era indispensável a sua presença, por onde inferiram que ele, contando com a vitória dos franceses, estimou a ocasião de se retirar; e na verdade julgar outra coisa não parecia acerto, à vista do estado daquele povo, sem armas nem munições e numa total ignorância militar. Eram homens que nunca pegaram em espingardas, e só depois da revolução é que tomaram algum exercício, e, portanto, com esta gente, esperar vitoria [sobre] a tropa francesa e artilharia portuguesa [de Faro] era loucura rematada. O mesmo povo – ainda os mais ignorantes dele –, conheceram o evidente perigo, e por isso no dia 18 dormiram todas as famílias em barcos no rio, ficando pouca gente em terra.
É coisa pasmosa ver o modo com que a Providência acudia por este povo. Daquele meio de que se serviu para acautelar do perigo certo e evidente, desse mesmo se serviu Deus para o livrar. Postos os barcos em linha, muita gente dentro deles e outros já abarracados na ilha, fez supor aos franceses que os ingleses, em grande número, estavam já em terra, desembarcados da esquadra que andava à vista. As mesmas mantilhas encarnadas, de que muito usam as mulheres daquele povo, fizeram crer aos franceses que ali estavam tropas inglesas, cujo uniforme é encarnado nalguns regimentos. Ainda mais admirável é uma particular circunstância então acontecida, e presenciada pelos mesmos portugueses que acompanhavam os franceses, que por isso foram testemunhas do seu susto, e também com eles se persuadiam, pelo que viam, da realidade da presença de tropas inglesas. É o caso. Rodeiam Olhão pelo norte muitos valados cheios de piteiras; estas mesmas, com o orvalho da manhã, dando-lhes o sol ao nascer, ficam com certo luzidio resplandecente, pelo que se persuadiram os franceses, à vista disto, observado com os seus óculos, que eram as armas da tropa inglesa. Ainda aqui não param os motivos de admiração. Para se capacitar de todo se havia ou não tropas inglesas em terra, mandam espias a examinar; estes encontram algumas pessoas daquela povoação, de quem, perguntados em diversos lugares, uniformemente ouvem a mesma resposta, por onde ficam certos da verdade do desembarque. Ainda não contentes com estas provas, querem desenganar-se por meio de um fingido parlamentário que enviam a Olhão, o qual procura logo informar-se com disfarce se havia ali tropas inglesas; a guarda que lhe recebeu o recado francamente lhe respondeu que na verdade havia muita gente inglesa. 
Nada disto, porém, seria para admirar para os franceses, homens prevenidos com um terror pânico a respeito dos ingleses e num país cujos nacionais, alem de apaixonados pelos mesmos ingleses, davam expressivas provas do seu ódio aos franceses. O que mais há aqui para admirar é que os mesmos portugueses, ainda os mais inteligentes e presumidos na certeza, estavam convencidos do mesmo. O cónego Manuel do Coito, homem lido e bem conhecido nesta cidade pela sua capacidade, e que passa pelo melhor crítico, este mesmo quis persuadir a quem isto escreve, que na verdade em Olhão havia ingleses, pois oficiais desta nação, pelas fardas encarnadas, foram vistos e conhecidos na Horta do Rio Seco e no Montinho de José da Beira, no dia 18 à tarde. Esta era, pois, a comum persuasão em Faro, no dia 19. 
No dia 18, marchou a tropa portuguesa para auxiliar os franceses contra Olhão. Isto foi mal visto pelo povo de Faro, que logo principiou a dar sinais do que queria fazer. Nessa mesma tarde foram atacados com impropérios o Corregedor mor [Mr. Goguet] e o cônsul francês, Pascoal Turri**, que com justo fundamento se ausentaram de Faro nessa noite para Loulé, a segurar as suas pessoas e dinheiro, donde, voltando no seguinte dia 19, à tarde, foram atacados junto ao lugar de S. João da Venda; e depois de alguns tiros de pistola escaparam, porque errou a espingarda a um paisano. Fugiram para Loulé e daí para Lisboa. 
Dispostos os ânimos, no dia 19, pelas duas horas da tarde, ouviu-se sinal de rebate na torre [da Igreja] do Carmo. Tudo ficou assustado e ninguém saiu, senão os que tinham traçado a revolução muito antes, gente da plebe e rapazes. Duas outras pessoas do povo havia dias que dispunham o negócio, tendo introduzido armas, pólvora e alavancas nas cadeias; tinham armas em suas casas e finalmente pagaram ao que se atreveu a ir dar o sinal, pedindo a chave da torre com disfarce, para umas badaladas, chamadas de parida. 
A populaça em chusma acudiu ao largo do Carmo, onde também apareceu o Governador da praça, o Coronel de artilharia portuguesa, para impedir o rebate. O povo levantou-se contra ele, obrigando-o a mandar vir a tropa que tinha ido auxiliar os franceses. Com efeito, foi [expedida] uma ordem do Governador para vir a tropa, e porque o povo desconfiava, foi ele mesmo levar a ordem e fazê-la vir para a cidade. A este tempo continuava o rebate, mas ninguém de juízo apareciapara governo. Foi preciso ir à casa dos oficiais, dos quais alguns se esconderam em suas casas; de todos só foram mais prontos, depois de chamados pelos cabeças da Revolução, um dos quais era um José, vulgarmente chamado o do Botequim, os Cabreiras, que eram três irmãos, um capitão, Sebastião Duarte Cabreira, e dois tenentes, Severo Cabreira e Belchior Cabreira. Com estes fez o povo cabeça, tomando por comandante o Capitão Sebastião Cabreira***.
Nesta confusão, em que tudo andava sem haver quem comandasse a tempo, foi a Providência quem dirigiu os caminhos para que, por acaso e sem ordem, os rapazes e alguns paisanos sem talento se lembrassem de conduzir artilharia para o Paiol da pólvora, e para defender a entrada dos franceses [na cidade]. E na verdade foi isto tanto a tempo, que uma peça pequena levada às costas de José da Palma, criado do Excelentíssimo Senhor Bispo, e o reparo puxado pelos rapazes, foi quem defendeu a cidade, aterrando os franceses, que por duas partes vinham entrando na cidade. Contra tão manifesto perigo não havia na cidade toda ponto algum tomado senão este, e pelo modo exposto, achando-se ali por felicidade um paisano que tinha sido militar, chamado José Palermo, com cinco tiros de bala, que bastaram para fazer fugir o inimigo. Alguns oficiais inferiores, que tinham vindo com a artilharia que auxiliava os franceses, em lugar de tomar este ponto mais importante, e donde havia vir decerto o inimigo, deixam este na forma dita, e vão segurar outras avenidas pelo rumor que se espalhou, que os franceses vinham por Loulé. Era boa cegueira: deixar o Paiol com o inimigo na frente, sem mais guarnição que uma peça e um paisano que a comandava, para ir segurar pontos duvidosos, e com mais força! O que é isto senão uma evidente prova que a Providência se empenhava em nos convencer que era por ela, e não pelos homens, que o inimigo havia [de] ser expulso do país. 
Enquanto por fora havia tais disposições para defender a entrada dos franceses, a fim de evitar a sua união com os de dentro, no interior da cidade em nada se cuidava menos, como se tal inimigo não houvesse, dentro e fora dela. E tal era o universal descuido e esquecimento do perigo que se levou muito a mal os tiros que se deram, porque com eles se afugentou o inimigo, que vinha depor as armas. Que desatinado discurso! Mas contudo bem prova o descuido do povo. Os factos acontecidos noutras partes bastantemente provaram a extravagância dos que assim discorriam. Rapazes com canas verdes e apupados foram os que desarmaram a guarda do General [Maurin], que então estava enfermo: à vista de uma tal tropa, largam as armas e fogem para o Quartel-General, onde se escondem às portas fechadas; os rapazes e alguns paisanos com a arma da sentinela foram os primeiros que descobriram as armas reais do armazém da Porta da Vila, que estavam tapadas com argamaça. Foi gente deste carácter a que aprisionou alguns franceses, fugitivos ou escondidos; e entretanto, a maior parte se ocupava na arrecadação do que podia haver à mão, ainda que não pertencesse aos franceses; e tanto que, na entrada que fizeram em motim e sem ordem no Quartel-General, sendo todos os trastes, coisas das muitas, que desapareceram. Então se aprisionou o General [Maurin] com João Baptista Malé, seu ajudante, e um capitão do dito General e também ajudante dele. Pediu que o levassem para casa do Excelentíssimo Bispo, que de boa vontade o aceitou, e em seu palácio esteve alguns dias debaixo da mais rigorosa prisão, sendo a Nobreza quem de dia e de noite o vigiava com sentinelas à vista. O Governo, que então já estava organizado, não pôde vencer os clamores do povo, que queria ver fora do país o General e toda a tropa francesa, ordenou que com outros oficiais fosse conduzido para Sagres, onde não chegou, por ser preciso contramandar a ordem, visto que o povo não se aquietou com isto, querendo-o fora do Reino; e também porque o povo de Lagos se amotinou logo que ali chegou a embarcação que os conduzia, custando a sustê-lo para que não o assassinassem. Foi ele e os demais conduzido portanto conduzidos para Gibraltar, onde os ingleses tomaram posse dele. Por aqui se pode ver a brutalidade destes povos, em se quererem privar de um prisioneiro que podia servir de refém. Também foram remetidos para Espanha os soldados franceses aprisionados, que ali foram postos em liberdade cuidando pouco a Espanha de prisioneiros portugueses. Parece incrível que não só a plebe instasse ao Governo por um tal procedimento, mas que pessoas caracterizadas e que deviam ter juízo fossem as que o maquinavam. O Governo conhecia a louca petição de um povo amotinado mas era preciso curar um mal com uma imprudência. 
No dia 20 foi de novo o povo convocado pelo sinal de rebate em todas as igrejas, e convocado o clero regular e secular. No Campo da Esperança apareceram as comunidades da cidade, Cabido com Excelentíssimo Senhor D. Francisco, Bispo deste Algarve. Na tarde deste dia renovou-se o rebate a que acudiu tudo, e mesmo clero armado, a quem se destinou o posto da guarda principal para ponto de união em outras semelhantes circunstâncias, onde por muitos dias entraram de guarda parte do Cabido, clero secular e regular, dando o mesmo Cabido 1200 réis às ordenanças para pelo clero fazerem os quartos de sentinela. 
No dia 22 se convocou os Três Estados para a eleição de uma Junta Provisional. Fez-se a assembleia na Igreja da Senhora do Carmo, onde se nomearam sete pessoas de cada classe para votar nos em que havia [de] recair o Governo. O Excelentíssimo Senhor D. Francisco Gomes, Bispo deste Reino, foi quem recebeu os votos, e prestou juramento aos eleitos, que foram: 

Presidente: O Conde Monteiro-Mor, Marquês de Olhão 

Deputados:
1.º O Arcediago da Sé, Domingos Maria, Comendador de Cristo 
2.º O Cónego António Luís de Macedo e Brito, Comendador de Cristo 
3.º O Desembargador José Duarte de Sá Negrão, Hábito de Cristo 
4.º José Bernardo Mascarenhas, Comendador de Santo 
5.º Sebastião Cabreira, Comendador de Cristo com 300:00 de tença 
6.º Joaquim Filipe Landerset 
7.º Miguel do Ó, Hábito de Cristo 
8.º Francisco Aleixo, Terras para 8 moios de trigo 

O Bacharel Ventura José Crisostomo, Secretário, Hábito de Cristo 


O Excelentíssimo Senhor D. Francisco Gomes foi presidente interino desta Junta, enquanto não veio o Conde Monteiro-Mor, que teve sua dificuldade em vir de Tavira, onde seus moradores se opunham, querendo-o para a sua Junta, que por isso dizia ser a Suprema. Estes obstáculos venceu o Excelentíssimo Senhor Bispo, indo com dois deputados a Tavira, onde em Câmara persuadiu todos da verdade e meios que deviam abraçar-se, em consequência do que prometeu o Conde vir para esta cidade [de Faro], o que fez três ou quatro dias depois, escondidamente, para evitar algum motim na plebe. 
Criada que foi esta Junta Suprema, criou-se uma Tesouraria Geral, para que foi nomeado Tesoureiro Geral o Capitão Ventura da Cruz; para primeiro oficial dela, José Coelho de Carvalho, e para segundo Alexandre José de Carvalho; o 1.º com vinte mil réis de ordenado, cada mês; e o 2.º com dez mil réis; ambos eles eram dirigidos por José Maria Jordão, oficial da Tesouraria Geral de Elvas, que na ocasião do levantamento estava em Lagos com dinheiro que mandava o governo francês para pagamento da tropa portuguesa, com que pretendia adoçar a amargura, temendo as consequências que já se iam manifestando. Este dinheiro foi o primeiro que entrou na tesouraria, e igualmente cinco mil cruzados que o Excelentíssimo Senhor Bispo, e outros cinco [d]o Cabido; e D. Maria da Paz oitocentos mil réis; e quatrocentos [de] José Alves. As demais gratificações que houve foram tão ténues que não merecem memória. 
Depois disto criou-se uma Junta de Fazenda, de que era 

Presidente o Corregedor Manuel José Plácido 

Deputados 
1.º Ventura da Cruz 
2.º O Cónego Manuel do Coito 
3.º O Cónego Duarte da Horta Machado 
4.º José Lopes Ferrete 

António Januário da Fonseca, secretário 


A primeira disposição que fez a Junta Suprema, tendo ainda por seu Presidente o Excelentíssimo Senhor Bispo, foi enviar a Sevilha como legado, o Cónego Manuel do Couto, para remover algumas pretensões que se suponham ter aquela Junta na união deste Reino [do Algarve] ao da Espanha por oferta que se lhe havia feito; e com efeito, depois de algumas dificuldades, concluiu o que se pretendia, ficando daí por diante em harmonia perfeita, como se deixa ver pelo facto de ter sido mandado um Tenente-Coronel anunciar a vitória alcançada de Dupont. Aqui pertence notar o excesso de jurisdição que se atribuiu a esta Junta, que tendo sido criada para prover de remédio o que dele precisasse na falta do Príncipe Regente, fazendo observar as leis do reino, queis arrogar a si o direito de soberania absoluta até ao ponto de condecorar com hábitos de Cristo alguns membros da mesma Junta; erigir em padronado real a capela do Carmo, sujeita à Mesa da Consciência, etc., ainda que por oposição do Excelentíssimo Senhor Bispo e pároco não foi avante este privilégio na extensão que se pretendia, que era tirá-la da jurisdição do pároco sem ele ser ouvido apesar de estar pendente a lide sobre tais direitos. Também foi notada de estender a mais do que devia o seu poder, separando os ofícios de magistratura e nas terras da Rainha [como era o caso de Faro e seu termo]; dando propriedade de ofícios de fazenda a quem os pedia, etc. O tempo mostrará se estas e outras coisas serão ou não aprovadas pelo legítimo Governo, que já está organizado na Corte. 
No dia 1.º de Julho às dez horas da noite se tocou a rebate na cidade, que pelas cinco da manhã do dia dois se repetiu, julgando-se confirmada a notícia de que com efeito entravam os franceses no Algarve, que já se suponham em Albufeira. Se por desgraça fosse verdadeiro o boato, que da mesma origem correu todo o Algarve, sem dúvida seriam todos vítimas, não havendo em todas as partes providência dada em termos, e só então é que se acordou do letargo em que tudo jazia, supondo-se que o inimigo, assim como se fora cheio de medo, sem ver de que, também se conservaria no mesmo terror, como se no Algarve não houvesse quem os desenganasse da existência do motivo, que os tinha aterrado e não os informasse da triste defesa que neste país faziam os seus habitantes. O descuido era universal ao país; ninguém se lembrava do inimigo senão quando ouvia o rebate, quando todos andavam diligentes nos meios de tirar vantagens de interesse particular em qualquer circunstância que se oferecia. As mesmas tropas que tinham sofrido o jugo francês, servindo com eles seis meses por um pão quotidiano, estes mesmos murmuravam e ameaçavam deserção, porque lhe faltou pagamento por dois ou três dias. E nesta disposição estavam todos; uns por egoístas, e outros por partidistas dos franceses, de sorte que o livramento do Algarve todo é de Deus, e nada dos algarvios. 
No dia seguinte ao em que os franceses se retiraram dos subúrbios de Faro e Olhão, que foi na noite do dia 19 de Junho, deixando um obus e muita pólvora junto à horta do Baeta, por caminhos diferentes dos que ordinariamente são trilhados, se conduziram para Tavira, onde chegaram na madrugada do dia 20; reunindo-se a este corpo, o que em seu auxílio vinha de Vila Real [de Santo António], com alguns artilheiros portugueses enganados, ignorando o fim para que vinham. Ajuntaram-se na Praça, onde se demoraram com as armas ensarilhadas, e ao mesmo tempo insultando, donde se inferia que eles buscavam pretexto para as hostilidades; e disto há boa prova, porque retirando-se eles de tarde, voltou logo à cidade um oficial, trazendo um capacho velho com trapos por mal na garupa, fazendo cair os mesmos trapos em diferentes lugares, por onde visto está, que o fim era dar motivo para que, insultado pelo povo, tomarem daqui ocasião de saquear, sabendo que o dito povo estava inteiramente desarmado. Por felicidade nem os mesmos rapazes deram o mais pequeno sinal de escárnio, e consequentemente foram-se sem fazer hostilidade alguma. Poucas horas depois da sua saída, tocou-se a rebate na cidade por ordem do Monteiro-Mor. Este rebate foi acelerado, e teria funestas consequências, se não fosse um mancebo, que teve a valentia de fingir-se mandado pelo dito Monteiro-Mor a fim de que de sua parte avisasse a tropa francesa, que já vinha de volta para a cidade, que não viesse se não queria efusão de sangue, pois estavam desembarcando cinco mil ingleses. Este estratagema foi a tempo, e se fez crível aos franceses, porque viam a esquadra inglesa muito chegada à terra, aumentando-se esta persecução com a certeza que levaram de Faro e Olhão, que com efeito havia tropa inglesa em terra. 
Em consequência deste fingido e amigável aviso, puseram-se em marcha pela serra, em direitura a Alcoutim e Giões; mas não puderam ir com tanta brevidade, que parte da bagagem lhe não fosse tomada pela cavalaria paisana que os foi perseguindo por duas léguas serra adentro. Passaram por Alcoutim e Giões, sem fazer hostilidade nem insultos; logo, porém, que chegaram Mértola, vila que estava ainda pelo seu partido, e onde acharam tudo o que pediam, fizeram ali os maiores insultos à religião. Entraram na Matriz, da pia baptismal fizeram salgadeira de toucinho; queimaram imagens, quebraram retábulos e as portas do sacrário, etc. 
Neste facto é muito que admirar: Parecia que semelhantes insultos teriam mais lugar em Alcoutim ou Giões, pequenos povos, onde não acharam o que pediam, e que pertenciam à província donde iam escandalizados; mas numa vila, onde tudo abundava, o governo dela era de seu partido, e onde se foram acolher, aqui é que vomitam a sua cólera, por um modo tão sensível aos habitantes? Se é muito ajuizar neste facto, diria que Deus quis castigar aquela povoação de Mértola permitindo tais insultos na Matriz pelo desprezo e pouco caso que ali se fazia do culto. As vestes sagradas eram imundas, rotas e velhas de sorte que ninguém de juízo ali queria celebrar. E para prova basta dizer que a casula rica era uma de damasco branco, feita à custa do pároco, não tendo sido possível conseguir paramento algum do Comendador, mas isto dispensava o pároco e seus fregueses de suprir de sua casa a escandalosa omissão do Comendador. Viam uns e outros a sangue frio a indecência com que ali se faziam os ofícios da religião, gastando-se aliás bastante dos reditos eclesiásticos em superfluidades escusadas; de tudo é testemunha quem isto escreve. E porque não será esta a causa de tanta profanação? A relaxação do clero de Campo de Ourique, e algumas cidades do Alentejo, é bem conhecida; e porque não será isto a causa dos desacatos cometidos naquela província? Nada disto consente no Algarve a vigilância do seu Pastor supremo, e talvez fosse por isto que os franceses neste Bispado, nem antes, nem depois da revolta, não fizessem o mais pequeno insulto à religião, nem aos povos; pelo contrário, porém, fingiram actos de católicos, não o sendo. Não devemos supor nisto que eles o faziam por eludir os povos; devemos crer que havia no seu procedimento uma particular Providência. Em todos os portos que eles guarneciam do Algarve assistiam à missa, quando consta decerto quem noutras partes não o faziam. Em Estremoz nunca o fizeram, havendo ali numerosa guarnição por diferentes vezes. Em Elvas tinha o General casa aberta de pedreiros-livres. 

À vista disto julgue o leitor como lhe parecer mais acertado, e conclua de tudo que Deus é quem livrou o Algarve de franceses, servindo como instrumento quimérico dos ingleses, e que saíram sem efusão de sangue, e sem a mais pequena profanação religiosa nem insulto feito por violência a mulher alguma. 

Feito em Faro a 4 de Novembro de 1808. 

[Fonte: Ataíde Oliveira, Biografia de D. Francisco Gomes de Avelar – Arcebispo-Bispo do Algarve, Porto, Tipografia Universal, 1902, pp. 176-196; Da quadrilha à contradança: o Algarve no tempo das invasões francesas, S. Brás de Alportel, Casa da Cultura António Bentes, 2004]. 

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Notas:



* Na margem esquerda do manuscrito original encontra-se a seguinte nota: “Testemunhas fidedignas atestam que tal sujeito não fora o que feriu este homem, achando-se naquela tarde mais de duas léguas distante dali. Os quinteiros de Bela Mandil afirmam isto mesmo. [Um] Dragão fora quem o ferira, apeando-se do cavalo, depois do golpe no braço”. 

** O comerciante Pascoal Turri, natural de Milão, residia em Faro antes ainda da revolução francesa. Nesta cidade casara e exercera a função de músico do Regimento de Artilharia n.º 2, passando a ser cônsul da França de 1803 em diante. Em 1808, quando os franceses chegaram à capital algarvia, Pascoal Turri tornou-se ajudante do Corregedor mor francês, mr. Goguet  [Cf. Alberto Iria, A Invasão de Junot no Algarve, 1941, pp. 62, 70 e 77]. Curiosamente, houve um conflito com este indivíduo antes mesmo das invasões, como se depreende do seguinte ofício do Governador do Algarve para António de Araújo de Azevedo: 

Il.mo e Ex.mo Sr.:

Por aviso de V.ª Ex.ª de 15 do presente mês participa-me V.ª Ex.ª que o Príncipe Regente Nosso Senhor foi servido que eu com toda a brevidade possível informasse o ofício que o encarregado de negócios de França lhe tinha dirigido, em data de 27 de Maio próximo passado, queixando-se das violências que se tinham praticado contra a pessoa de Pascoal Turri, Vice-Cônsul de França em Faro; o que me cumpre dizer a V.ª Ex.ª é que eu já remeti a V.ª Ex.ª a minha informação na data de quatro do presente mês, e junto a ela todos os documentos e informações a que antes procedi. 
Deus Guarde a V.ª Ex.ª 
Lagos, 22 de Julho de 1807. 
Conde Monteiro Mor 
[Fonte: Arquivo Histórico Militar, 1.ª sec., 13.ª div., cx. 25, doc. 09, fl. 27].



Este incidente inclusive foi mencionado num relatório sobre a não neutralidade de Portugal, da autoria do ministro francês dos negócios estrangeiros, Mr. Champagny, datado de 21 de Outubro de 1807: 

Un consul français, que le Portugal avait reconnu et admis à exercer ses fonctions dans le port de Faro, a été arraché de sa maison par l'intendant des douanes; il a été trainé dans les cachots; il n’en est sort que pour être exilé, et le gouvernement portugais s’est refusé pendant trois mois à réparer cet outrage. 
[Fonte: Lewis Goldsmith (org.), Recueil de décrets, ordonnances, traités de paix, manifestes, proclamations, discours, &c. &c. de Napoleon Bonaparte et des membres du Gouvernement Français – Troisième Volume, Londres, Imprimerie de R. Juigne, 1813, p. 252. 


**No estalar da revolta farense, Belchior Cabreira não se encontrava nessa cidade, mas sim ao comando da artilharia portuguesa que se tinha deslocado à Meia Légua sob as ordens dos franceses, para evitar que a revolta olhanense alastrasse à cidade. É só depois de um soldado francês se dirigir à Meia Légua relatar que a população farense se tinha sublevado que Belchior regressa a Faro, junto com os seus soldados, onde foi entusiasticamente recebido, pois corria o boato de que tinha sido ferido ou mesmo morto em confrontos na Meia Légua.